O pacote do governo americano foi rejeitado. As bolsas despencam.
Na verdade, desvela-se o nada. Multidões morreram por conta desse capital inflado como um balão de gás podre. Uma bolha de sabão de mau gosto. O capitalismo conta suas quebras, suas dores e tenta salvar seus ossos. Vem uma onda de estatizações emergenciais. Criam-se marcos regulatórios novos. O mercado, descobriram, não é educado nem domesticado. O mercado é selvagem e se alimenta do coração de crianças de colo. Ah, nisso, descobriram o Estado!!! Rá! Correram pro Estado de pires na mão, os mesmos que o destruíram, os mesmos que o fizeram mínimo, aquele, no qual colocaram presidentes fantoches, de quem arrancaram as verbas e poderes para ajudar os desvalidos... agora ajudará – com as desculpas de praxe – os jogadores do cassino. Pagará suas contas. Foi assim na bolha da Internet, na Nasdaq, há poucos anos atrás.
Enquanto a farra em Wall Street acontecia, quantas Ruandas não desceram pela sarjeta? Quantas crianças não morreram em convulsões na Cracolândia? Quantas meninas de 12 anos pariram infelizes desnutridos? Quantos desempregados não mergulharam na embriaguez? Enquanto isso, a “mão invisível do mercado” de Adam Smith manejava punhais de prata assassina. Fazia guerras, invadia países, multiplicava vergonhosos negócios. Guerra S/A!! (como no filme recente, com John Cusak)
Reengenharias, informatização em larga escala, guerras de petróleo, vampirização das pequenas empresas, terceirização de mão de obra em ocupações precárias, a onda de camelôs despejada nas grandes cidades, a pirataria decorrente, os roubos de carga, as meninas prostituindo-se nas estradas para caminhoneiros. A falência da saúde pública, a privatização do ensino, as escolas tornando-se celeiros de pólvora transbordando perto de faíscas. Jovens ali, contidos, ávidos viciados em consumo e fugacidade... Foi o que lhes injetaram nas veias. O leite que tomaram já vinha com o vírus. Hoje, querem seu lugar no paraíso da feira livre mundial, onde você vale pelo que compra.
Não nos enganemos. O lucro é um animal voraz, nunca se satisfaz. Os engravatados de Manhatan brincam, não com cotações ou balanços financeiros, naquela Las Vegas, as fichas são vidas humanas. Decidem, num botão, quantas cabeças serão decepadas pra fazer o calçamento das suas escadas em direção ao infinito lucro. Decidem, na verdade, quantos países serão mantidos no porão do navio negreiro. Ah, um Castro Alves que nos cantasse uma esperança!!!
Mas escadas assim batem no teto. Castelos de areia assim, desmoronam. O problema é que desmoronam sobre os mesmos que foram pisados pelos que os construíam. Enquanto isso, o planeta se esvai, corroído em suas águas, em seu ar, em suas matas, viciado em fumos terríveis, dependente químico de petróleos, esburacando a própria carne pra arrancar seus minérios como quem arrancasse pedaços do próprio fígado, do pulmão, com as mãos. Um mundo de suicidas cegos. Caminhando para o abismo, não vemos estrelas, mas letreiros de shoppings e marcas nos iluminam o triste caminho. Perdemos a voz, a conversa ao pé do fogo, o almoço de domingo e os amigos. Temos encontros virtuais, prazeres rápidos, queremos ‘tudo ao mesmo tempo, agora’, não?
Depois, ficamos atordoados, vendo nossos filhos se matarem pelas ruas, nas esquinas, nas escolas. Deus passa a ser um animal doméstico, que chamamos do jeito que queremos, na hora em que queremos, como um periquito que nos atende à voz, como uma foca que equilibra bolas ao nosso comando. O sagrado não mais existe. Por isso, nada é sagrado. Nem a vida humana. Seja velha ou enferma, seja embrião, se não consome... vida não é. Sagrado é o que consome. O que vale dinheiro.
A publicidade pinta, enquanto isso, uma cortina lilás com frisos dourados e perfumes de jasmim... Ah como é belo o mundo da publicidade, essa prostituta velha, cafetina de valores! Essa, que vende venenos que nos matam, que entorpecem nossas crianças, que nos adestram desde o berço como consumidores. Essa, que nos carimba como peixes fisgados, como gado marcado, na roda sem fim da sociedade supérflua.
A festa acabou. Por enquanto. O capitalismo tem muitas pernas. Gato assassino de muitos fôlegos. O capitalismo morreu! Viva o capitalismo! Ele se reerguerá, com novos atores recitando os mesmos papéis, adequados ao novo cenário, com um ou dois gramas a mais de presença estatal e gerência financeira governamental. Como sempre, a ruína de uns fará a glória de outros. Recolherão o lixo e colocarão pra baixo do tapete. Até a próxima crise. Foi assim em 1929, em 1982, em 1988. E Wall Street, a “Rua do Muro” (Perdoem-me: Wikipédia: “Lá, os holandeses tinham construído uma parede da madeira e lama em 1652. A parede significou uma defesa de encontro ao ataque possível dos índios de Lenape, de colonizadores da Nova Inglaterra e dos Ingleses, mas no fato foi usada manter os escravos negros da colônia”), construída outrora para afastar índios incômodos, ali, onde batem os suspiros dos miseráveis, renascerá, ainda que em outro endereço, mouca como sempre, olímpica como sempre, pronta pra arregimentar uma nova geração de maldades.
O que fazer?
Recuperemos o sagrado. O valor das coisas gloriosas, porque simples. Pessoas que não sejam cartões de crédito, cujos corações não sejam calculadoras. Um Deus que não seja um periquito.
Escrito em 29/09/08. A essa altura, o pacote já terá sido remendado e aprovado. Mas a reflexão permanece válida. O que isso tem a ver com Direito? Ora, abra os olhos, amigo!
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