A Emenda Constitucional nº 64/2010 incluiu a alimentação como direito social no art. 6º da Constituição Federal. Antes disso, porém, a legislação ordinária regulou esse direito fundamental na Lei nº 11.346/2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada. Posteriormente, a Lei nº 11.947/2009 reforçou essa proteção ao regular os repasses de recursos para alimentação escolar.
Essa inversão temporal não traz maiores questionamentos, posto que o direito à alimentação já constava de forma esparsa no texto constitucional, a exemplo dos arts. 7º, IV, 208, VII e 227. Mas a despeito da concretização pelo legislador ordinário, importa examinar até que ponto esse direito é exigível, dada sua natureza programática.
No âmbito regional, o protocolo de San Salvador detalha o direito à alimentação no art. 12. A Corte IDH se debruçou sobre esse direito no caso Niños de la Calle, reconhecendo que a Guatemala violou, dentre outros, o direito à alimentação das vítimas. Em um caso mais recente, julgado em 2020, a mesma corte condenou a Argentina por violar o direito à alimentação de uma comunidade tradicional, no caso Nuestra Tierra.
No Brasil, o STF se debruçou sobre esse tema na ADPF 709, julgada em 2023, condenando os poderes públicos a fornecer alimentos à comunidade Yanomami. Já na ADPF 976, o STF reconheceu o direito à alimentação das pessoas em situação de rua.
Percebe-se que, apesar de listado entre os direitos sociais, à semelhança do direito à cultura e ao lazer, em muitos casos o direito à alimentação se transmuda em autêntico direito civil, por se vincular à própria existência humana. Nestes casos, o direito à alimentação é uma garantia inarredável ao direito à vida. Não se nega que no contexto atual, os direitos à saúde e à alimentação não estarão, como regra, diretamente vinculados ao direito à vida, mas sim à sua qualidade.
Mas em situações extremas, o direito à vida pode depender imediatamente da satisfação de algum desses dois direitos. Nestes casos, os direitos à alimentação, à saúde e à vida se conectam ontologicamente como o elos de uma corrente.
Mesmo nos casos de vinculação direta e necessária ao direito à vida, cuja exigibilidade é incontroversa, os direitos à alimentação e à saúde permanecem ostentando a natureza de direitos prestacionais.
Essa regra comporta algumas exceções, como nos casos em que os direitos à saúde e à alimentação adquirem a natureza de direitos de defesa, cabendo ao Estado e aos particulares se abster de prejudicar a saúde da população ou de impedir o acesso dela aos alimentos.
Conforme será explorado adiante, há casos documentados na história recente em que essas duas condutas foram praticadas em determinados países. Nestas situações excepcionais, os direitos à alimentação e à saúde serão autênticos direitos subjetivos de defesa, não havendo dúvida quanto à sua exigibilidade.
Além desse aspecto, o direito à alimentação também garante outros direitos sociais, como o direito à educação, já que o aprendizado é bastante afetado, senão completamente impossibilitado, na presença da subnutrição.
Nessas situações extremas, o direito à alimentação se converte em direito exigível em juízo, albergando tanto uma perspectiva objetiva quanto subjetiva, além das dimensões positiva e negativa dos direitos fundamentais. Essa conclusão é reforçada pelas disposições dos tratados internacionais.
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prevê no artigo 11.2 a necessidade de medidas urgentes e imediatas para assegurar o direito fundamental a estar livre da fome e da desnutrição. Esse tratado foi internalizado no Brasil pelo Decreto nº 591/1992. Esse dispositivo foi objeto de análise no Comentário Geral nº 12 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU em 1999, onde se procedeu ao exame dos relatórios dos países partes, elaborados durante 20 anos, conferindo-se uma interpretação abrangente desse direito, que alberga tanto a acessibilidade econômica quanto a acessibilidade física, contemplando crianças até seis meses, idosos, deficientes físicos e deficientes mentais.
Ainda no âmbito internacional, em 2001 foi adotado em Roma o importante tratado TIRFAA, para proteção dos recursos fitogenéticos para a alimentação e agricultura. Esse tratado foi internalizado no Brasil em 2008, e dispõe sobre a conservação de recursos fitogenéticos. Ele prevê o uso sustentável desses recursos para alimentação e agricultura, com repartição justa e equitativa dos benefícios deles derivados, em harmonia com a Convenção sobre Diversidade Biológica. Os recursos fitogenéticos são materiais genéticos de origem vegetal com valor para a alimentação e agricultura, como a variabilidade genética de espécies de plantas comestíveis.
Em comentários ao art. 6º da CF, Ingo Sarlet preleciona: “Muito embora haja autores, no Brasil, que negam aos direitos sociais (no todo ou em parte) a condição de autênticos direitos fundamentais, tais concepções, pelo menos de acordo com o pensamento majoritário, estão divorciadas do direito constitucional positivo.” (Comentários à Constituição do Brasil, editora Saraiva, 2013, p. 540).
Em outra obra especializada sobre o tema, o mesmo autor reforça: “A doutrina majoritária sustenta o ponto de vista de acordo com o qual os direitos sociais de natureza prestacional se distinguem dos direitos de defesa, inclusive quanto aos aspectos relacionados à forma de sua positivação. Neste sentido, enquanto a maior parte dos direitos de defesa costuma não ter sua plena eficácia e imediata aplicabilidade questionadas, dependendo sua efetivação virtualmente de sua aplicação aos casos concretos, os direitos sociais prestacionais, por sua vez, necessitariam de concretização legislativa, dependendo, além disso, das circunstâncias de natureza socioeconômica…Em razão de reclamarem, de regra, uma concretização legislativa, a doutrina - especialmente alienígena - costuma qualificar os direitos sociais prestacionais de direitos relativos, já que geralmente colocados sob um reserva do possível, que os coloca na dependência da conjuntura socioeconômica, havendo até quem tenha falado de uma relatividade fática dos direitos sociais.” (A Eficácia dos Direitos Fundamentais, editora Livraria do Advogado, 10º edição, 2009, pp. 289/290)
A relatividade fática dos direitos sociais de que fala Sarlet foi desenvolvida pelo autor holandês van der Ven, pioneiro na Europa sobre o assunto, na obra em alemão Soziale Grundrechte, conforme a nota 169 do livro acima. Quanto às circunstâncias de natureza socioeconômica, aludidas por Sarlet, relativamente ao direito social à alimentação, pode ser apontada a crise dos alimentos, que assolou o mundo em 2007.
