São Paulo está fazendo escola. Depois de sua rigorosíssima lei antifumo, que baniu até os fumódromos, outros estados e cidades estão implementando medidas de teor semelhante. A imprensa, previsivelmente, deu apoio total a essa medida. Eventuais críticos da lei foram chamados, na melhor das hipóteses, de ignorantes e mentecaptos. Afinal de contas, essa espécie de medida teria a melhor das intenções possíveis, não é?
Tem-se repetido exaustivamente que o fumo, sem dúvida nenhuma, é prejudicial aos próprios fumantes e àqueles que ficam expostos à sua fumaça. Além disso, considera-se imprescindível que os não fumantes sejam devidamente protegidos do fumo passivo. Infelizmente, essas questões não são tão simples quanto querem fazer parecer e, em vez da objetividade científica pretendida, há uma profunda contaminação ideológica.
A primeira ideologia submersa em todo esse discurso é o cientificismo. Essa doutrina considera que os conhecimentos científicos são a única fonte confiável a respeito da realidade. Mais ainda: o que é científico torna-se definitivo, inquestionável. Com uma frequência espantosa, somos bombardeados com pesquisas que indicariam os infindáveis males do cigarro e congêneres. No Brasil, essas pesquisas nunca foram colocadas em dúvida, o que lhes dá um ar de verdade absoluta.
É preciso deixar claro que ciência e verdade “absoluta” ou “definitiva” são conceitos absolutamente inconciliáveis. Acreditar nessa correlação é ter uma fé, que nada difere da religiosa, na inteligência e na imparcialidade dos cientistas. Também é acreditar que o método científico é poderoso o bastante para, sem erros, abarcar toda a realidade. Na verdade, a ciência é caracterizada necessariamente, nas palavras de Karl Popper, pela falseabilidade ou refutabilidade, ou seja, pela possibilidade lógica de qualquer assertiva ser considerada falsa por meio de outros experimentos científicos. Essa limitação da ciência também já foi demonstrada por Thomas Khun, em seu clássico “A Estrutura das Revoluções Científicas”. De acordo com ele, a ciência de cada época tem seus paradigmas (pontos indiscutíveis), que podem ser completamente desacreditados posteriormente.
Assim, mesmo que todas as pesquisas científicas indicassem o fumo como causador de doenças, não se poderia afirmar categoricamente esse fato. Esse não é o caso, porém. Nos Estados Unidos, há vários questionamentos a respeito da validade dessas pesquisas. Por outro lado, também há entendimentos no sentido de que o fumo pode fazer bem à saúde, sendo fator de prevenção de doenças como Parkinson e Alzheimer. Nesse sentido, pode ser conferido o livro de William Campell Douglass: “The Health Benefits of Tobacco” (em tradução livre – “Os Benefícios do Tabaco à Saúde”).
A questão da limitação metodológica da ciência adquire, quanto ao fumo, importância crucial. Sabe-se, em Filosofia da Ciência, o quão problemático é estabelecer relações de causa e consequência. David Hume tratou do tema de maneira bastante radical ao afirmar que o conceito “causa” não tem existência real. Sem compartilhar desse radicalismo, percebo que as pesquisas relativas aos “males do fumo” estabelecem a relação fumo–doença de forma espantosamente automática. São comuns afirmações simplistas como “toda vez que um fumante morre em decorrência de uma doença respiratória, pode se considerar o fumo como causa remota de sua morte”. Todas as outras possibilidades são sumariamente descartadas. Também são comuns sentenças que beiram o histerismo, como “não há nenhum nível seguro de exposição para o fumante passivo”. Essa última afirmativa soa ainda mais surreal em vista do fato de que a exposição casual à fumaça do cigarro (algumas horas por semana) equivale a aproximadamente um décimo de milésimo daquilo que o fumante absorve.
Na incessante “batalha” contra o fumo, o cientificismo não está sozinho. Há outra ideologia cada vez mais atuante hoje em dia: o healthism, neologismo intraduzível formado pela junção das palavras health (saúde) e totalitarianism (totalitarismo). Trata-se de uma doutrina que acredita ser a saúde um tema que não diz respeito somente aos indivíduos, mas principalmente ao Estado. Assim, o Poder Público deve utilizar propaganda e mesmo medidas coercitivas para impor à população aquilo que é considerado como um estilo de vida saudável. Nesse sentido, teríamos uma “sociedade doente” que precisa ser “re-educada” pelo Estado. Finalmente, a saúde seria um “supervalor”, uma verdadeira metáfora de tudo o que há de bom na vida.
Há um fundamento filosófico perturbador no healthism: as pessoas não têm capacidade moral de tomar suas próprias decisões e, por isso, devem ser guiadas pelo Estado. Considera-se que todos, mesmo os adultos na posse normal de suas faculdades mentais, devem ser protegidos, inclusive de si mesmos. Ninguém teria, assim, o direito de adotar comportamentos considerados perniciosos à sua saúde.
Essa política tem base firme no medo. Provavelmente, a civilização ocidental laica trouxe aquilo com o qual o homem da Idade Média não se preocupava: o temor da morte. Vivemos com a ilusão de que a ciência progride no sentido de dar-nos a vida eterna. É sintomática a afirmação corrente de que vivemos em uma “sociedade de risco”. Essa ideia é totalmente desmentida pela simples realidade: em quase todos os países do mundo, são inéditos os níveis de expectativa e qualidade de vida. Porém, ela diz muito sobre nossa época: trata-se, de fato, de uma sociedade que busca evitar o risco a todo custo e que percebe, amedrontada, a sua inflexível permanência, mesmo em níveis consideravelmente inferiores aos de tempos passados. Também é comum falar-se de “sociedade hedonista”, cujo principal valor seria a busca incessante do prazer. Mais uma vez, a realidade é afastada: o medo faz de nós muito mais uma “sociedade higienista”, centrada na segurança e na saúde, do que hedonista.
Nesse panorama, aquilo que deveria ser uma decisão individual – expor-se ou não ao fumo –, fica centralizado nas mãos da burocracia estatal, que sempre diz agir em nome de uma abstração chamada “interesse público”. Essa é uma tendência que não diz respeito apenas ao fumo, mas a diversas áreas da vida social. O próximo “inimigo a ser derrotado” é, provavelmente, o açúcar, considerado como o “fumo do século XXI”. Muitos outros virão. Existem diversas propostas que têm o objetivo de limitar o comércio e a publicidade de produtos considerados “não saudáveis”.
A alternativa é bastante simples: respeitar todos os seres humanos adultos como capazes de, em posse das informações necessárias, tomarem suas decisões, mesmo que sejam “indubitavelmente prejudiciais” à sua própria saúde. Na questão do fumo, os cidadãos, suficientemente informados dos riscos, poderiam optar entre frequentar estabelecimentos em que ele lhe seja permitida essa prática ou aqueles em que haja proibição.
Caso contrário, assistiremos à perda progressiva da liberdade e da privacidade em nome do objetivo mítico de construir um “ser humano melhor”, em uma sociedade perfeita, livre da doença, do sofrimento e da morte. Por sinal, era o que pretendia Hitler, o primeiro governante a combater tenazmente o cigarro.
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