Discorrendo sobre essa crise, Javier Blas e Jack Farchy pontuam: “Pela primeira vez em décadas, os agricultores do mundo foram incapazes de acompanhar o aumento do consumo de uma população global, que não apenas crescia rapidamente, como também enriquecia. Então, a partir do início de 2008, as principais regiões agrícolas do mundo foram atingidas por um período de mau tempo. Da Argentina ao Canadá, do Vietnã à Rússia, o tempo estava quente quando os agricultores precisavam que estivesse temperado, e seco quando precisam que estivesse úmido. Agora, os preços dispararam…Enquanto uma crise bancária ia tomando forma em Wall Street, uma crise alimentar estava se formando nas ruas de Dhaka, Cairo e Cidade do México. O aumento dos preços dos alimentos foi o resultado de uma década de superciclo das commodities…O impacto foi sentido quase imediatamente pelas pessoas mais pobres do mundo. Aquelas que já sofriam para poder comprar o suficiente para comer foram forçadas a uma fome ainda maior. À medida que uma nova onda de inflação de alimentos varria o mundo, governos ricos e pobres começaram a perceber que o aumento dos preços era uma ameaça não apenas ao desenvolvimento, mas também à segurança.” (O Mundo à Venda, editora Alta Cult, 2022, pp. 255/256).
Em uma visão mais realista acerca da alteração constitucional feita pela EC 64/10, Uadi Lammêgo Bulos pondera: “Certamente, o direito à alimentação, para se tornar efetivo, enfrentará os mesmos problemas que os demais direitos sociais do art. 6º da nominal Carta de 1988. A rigor, nem precisaria vir enunciado, pois dessume-se de alguns preceitos constitucionais, a exemplo dos arts. 1º, III (dignidade da pessoa humana), 3º, III (erradicação da pobreza), 5º, caput (direito à vida), 170, caput (existência digna, conforme os ditames de justiça social), etc. Mas, do ponto de vista pedagógico, foi salutar incluir a alimentação na lista dos direitos sociais básicos do art. 6º, mesmo sabendo que isto não acabará com a fome no Brasil…Que a consagração do direito de se alimentar sirva, pelo menos, como um brado contra uma das chagas remanescentes da involução e do primitivismo: a fome.” (Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, 2018, pág. 831)
O art. 2°, §2°, da Lei n° 11.346/2006 reforça a ideia de exigibilidade, ao dispor que “é dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir mecanismos para sua exigibilidade”. Apesar da redação redundante, semelhante a um tipo penal misto, a lei deixa clara a natureza exigível do direito à alimentação.
No âmbito privado, o art. 1.694 do Código Civil prevê a obrigação de prestar alimentos entre pessoas relacionadas por laços de parentesco. Tratando sobre o princípio da solidariedade que alberga essa obrigação, Nery Júnior e Rosa Maria Nery pontuam: “É nele que se deve buscar inspiração para a vocação social do direito, para identificação do que seja funcionalização dos direitos, e para a compreensão do que pode ser considerado parificação e pacificação social…A obrigação alimentar é toda especial. Como seu adimplemento se relaciona diretamente com a sobrevivência do alimentando, o sistema dota a prestação alimentar de mecanismos extraordinários de cumprimento.” (Código Civil Comentado, editora Revista dos Tribunais, 13° edição, p. 2.059).
A depender do grau de parentesco e da condição do alimentando, é possível que o descumprimento da obrigação alimentar configure até mesmo o crime de abandono de incapaz, previsto no art. 133 do Código Penal.
Mas mesmo diante da clareza das previsões constitucionais e infraconstitucionais, bem como das disposições dos tratados regionais e internacionais, cabe examinar as causas da enorme dificuldade prática para a implementação do direito à alimentação, em especial nos casos mais extremos. De fato, o debate sobre esse direito costuma vir acompanhado de questões acessórias, como obesidade e alimentos ultraprocessados. No entanto, este ensaio terá como foco as situações mais dramáticas de combate à desnutrição.
O problema da fome é encarado sob diferentes vieses, a depender do contexto econômico e das ideologias políticas. Do ponto de vista prático, porém, ele não se equipara a um desafio circunstancial, tal como a necessidade de construção de uma escola, ponte ou estrada em determinada localidade, uma vez que a fome é uma demanda permanente, e não se esgota com o simples fornecimento ocasional de alimentos.
De fato, saciar a fome hoje não significa que ela estará saciada amanhã. A fome também não se equipara a outras demandas de natureza contínua, como o direito à saúde, cuja complexidade é sempre crescente, tendo em conta o aumento da expectativa de vida e dos custos das pesquisas nesta área.
Desta forma, é preciso delimitar o problema da fome segundo suas características intrínsecas e peculiaridades locais. Só assim será possível compreender sua persistência, a despeito de décadas de esforços para combatê-la.
Em artigo publicado em 2021, Andrea Borghini e Davide Serpico expõem sua visão acerca da filosofia da fome: “A fome pode ser abordada, de um ponto de vista existencial, como um aspecto definidor da condição humana. Em outras palavras, a fome, entendida em um sentido amplo, é um modo primário de ser. Nascemos com fome. Estamos com fome há muito mais tempo do que podemos nos lembrar de estar vivos e bem antes de ganhar autoconsciência de nossos próprios prazeres.” (“Introdução: Compreendendo a Fome”, traduzido do inglês).
Mesmo com essa delimitação conceitual, o direito à alimentação possui uma relação visceral com outras questões igualmente desafiadoras, como pobreza, mudanças climáticas, produção de energia, regimes políticos, guerras e conflitos étnicos. De fato, essas questões impactam fortemente no aumento ou diminuição da fome no mundo. Questões culturais também influenciam, como o número de filhos e o grau de instrução, principalmente em regiões que segregam as mulheres do acesso à educação.
A historiografia indica que a agricultura surgiu com a civilização natufiana, na região do Levante. As culturas fundadoras do neolítico conseguiram domesticar o trigo, cevada, grão-de-bico, centeio, sorgo e até o milho.
De fato, das quatro espécies de teosintes, apenas o milho foi domesticado, permanecendo selvagens as demais espécies até os dias atuais. No Brasil, a domesticação da mandioca na bacia amazônica foi fundamental para a sobrevivência das populações nativas.
Mas desde o advento da agricultura e das grandes civilizações, a humanidade foi assolada por inúmeros episódios de fome nas mais diversas localidades.
Até o primeiro quartel do século XIX, a fome não era objeto de comiseração pública, sendo atribuída basicamente ao infortúnio dos famintos. Essa visão começou a se alterar com a publicação do romance “Oliver Twist” por Charles Dickens em 1837, mostrando um garoto órgão esfomeado em plena época vitoriana. Poucos anos depois, em 1845, adveio a Grande Fome na Irlanda, forçando a rainha Vitória a fazer uma doação considerável para aliviar seus efeitos, ficando conhecida como a Rainha da Fome. Além da literatura inglesa, a literatura francesa também abordou o problema da fome no clássico “Os Miseráveis”, publicado em 1862, alçando-a a preocupação mundial.
Atualmente, os níveis de insegurança alimentar são estratificados a partir de grupos específicos da população. De fato, a fome rural se distingue da fome urbana, que é geralmente atrelada ao consumo excessivo de álcool e drogas. E numa mesma localidade, os níveis de fome diferem a depender do padrão reprodutivo e da renda média das classes sociais.
Segundo a FAO, aproximadamente 0,8 bilhão de pessoas sofrem com o flagelo da fome. Patamar semelhantes de pessoas sofrem com a falta d’água, segundo a OMS. A fome não se confunde com o acesso à água, apesar de intimamente relacionadas. Podemos ilustrar a relação entre a pobreza, a fome e a sede por um diagrama de Venn, com a intersecção de três círculos. Assim, o universo de famintos nem sempre coincidirá com o de sedentos, apesar de os números da FAO e da OMS serem equivalentes. Mas os conjuntos não são disjuntos, havendo uma fatia considerável de pessoas na intersecção dos três círculos, sofrendo de pobreza, sede e fome simultaneamente ou sequencialmente.
A água não fornece energia nem micronutrientes, mas é essencial para os processos metabólicos, atuando como um solvente universal. Já a pobreza é um conceito mais abrangente, atingindo cerca de 1 bilhão de pessoas. Do contingente de famintos reportados pela FAO, 60% deles se situam na África Subsaariana e no Sul da Ásia, mas também houve expressivo aumento da fome na América do Sul. Desse total, uma grande parte é formada por crianças com nanismo e emagrecimento severo, tendo a desnutrição como principal causa, além de grávidas com anemia. Os seguidos relatórios FAO para crises alimentares indicam que a maioria dessas pessoas habitam aldeias em áreas rurais.
À fome costuma-se seguir graves agitações sociais e migrações massivas, desaguando invariavelmente em instabilidade política. Ou seja, a fome impulsiona um círculo vicioso que se retroalimenta, onde conflitos geram mais fome, que por sua vez acirra os conflitos. Além disso, o mundo atravessa constantes perturbações dos sistemas alimentares, como políticas comerciais, flutuações de mercado, práticas agrícolas, tensões geopolíticas, conflitos, deslocamentos refugiados, inundações e secas, além do desperdício de alimentos. A desnutrição impacta toda a sociedade atingida, causando enfraquecimento do sistema imunológico, com maior incidência de doenças e problemas no desenvolvimento cognitivo infantil. Além disso, os adultos desnutridos têm perda de produtividade no trabalho.
Longe do mero fornecimento de alimentos, é preciso encarar as diversas facetas da fome, que oscila ano a ano a depender de circunstâncias nacionais e globais. Sejam nos regimes ditatoriais em Cuba, Venezuela e Coreia do Norte, sejam nas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, a fome possui conexões com a cadeia de suprimentos globais e com as rotas comerciais navegáveis.
Por conta dessa dependência com a política, a imprensa reportou vários casos de racionamento de alimentos pela população. Muitos venezuelanos adultos mantiveram um peso corporal em torno de 40kg, para possibilitar a alimentação de suas famílias. Esse racionamento também ocorre entre os cubanos. Ao fim das Olimpíadas do Japão em 2021, um boxeador cubano que ganhou a medalha de ouro nos jogos ficou famoso ao ser contemplado com uma cesta básica pelo governo de seu país.
A geopolítica também é um fator relevante. De fato, a Ucrânia é um grande exportador de grãos, e os rumos da guerra afetam seu fornecimento para nações africanas. Durante o conflito, ocorreram ataques a navios de grãos ucranianos, bloqueio de portos e o fim de acordos sobre grãos, fazendo com que a inflação global dos alimentos disparasse, com o consequente aumento da fome.
É necessário lembrar que a fome ainda é usada como arma de guerra, seja na Ucrânia ou no Oriente Médio, bem como nos conflitos étnicos em solo africano. Como exemplo, a Guerra Civil de Tigray, travada nesta região da Etiópia, perdurou por exatos dois anos, de 03 de novembro de 2020 a 03 de novembro de 2022, tendo sido imposto um bloqueio de ajuda humanitária à população afetada pelo conflito, que sofreu com a fome durante todo esse período. A fome também foi extensivamente usada como tática de guerra para aniquilação de inimigos, como nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, vitimando tanto judeus quanto prisioneiros de guerra.
No âmbito da literatura, a pobreza é foco de diferentes visões, seja da dupla Abhijit Banerjee e Esther Duflo, ou da dupla Acemoglu e James Robinson. No geral, estes autores enfatizam que bens de consumo, como TVs e celulares modernos, além de itens domésticos, ficaram mais acessíveis à população de menor renda, ao passo que o acesso à saúde, educação e lazer ficaram mais caros.
Já quanto ao direito à alimentação propriamente dito, o autor Aparajita Mazumdar discorreu sobre os mecanismos de justiciabilidade e execução do direito à alimentação no contexto internacional de combate à fome. (“The Right to Food”, editora Scholars' Press, 2015).
De seu turno, o autor Francis Adams retomou esse tema de forma mais abrangente e atualizada, tendo como foco a atuação das Nações Unidas na América Latina, África, Ásia e Oriente Médio. O autor exalta as campanhas contra a fome lideradas pela ONU, estabelecendo quatro ordens de causas para o problema: econômicas, ambientais, políticas e internacionais. (“The Right to Food”, editora Palgrave Macmillan, 2020).
Na literatura brasileira, a “Direito à Alimentação e Segurança Alimentar” de Helena Telino Neves (editora Juruá. 2017), distingue a alimentação segura (food safety) da garantia à alimentação propriamente dita (food security), fazendo uma conexão com o direito administrativo, em especial com a função de fiscalização da qualidade dos alimentos, incluindo o sal alimentar, essencial para muitas funções corporais e cognitivas. Já a obra “Direito à Alimentação a partir das decisões do Supremo Tribunal Federal”, de Lidianne Kelly Lopes (editora Dialética. 2023) faz uma incursão nas decisões do STF sobre o direito à alimentação encartado no art. 6° pela EC 64/2010, proferidas entre 2010 e 2020, examinando a jurisprudência do Pretório Excelso sobre a exigibilidade e universalidade desse direito social.
Apesar da contribuição de diversos escritores para o tema da fome, prevalece em âmbito internacional o embate entre os autores Jeffrey D. Sachs e William Easterly. Este último acusa o rival de promover uma engenharia social utópica, tendo sua verve lhe rendido a demissão do cargo que ocupava no Banco Mundial. Suas obras costumam atacar a economia do desenvolvimento e o que denomina de tirania dos especialistas, com críticas contundentes à manipulação da ajuda humanitária fornecida pelos Estados Unidos.
Segundo Easterly, os aportes para combate à fome dos governos da Bélgica e da França em países africanos promoveram regimes corruptos e autoritários. Ele também destaca a forma como a Inglaterra dividiu o Oriente Médio após a Primeira Guerra Mundial, levando a conflitos intermináveis. O autor ainda compara os burocratas das agências multilaterais da economia do desenvolvimento a missionários e oficiais coloniais de séculos passados. Para ele, a solução para a fome deve por meio da adoção de objetivos pequenos, mas alcançáveis, ao invés de grandes programas recheados de metas ambiciosas e midiáticas, conhecidos como Big Push. De fato, a injeção de bilhões de dólares em países controlados por governos corruptos de partido único não surtiram efeito algum no combate à fome, a exemplo da Tanzânia, que recebeu muita ajuda, mas não teve nenhum retorno. No geral, as estimativas mais otimistas indicam que apenas 15% da ajuda externa para o combate à fome realmente chegam ao destino.
Os programas de fornecimento de alimentos também são alvo de numerosas denúncias de abuso sexual infantil. De fato, relatórios da ACNUR constataram uma série de violações de crianças refugiadas em países da África Ocidental, como Guiné, Libéria e Serra Leoa, entre os anos de 2000 e 2010, com a prática generalizada de troca de comida por sexo. Os relatórios também evidenciaram muitos casos de subnotificação, por medo de interrupção no fornecimento de alimentos por parte dos trabalhadores humanitários. Essa situação se assemelha aos notórios casos de exploração sexual por parte dos soldados da força de intervenção na República Centro-Africana e dos abusos cometidos pelos funcionários da Organização Mundial de Saúde na República Democrática do Congo.
Os atuais relatórios sobre a fome, elaborados pela FAO em coautoria com outras agências, como PMA, FIDA e UNICEF, conhecidos pela sigla SOFI, têm como foco três pilares básicos: clima, conflito e desaceleração econômica. O relatório de 2018 focou nas mudanças climáticas. Em 2019, o relatório teve como foco a desaceleração econômica, antes mesmo da pandemia, que incrementou as estatísticas da fome, mas se estabilizou em 2022. O último relatório indicou piora da fome em decorrência das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, com previsões alarmantes de que pode alcançar mais 150 milhões de pessoas até o final desta década.
No entanto, as estatísticas da fome podem indicar piora ou melhora no cenário global, a depender dos critérios utilizados para caracterizá-la. Assim como na definição de pobreza, os requisitos para definir uma pessoa faminta podem variar. Como regra, os relatórios das agências internacionais utilizam como critério a energia alimentar medida em calorias brutas, excluindo a ingestão de micronutrientes, como vitaminas e minerais. A depender da dieta adotada em determinadas regiões, esse critério pode incluir ou excluir milhões de pessoas nas estatísticas de subnutridos. Outros critérios têm sido sugeridos, como a possibilidade de a pessoa realizar trabalho manual, bem como a duração da subnutrição, que pode perdurar por um prazo curto ou longo, a depender dos períodos cíclicos de produção, que podem aumentar ou diminuir a escassez de alimentos.
Sob uma perspectiva coletiva, importa examinar a taxa de crescimento natural da população destes países, que é a diferença entre a taxa de natalidade e a taxa de mortalidade. Neste índice, a lista com as maiores taxas também é encabeçada pelos países da África Subsaariana e do Sul da Ásia.
Discorrendo sobre as dificuldades da parte austral do continente africano, Tim Marshall pontua: “No sul, porém, havia poucas plantas que se prestassem a ser domesticadas, e ainda menos animais. Grande parte da terra aí consiste em selva, pântano, deserto e platô de flancos escarpados, nenhum dos quais se presta ao cultivo de trigo ou arroz, nem a alimentar rebanhos de ovelhas. Os rinocerontes, as gazelas e as girafas da África recusam-se teimosamente a ser bestas de carga…A maior parte dos rios do continente também representa um problema, pois eles começam em terreno elevado e descem em quedas abruptas que impedem a navegação.” (Prisioneiros da Geografia, editora Zahar, 2017, p. 124)
Para amenizar o problema, a Assembleia Geral da ONU criou o Fundo Central de Resposta a Emergências em 2005 por meio da Resolução 46/182. De fato, a fome é um efeito secundário de emergências, como chuvas torrenciais, terremotos e tsunamis. No entanto, há muito constatou-se que a necessidade de ajuda aumenta a cada ano e ultrapassa constantemente as provisões disponíveis.
O mero fornecimento de alimentos também pode causar distorções econômicas não intencionais nos locais beneficiados, como desincentivo à produção e ao trabalho, bem como alterar as preferências de consumo, com efeitos que perduram ao longo do tempo. De fato, os aportes contra a fome podem reduzir o preço dos produtos locais, já que aumentam a oferta de outros gêneros alimentícios e reduzem a procura por produtos da região. Também é comum os beneficiários usarem parte dos alimentos recebidos para trocarem por outros produtos básicos, impactando no comércio local.
Diversos levantamentos indicam que as regiões beneficiadas com o fornecimento de alimentos sofrem diminuição na produtividade agrícola em médio prazo, por desincentivo aos produtores locais, o que pode resultar numa fome ainda maior nos períodos subsequentes de escassez.
A simples entrega de alimentos pode causar ainda distorções no mercado de trabalho, já que o emprego nos programas de ajuda são melhor remunerados que o trabalho no mercado local, gerando escassez de mão de obra. O trabalho nos programas pode variar entre as regiões beneficiadas, podendo ser alternativo ou adicional ao trabalho na economia local. No entanto, os levantamentos indicam que esse trabalho se restringe às famílias de maior renda, devido às limitações de mão de obra das famílias de renda menor. Além disso, o recebimento de alimentos, aliado ao salário nos programas de ajuda, que costuma ser maior que a média local, podem criar uma dependência nas famílias beneficiadas, atingindo a produção familiar.
Levantamentos feitos nas regiões rurais da Etiópia e do Camboja mostraram que programas mal concebidos podem causar mais prejuízos à produção local do que os benefícios com a distribuição gratuita de alimentos, advindo efeitos prejudiciais que perduram ao longo do tempo.
Calcula-se que já foram gastos 2,3 trilhões de dólares no combate à pobreza e à fome desde a década de 1970. Em 2024, a reunião do G20 criou mais um programa ambicioso de combate à fome, buscando estabelecer uma fonte de custeio permanente, como a taxação de bilionários, na esteira de vários outros programas do gênero lançados nas últimas décadas. Mas é consenso que nem toda a fortuna dos bilionários resolveria em definitivo o problema da fome no mundo, porque em muitos casos ela é apenas o reflexo mais cruel de problemas muito mais profundos e complexos.
Com a pandemia, houve um crescimento anormal na quantidade de pessoas com fome no mundo. Isso ensejou um embate nas redes sociais entre o diretor da agência da ONU para alimentos e os bilionários Elon Musk e Jeff Bezos. O diretor instigou-os a destinar 2% de suas fortunas para o combate à fome, o que daria cerca de 6,6 bilhões de dólares no caso do primeiro. Elon Musk respondeu ao chamado dizendo que aceitaria realizar a doação, caso se adotasse uma contabilidade de código aberto, com informações precisas e transparentes sobre o destino dos recursos. Em seguida, o diretor detalhou um plano para distribuir refeições e vouchers imediatos para 42 milhões de pessoas em 43 países. Uma parte do dinheiro seria usada para entrega direta de alimentos, outra parte para compra de alimentos no local afetado, quando fosse possível, e o restante usado para gerenciar a assistência. No final, houve uma doação para a Fundação Musk no valor de 5,7 bilhões de dólares, sem detalhamento do destino deste aporte.
Ainda no campo da filantropia, a Aliança Global contra a Fome do G20 atraiu outros bilionários, que utilizaram suas fundações para intermediar doações. Em outubro de 2024, a Fundação Rockefeller destinou uma vultosa quantia para o fornecimento de refeições escolares.
Em novembro de 2024, empresários do setor de moda do City Meals promoveram um jantar de arrecadação de fundos para o fornecimento de 150 mil refeições a idosos nova-iorquinos carentes. Em abril de 2024, a Fundação Heinz, multinacional do setor de alimentos, famosa por seu ketchup, doou 15 milhões de dólares para o programa Rise Against Hunger, uma iniciativa que busca fornecer 5 milhões de refeições adquiridas nas próprias regiões afetadas e apoiar a agricultura local. Além disso, a companhia disponibilizou seus próprios funcionários para atuarem como voluntários no programa de ajuda.
Mas esse foco em bilionários e na filantropia não parece ser a solução definitiva para o problema da fome. Afora as questões étnicas, institucionais e geopolíticas, essa questão também é fortemente impactada pelas mudanças climáticas, sejam naturais ou antropogênicas.
Do ponto de vista histórico, a erupção no Monte Tambora em 1815 criou um inverno vulcânico que afetou drasticamente a produção de alimentos em todo o mundo. Já a fissura vulcânica de Laki, na Islândia, passou oito meses em erupção entre 1783/1784, desencadeando o chamado Grande Medo, com hordas de famintos invadindo as grandes cidades europeias, gerando insurreições que antecederam a Revolução Francesa de 1789, e puseram fim ao regime de feudos. Atualmente, situação semelhante se passa no continente com a crise de refugiados e a imigração ilegal.
Retrocedendo ainda mais no tempo, a Grande Fome de 1315/1317 ocorreu décadas antes do surgimento da peste negra, e pôs fim a um período de prosperidade na Europa, que passava por uma explosão demográfica. Ela foi causada por chuvas implacáveis e frio intenso, fazendo com que os grãos não germinassem, aliada ao crescimento exponencial da população, decorrendo daí assassinatos em massa de crianças e incidentes recorrentes de canibalismo. Também era comum as pessoas violarem os túmulos de recém-mortos para se alimentarem de seus restos. Neste caso, a saturação da terra e o excesso de umidade impediam as colheitas e dificultavam o transporte do que restava. A fome atingiu até os reis, como Eduardo II da Inglaterra. Durante a crise, muitas crianças foram abandonadas nas florestas à própria sorte, para tentarem sobreviver sozinhas, como no conto de João e Maria.
A Grande Fome ocorreu num período de transição no Hemisfério Norte entre o período quente medieval e a pequena idade do gelo, que desencadeou outros episódios semelhantes no decorrer do século XIV. Mas havia uma grande diferença para as pestes, já que estas duravam meses, enquanto a fome durava anos.
Os eventos acima decorreram de causas naturais. No entanto, o mundo passa atualmente por mudanças climáticas antropogênicas que estão impactando no aumento da fome em diversas partes do planeta.
Mas além das causas climáticas, a fome também decorre de questões políticas e ideológicas. O lysenkoismo foi uma ideologia que rejeitou a agricultura baseada na ciência, que usava genética e seleção natural, admitindo apenas o lamarckismo, com autorização apenas para uso do enxerto e da floração por exposição ao frio. Essa ideologia científica foi adotada oficialmente pela União Soviética na década de 1930, levando à execução de três mil biólogos. O fanatismo científico levou à morte milhões de pessoas, como na Grande Fome Ucraniana, que ocorreu entre 1932 e 1933. Neste período, o canibalismo e a violação de sepulturas foram liberadas pelas autoridades como meio legítimo de sobrevivência.
O bloqueio de alimentos e a coletivização forçada já haviam levado à morte pela fome cerca de cinco milhões de pessoas na Rússia em 1921. Nesta época, o governo chegou a recusar ajuda externa, temendo interferência estrangeira no país.
Já no Hemisfério Sul, entre os anos de 1958 e 1962, a China vivenciou um período de coletivização forçada na agricultura e bloqueio de alimentos aos opositores, levando dezenas de milhões de pessoas à morte por inanição. Neste período, também eram comuns o canibalismo e a violação de túmulos. Oficialmente, o governo chinês alegou problemas climáticos, mas os arquivos da época, tornados públicos recentemente, comprovam que a alegação é falsa, já que não faltavam alimentos, mas eram confiscados e manipulados politicamente.
No Brasil, houve uma grande seca entre 1877 e 1879, decorrente do fenômeno El Niño, que levou meio milhão de pessoas à morte pela fome e sede na região nordeste, o equivalente a 5% da população do império. Em 1915, uma nova seca devastou a região, criando hordas de flagelados rumo às cidades maiores do litoral. Nesta época, o governo brasileiro enviou grandes navios a vapor carregados com alimentos para a Bélgica, que sofria com a fome imposta pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial, ao passo em que os flagelados da seca foram acomodados em currais humanos.
Na chamada “Guerra de 14”, foi criada a Liga brasileira para os Aliados, na esteira de diversas outras ligas fundadas no exterior. A liga brasileira foi presidida por Ruy Barbosa, e arrecadou vultosos recursos para ajudar a população belga, que sofria com a fome decorrente do bloqueio nazista. Na época, a Bélgica importava 80% dos alimentos consumidos pela população. Essa ajuda brasileira aos belgas não foi bem vista por alguns setores da sociedade, afinal, existiam muitos brasileiros famintos no rescaldo da Guerra do Contestado na região Sul e na seca de 1915 no nordeste.
Em agradecimento à ajuda brasileira, o rei belga Alberto I, que lutou na guerra até 1918, estava em trajes de banho na orla de Copacabana em 1920, tornando-se o primeiro monarca europeu a visitar a América do Sul.
A “Guerra de 14” ainda ficou conhecida por um episódio desastroso para a marinha brasileira. Após seguidos naufrágios de vapores e navios de guerra, a marinha estava temerosa quanto aos torpedos dos submarinos alemães. Assim, ao avistar os focinhos fora d’água de um cardume de toninhas, um animal semelhante ao golfinho, os militares pensaram se tratar de periscópios, ordenando um ataque maciço que resultou na morte de vários animais.
Estes episódios dramáticos da história recente mostram que a fome nem sempre é causada apenas pela escassez de alimentos. De fato, os eventos climáticos são determinantes em muitos casos, seja na seca que dizimou o império Maia no ano 1000, ou na seca centenária que ainda devasta a região do Chifre da África. Esta localidade alberga seis nações, tendo a seca atual aniquilado o gado e as plantações. Mas em muitas ocasiões o fornecimento de alimentos em regiões conflagradas frequentemente é ineficaz, e em alguns casos pode até acirrar o conflito.
Levantamentos feitos na Somália constataram que o tipo de ajuda humanitária e a forma como é recebida podem ter o efeito não intencional de prolongar o conflito armado. Se de início a fome é amenizada pela ajuda, ela recrudesce a médio prazo com o acirramento das hostilidades. Outro levantamento feito no Iraque mostrou que a simples distribuição de alimentos, sem critérios eletivos, também pode acirrar a polarização étnica no local afetado pela fome, com consequências devastadoras.
Por desconhecer essa realidade catastrófica, alguns círculos teimam em comparar o atual estágio de desenvolvimento tecnológico com a persistência da fome no mundo.
Não se nega que o advento da tecnologia no campo em países desenvolvidos proporcionou a terceira revolução agrícola, que se espalhou pelo restante do planeta até a década de 1980, proporcionando ganhos maciços de produtividade. São exemplos desta revolução a incorporação de fertilizantes industriais, pesticidas, técnicas de irrigação e o uso de cereais de alto rendimento, como arroz e trigo anão.
Mas nem toda essa tecnologia impediria que a fome se alastrasse por extensas regiões do globo, mostrando que ela é apenas o reflexo mais cruel de problemas muito mais profundos.
De fato, em termos tecnológicos, a primeira viagem humana interplanetária já está no horizonte. A agência espacial americana está em estágio avançado de desenvolvimento de um foguete que diminui o tempo de viagem para Marte de dois anos para dois meses, utilizando um sistema de propulsão com pulsos de plasma superaquecido que geram um empuxo maior, reduzindo substancialmente a exposição dos tripulantes à radiação. A agência também toca um ambicioso projeto para o retorno do homem à Lua nos próximos anos.
Já na iniciativa privada, a SpaceX desenvolve naves espaciais reutilizáveis, que retornam à Terra para buscar suprimentos. O planeta Marte se alinha com a Terra a cada dois anos, encurtando a viagem interplanetária. Com isso, especula-se que em 2026 será a primeira janela de oportunidade para a viagem. Além disso, serão construídas moradias na forma de pequenas cúpulas de vidro e desenvolvidos trajes espaciais apropriados. A imprensa chegou a divulgar que o bilionário dono da empresa, que já tem doze filhos, doaria o próprio esperma para semear uma colônia marciana.
Afora os desafios da viagem em si, há outros obstáculos, como a produção de alimentos em Marte. Nesse tema, os projetos também estão avançados, com o desenvolvimento de estufas para agricultura vertical, alimentos hidropônicos, proteína microbiana, cultivo de insetos, carne in vitro e até impressão 3D de alimentos. Também há projetos para a fabricação de carne por meio de fermentação de precisão, utilizando fungos e leveduras. Cianobactérias serão usadas para crescer no regolito arenoso que recobre a superfície marciana, a fim de produzirem moléculas orgânicas. Essa medida é necessária para contornar a toxicidade dos percloratos espalhados pelo regolito. Esses projetos se somam à extração de água do gelo marciano e de minerais do subsolo.
Todo esse avanço faz eclodir um paradoxo inevitável. Se o homem pode contornar os desafios de alimentar uma colônia marciana, criando um sistema alimentar funcional em Marte, o que o impede de fazer o mesmo com as populações terrestres? Esse paradoxo existe desde o início da exploração espacial, com comparações entre o estágio de avanço tecnológico e a persistência de milhões de famintos no mundo.
Mas esse avanço não se resume às viagens espaciais, sendo visto também na construção de mega estruturas, como as recentes pontes chinesas semelhantes a arranha-céus que atravessam o oceano. A China também se destaca na Big Science, investindo bilhões de dólares em grandes equipamentos de pesquisa, como o JUNO para detecção de Neutrinos, o LHAASO no Tíbet para detecção de raios cósmicos e raios gama, o HEPS para radiação síncrotron e o CJPL para detecção de matéria escura.
Por fim, é importante lembrar que este avanço não se limita à tecnologia construtiva, havendo igualmente o desenvolvimento de mísseis hipersônicos capazes de voar metade da circunferência da Terra, deslocando-se através de sua órbita baixa, com potencial para destruir países inteiros.
A diferença tecnológica entre os países também é objeto de análise. Desde Adam Smith que se reconhece uma diferença na tecnologia manufatureira entre as nações. Mas mesmo este escritor não via diferença significativa entre os países na produção de alimentos. Essa realidade foi radicalmente alterada desde a publicação de A Riqueza das Nações, no século XVIII, havendo atualmente grandes celeiros mundiais, como o Brasil, EUA e Ucrânia. Mas as mudanças climáticas podem alterar esse padrão, prevendo-se o deslocamento das extensas áreas agricultáveis do meio-oeste dos EUA para o Canadá.
Adam Smith aprofundou-se nesta diferença de produção entre os países, percebendo que ela é maior na manufatura, e menor na produção de alimentos, com base nas semelhanças entre a Polônia, França e Inglaterra. Para ele, essa realidade criaria disparidades quanto ao luxo. Segundo sua palavras: “Em comparação com o luxo extravagante dos grandes, as necessidades e pertences de um operário certamente parecem ser extremamente simples e fáceis e, no entanto, talvez seja verdade que a diferença de necessidades de um príncipe europeu e de um camponês trabalhador e frugal nem sempre é muito maior do que a diferença que existe entre as necessidades deste último e as de muitos reis da África, que são senhores absolutos das vidas e das liberdades de 10 mil selvagens nus.”
Atualmente, essa luxúria se estendeu para os alimentos, com restaurantes servindo carnes banhadas a ouro, enquanto milhões de esfaimados rastejam no chão, sem forças sequer para ficar de pé. Em casos extremos, mas reais, populações de aldeias rurais são submetidas à indignidade de praticar o canibalismo fratricida como forma de prolongar a sobrevivência, sem vinculação com a cultura antropofágica.
É necessário diferenciar as situações específicas em cada caso. O combate à fome em ambientes de normalidade social e institucional é bastante facilitado, resumindo-se basicamente à produção e distribuição de alimentos para as regiões afetadas. Basta lembrar que o mundo já produz mais alimentos que o necessário para alimentar toda a população mundial.
Além disso, o crescimento do PIB per capita em países emergentes, como a Índia e países do Oriente Médio e do Sul da Ásia, estimula o aumento do consumo de alimentos como opção prioritária no gasto da renda extra, tornando-se uma alternativa vantajosa para países produtores, como o Brasil.
Mas nem sempre esse é o caso, havendo muitas regiões conflagradas por conflitos étnicos profundos. É dessa realidade conflituosa que surgem os maiores cortiços do mundo, como Dharavi em Mumbai, Orangi no Paquistão e Kibera em Nairóbi.
É importante ressaltar também que o combate à fome foi prejudicado pela exploração midiática sensacionalista. O filme “Ilha das Flores”, de 1989, retrata de forma dramática uma população no Rio Grande do Sul sendo alimentada com os restos de comida que foram rejeitados pelos porcos, causando grande comoção no país. Apesar de o filme anunciar ter se baseado em fatos reais, a reportagem "Ilha das Flores: depois que a sessão acabou" mostrou o contrário. De fato, os depoimentos dos atores locais que encenaram os famintos mostram que tudo não passou de uma grande farsa urdida em sigilo pelo diretor do filme, sem que houvesse a concordância dos participantes.
Uma alegoria do filme pode ser vista na natureza, onde os leões devoram a carne fresca de suas presas e relegam as carcaças às hienas. O enredo do filme também contém semelhanças com a parábola do filho pródigo, que desejava comer as bolotas dos porcos, mas ninguém lhe dava nada.
Existem ainda outras referências bíblicas à fome, destacando-se o livro do Gênesis (“O Senhor Deus fez brotar do solo todo tipo de árvores, árvores agradáveis à vista e boas para alimento”) e Romanos (“Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber”).
Mas nem mesmo os filmes de Hollywood espelham a realidade, pois utilizam atores bem nutridos para interpretar indigentes famintos pedindo comida. Na verdade, corpos esquálidos são difíceis de alcançar sem que estejam realmente submetidos à subnutrição.
Do ponto de vista histórico, esse sensacionalismo também atingiu a rainha Maria Antonieta. A ela é atribuída a frase “se não têm pão, que comam brioche”, numa postura debochada com o povo faminto nas vésperas da revolução francesa, que bem podia ser chamada de revolução famélica. O brioche é um pão mais elaborado, que leva ovos na sua fabricação. Mas essa postura soberba e aviltante é tida atualmente como um boato inverossímil carente de fontes.
Já nos tempos modernos, o fotojornalista Kevin Carter ganhou o prêmio Pulitzer em 1994 pela fotografia “O Abutre e a Menina”. Quatro meses após receber o prêmio, ele cometeu suicídio. A fotografia mostrou o corpo raquítico de uma garota sudanesa faminta sendo observado por um abutre, que aguardava sua morte. A fotografia foi tirada em março de 1993, em Ayad, atual Sudão do Sul. O local formava o famigerado triângulo da fome no Sudão na década de 1990, onde centenas de pessoas morriam de fome diariamente. Mas apesar de toda a comoção da imagem, a menina conseguiu chegar com vida ao centro de alimentação das Nações Unidas. Em ensaio publicado uma década após a fotografia, a jornalista Susan Sontag acusou a exploração da imagem pela mídia como puro voyeur.
Mas a fome também era uma constante no cenário brasileiro. Em meados da década de 1980, a hiperinflação atingiu os alimentos. Aliada à baixa produtividade agrícola, essas duas causas fizeram eclodir ondas de saques pelo país, levando os governantes a olhar para a fome com mais seriedade, daí advindo medidas efetivas de combate.
A partir daí, as pesquisas agrícolas no cerrado e o manejo hídrico fizeram com que a produtividade e a produção de alimentos disparassem no Brasil. Apesar dos avanços desde a década de 1970, o Brasil ainda enfrenta o dilema de incluir no PIB extensas áreas com potencial para produção de alimentos.
Uma comparação pode aclarar esse dilema. O estado de Goiás está entre os dez maiores PIBs per capita do Brasil, principalmente por conta da produção de alimentos. Já o estado do Maranhão está em último lugar, ostentando o pior PIB per capita do país. Apesar da proximidade geográfica entre os dois estados, eles possuem biomas diferentes. Mas os mapeamentos revelam que o território do Maranhão possui grande aptidão agrícola, em especial nas mesorregiões Centro e Sul. No entanto, a maior parte deste potencial não é aproveitado.
Foram investidos vultosos recursos para incentivar economicamente a produção de alimentos no Maranhão, mas esse desenvolvimento esbarra na falta de mão de obra. Ainda assim, o estado conseguiu produzir uma grande quantidade de grãos, como soja e milho, além de fertilizantes, que foram escoados pelo porto de Itaqui. O desafio de produzir alimentos também é enfrentado em extensas áreas da região nordeste, em especial nos bolsões por onde passa as águas da transposição do rio São Francisco.
A complexidade do combate à fome pode ser vista na imensa Reserva Yanomami. Lá ocorrem vários óbitos por desnutrição a cada ano, a despeito das seguidas campanhas de ajuda. Daí constata-se que só o fornecimento de alimentos não resolve a crise humanitária por que passam esses povos tradicionais.
Apesar da vulgarização da alegoria, é possível que o atual desenvolvimento tecnológico realmente resolva o problema da fome, até onde o verbo “resolver” pode ser aplicado.
No início do século XX, em 1909, Fritz Haber obteve amônia sintética por meio do processo conhecido como Haber-Bosch. Essa descoberta química está por trás da fabricação dos fertilizantes nitrogenados sintéticos, que possibilitam alimentar até metade da população mundial.
Freeman Dyson cita outros avanços igualmente importantes: “As tecnologias que têm produzido os maiores impactos sobre a vida humana em geral são simples. Um bom exemplo de tecnologia simples com consequências históricas profundas é o feno. Ninguém sabe quem inventou o feno, a ideia de cortar o capim no outono e armazená-lo em quantidades suficientes para manter os cavalos e as vacas vivos durante o inverno…Segundo a teoria da história do feno, a sua invenção foi o evento decisivo que mudou o centro da civilização urbana da bacia mediterrânea para a Europa setentrional e ocidental.” (Infinito em Todas as Direções, editora Companhia das Letras, 1988, p. 169).
Mais à frente, o autor preconiza com certa dose de ufanismo: “Um dos benefícios da revolução da engenharia genética será podermos tornar economicamente produtivas grandes áreas do planeta sem destruir sua ecologia natural. Em vez de destruir florestas tropicais para dar lugar à agricultura, poderemos deixar a floresta em seu lugar, enquanto ensinamos as árvores a sintetizar várias substâncias químicas úteis. Várias áreas de terras áridas poderiam ser tornadas produtivas para a agricultura ou para a indústria química.” (Infinito em Todas as Direções, editora Companhia das Letras, 1988, p. 337).
Dyson escreveu essa previsão no final da década de 1980. Apesar da expectativa exagerada do autor, atualmente a engenharia sintética e a biologia sintética possibilitaram a fabricação de diversos alimentos sintéticos, como ovos, leite e frutos do mar. Também pode ser citado o desenvolvimento da fórmula infantil. Segundo a OMS, caso a fórmula siga os padrões do codex alimentarius, pode ser um substituto adequado ao leite materno.
A tecnologia pode finalmente trazer um alento contra a persistência da fome, por meio de pesquisas modernas com fungos, como o micélio e a neurospora. Se antes os fungos eram vistos como pragas agrícolas, hoje podem ser a solução para a fome no mundo. Mas mesmo todo esse avanço tecnológico não é capaz de sobrepujar os conflitos humanos.
No imaginário popular, dois eventos se destacam como possíveis revoluções científicas que se avizinham: a primeira viagem humana interplanetária e a reversão da tetraplegia. Mas essa revolução advirá realmente com o fim da fome e da malária, dois flagelos que afligem a humanidade há milênios, e que podem ter chegado ao fim nesta década.
A fome é um cobertor maligno que recobre extensas regiões do planeta, e muitas outras estão num estágio limiar que precede a fome crônica. Há uma constrangedora estagnação nos esforços atuais de combate à fome no mundo, muito em virtude da manipulação política e dos vícios que cercam a ajuda humanitária, cuja ineficácia fez desvanecer o impulso solidário.
Ainda que chegue o dia em que a fome seja finalmente controlada, ela jamais será erradicada, como a varíola. A qualquer momento a ameaça da fome pode ressurgir, demandando uma vigilância constante.
Diante da ameaça de mudanças climáticas, o que se viu durante a emergência global da pandemia de COVID-19 pode se repetir. De fato, durante o surto pandemiológico, a solidariedade entre os povos deu lugar a um embate fratricida, com nações usando seu poder para confiscar material médico transportado em navios em alto mar ou atracados em portos estrangeiros, bem como em aeroportos espalhados pelo mundo, num retorno aos tempos da pirataria caribenha.
E uma nova emergência global de alimentos é prevista para um futuro próximo, podendo desencadear uma nova onda de confiscos dos enormes navios graneleiros e aviões de carga com alimentos. Não à toa os países buscam a autossuficiência na produção de alimentos e fertilizantes, ou diminuir sua dependência estrangeira.
Os tratados de direitos humanos possuem um papel na concretização do direito à alimentação e combate à fome. Estes tratados contemplam atualmente quase 500 direitos, em decorrência da inclusão de novos a cada ano. Doutrinadores internacionalistas há muito advertem que este método costuma enfraquecer os direitos mais básicos. Afinal, a grande questão dos direitos humanos não é mais sua previsão, mas sua eficácia. E os direitos mais essenciais acabam negligenciados, como o direito à alimentação, objeto dos primeiros objetivos de desenvolvimento sustentável - ODS.
Para efeito de comparação, a ONU entende que o acesso à internet é um direito humano. No Brasil, a PEC 08/2020 busca inserir o direito fundamental à internet dentre os direitos elencados no art. 5º da Constituição Federal. Isso o tornaria um autêntico direito individual, com natureza de direito civil, ostentando fundamentalidade e exigibilidade maiores que o próprio direito à alimentação, inserido formalmente dentre os direitos sociais no art. 6º da CF.
Logo, o direito à alimentação deve ser encarado como um direito de titularidade coletiva, albergando os lares das comunidades, sem se resumir ao indivíduo. A redação do art. 196 da CF pode servir de orientação para o intérprete, bastando a substituição do termo “saúde” por “alimentação” e do termo “doença” por “fome”. Assim, a exemplo do direito à saúde, o combate à fome deve ser feito por meio de políticas públicas e ações coletivas.
Para tanto, a Lei n° 14.628/2023, que instituiu o Programa de Aquisição de Alimentos, juntamente com a LOSAN - Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, compõem o Direito Humano à Alimentação Adequada -DHAA.
Mas a exigibilidade do direito à alimentação, tanto a nível nacional quanto global, não pode ofuscar a realidade inescapável da enorme dificuldade prática em sua concretização, superando-se a visão tacanha do mero fornecimento de alimentos. É fundamental que as circunstâncias causadoras da fome sejam contornadas, como os conflitos étnicos, bem como a situação especial de populações nômades de cultura paleolítica, como os Yanomamis. Essa postura deve se aliar às pesquisas tecnológicas, buscando contornar os obstáculos climáticos. Somente assim a aniquilação da fome realmente advirá de forma duradoura.
À guisa de conclusão, é preciso lembrar que a era dos grandes pactos globais ficou no passado. Para que o combate à fome retorne à vitrine mundial, os países devem reconhecer a complexidade do problema, estabelecendo metas trimestrais realizáveis, com a participação dos atores públicos e privados.
REFERÊNCIAS
Adams, Francis. The Right to Food, editora Palgrave Macmillan, 2020.
Blas, Javier. Farchy, Jack. O Mundo à Venda, editora Alta Cult, 2022.
Bulos, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, 2018.
Dyson, Freeman. Infinito em Todas as Direções, editora Companhia das Letras, 1988.
Júnior, Nelson Nery. Nery, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado, editora Revista dos Tribunais, 13° edição.
Lopes, Lidianne Kelly. Direito à Alimentação a partir das decisões do Supremo Tribunal Federal, editora Dialética. 2023
Marshall, Tim. Prisioneiros da Geografia, editora Zahar, 2017.
Mazumdar, Aparajita. The Right to Food, editora Scholars' Press, 2015.
Neves, Helena Telino. Direito à Alimentação e Segurança Alimentar, editora Juruá, 2017.
Sarlet, Ingo Wolfgang. Comentários à Constituição do Brasil, editora Saraiva, 2013.
Sarlet, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, editora Livraria do Advogado, 10º edição, 2009.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A exigibilidade do direito humano à alimentação e a persistência da fome. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jan 2025, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3784/a-exigibilidade-do-direito-humano-alimentao-e-a-persistncia-da-fome. Acesso em: 10 jan 2025.
Por: Benigno Núñez Novo
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