Não é exagero afirmar que a concepção de controle de constitucionalidade confunde-se com a própria história do constitucionalismo norte-americano. A necessidade de preservar as opções políticas fundamentais lançadas na Constituição, ao que se soma a forma federativa de Estado e a multiplicidade de ordens normativas que a caracterizam, cedo exigiram a estruturação de mecanismos que permitissem assegurar a sua estabilidade e o seu caráter fundante.
A Constituição atribuía o poder judicial a uma Suprema Corte e a tribunais inferiores (art. 3º, Seção 1), mas nada dispunha sobre a sua competência para realizar a fiscalização da constitucionalidade dos atos emanados dos demais órgãos de soberania. A ausência de regra expressa, no entanto, não impediu que a Suprema Corte norte-americana, no célebre caso Marbury vs. Madison (1 Cranch 137, 1803), em ambiente politicamente desfavorável à própria perspectiva de efetividade de suas decisões, reconhecesse a inconstitucionalidade de uma lei federal que estendia a sua competência constitucional. Observa Tribe, no entanto, que as anotações da Convenção da Filadélfia sugerem a alguns estudiosos que os Framersjudicial review simplesmente porque “o tinham como certo” (American Constitutional Law, 1988, p. 26). (criadores) não explicitaram o
Surgia, assim, o judicial review, expressão que alberga a possibilidade de os órgãos jurisdicionais fiscalizarem a constitucionalidade das normas que aplicarão no caso concreto. A supremacia normativa da Constituição reflete, nas palavras do Justice Marshall, a concepção de que “a Constituição é superior a qualquer ato legislativo ordinário”, justificável na medida em que, além de fundamentar as fontes formais do direito, possui uma aspiração de permanência, não sendo um simples mecanismo de articulação ocasional entre grupos políticos (García de Enterría, La Constitución como Norma y el Tribunal Constitucional, 2001, p. 175). Somente com essa “super-legalidade” é possível assegurar a sua supremacia e estabilidade (Prélot e Boulouis, Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, 1987, pp. 226/227). Entendimento similar prevalecerá no plano estadual, sendo igualmente possível a realização de um controle de constitucionalidade das leis ali editadas, tomando-se como paradigma a Constituição do respectivo Estado.
O controle difuso ou norte-americano, na medida em que pulveriza essa competência entre todos os órgãos do Judiciário, em muito se distingue dos paradigmas europeus, vale dizer, do controle concentrado ou austríaco (Verfassungskontrolle, idealizado por Kelsen e introduzido pela Constituição austríaca de 1920), realizado exclusivamente por um Tribunal Constitucional, e do controle político ou francês, promovido por um órgão independente, alheio à estrutura judicial, anteriormente à publicação da lei (no direito francês, o Conseil Constitutionnel - art. 61 da Constituição de 1958).
A Suprema Corte é composta de 9 (nove) Justices indicados pelo Presidente e aprovados pelo Senado, que desempenharão a função “enquanto bem servirem”, não havendo previsão de algo que se assemelhe a uma aposentadoria compulsória. Apesar de formalmente similar ao processo de escolha contemplado na Constituição brasileira, o sistema norte-americano é substancialmente distinto. O Senado, longe de atuar como mera chancela do Executivo, desempenha um papel verdadeiramente ativo na sabatina que realiza. A população tem absoluta consciência do papel desempenhado por um Juiz da Suprema Corte, o que motiva a eclosão de amplos e acirrados debates quanto às suas convicções jurídico-ideológicas.
Como órgão de cúpula do sistema, pode a Suprema Corte rever os atos das instâncias inferiores, terminando por uniformizar a interpretação da Constituição. À timidez de sua primeira reunião, realizada na Real Bolsa de Nova Iorque em 1º de fevereiro de 1790, sob a presidência do Chief Justice John Jay, sucedeu uma intensa participação no evolver da própria história norte-americana.
Em Dread Scott vs. Sandford (1857), ao prestigiar a política escravagista dos Estados do Sul, contribuiu para a precipitação da guerra de secessão. Em Brown vs. Board of Education (1954), reconheceu a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas, influenciando na sedimentação de um tratamento igualitário a brancos e negros. Em Miranda vs. Arizona (1966), prestigiou os direitos civis, pronunciando-se pela irregularidade de detenção não antecedida pela leitura dos direitos processuais ao preso. São os conhecidos Miranda Rights. Em Roe vs. Wade (1973), embasando-se num direito não expressamente previsto na Constituição (o direito à privacidade), reconheceu a inconstitucionalidade de lei texana que proibia a realização do aborto mesmo antes do terceiro mês de gravidez. Em United States vs. Nixon (1974), o Tribunal determinou ao Presidente Nixon a entrega das gravações que comprovavam o seu envolvimento no escândalo Watergate, influenciando sua decisão de renunciar ao cargo (Cf. Iron, A People’s History of the Supreme Court, 2000).
A intensa intervenção da Suprema Corte nas opções políticas do Executivo e do Legislativo, que eram confrontadas com a Constituição e, não raras vezes, invalidadas, gerou um considerável número de reações. As críticas assumiram grande intensidade por ocasião do New Deal, conjunto de medidas que buscava combater os efeitos deletérios da depressão de 1929, tendo a Corte invalidado inúmeros atos que compunham a política econômica do Presidente Roosevelt. O embate assumiu proporções institucionais, sendo largamente difundida a proposta de que o número de juízes deveria ser alterado, inclusive por lei ordinária, o que poderia conduzir a uma composição simpática às propostas do Executivo. Em seqüência, a Corte recuou e passou a adotar uma postura de auto-contenção (self restraint), sendo a crise superada (Cf. Irons, op. cit., pp. 294/306). A expressão “governo dos juízes” bem refletia o sentimento de inúmeros autores e atores políticos norte-americanos quanto à freqüência e à intensidade das referidas intervenções (Cf. Lambert, Le gouvernement des juges et la lutte contre la législation sociale aux États-Unis – L’expérience américaine du controle judiciaire de la constitutionnalité des lois, 1921, p. 8).
No sistema norte-americano, a instauração e a evolução do “governo dos juízes” podem ser divididas em quatro períodos: 1º) de 1787 a 1830 – a Corte luta pelo reconhecimento de sua autoridade, remontando a essa época o célebre caso Marbury vs. Madison, de 1803; 2º) de 1830 a 1880 – a autoridade da Corte e dos demais tribunais, apesar de sedimentada, é exercida com moderação, somente sendo declarada a inconstitucionalidade de leis federais, no período de 1803 a 1870, em três ocasiões; c) de 1880 a 1936 – a Corte e os demais tribunais opõem as suas próprias convicções ao direito emanado do legislador, fazendo-as prevalecer, surgindo nesse período a célebre expressão “governo dos juízes”; e d) a partir de 1936 – a Corte e os demais tribunais costumam se pronunciar no mesmo sentido dos demais poderes políticos, sendo esse período inaugurado pela resistência de Roosevelt (Cf. Prélot e Boulouis, op. cit., pp. 239/244).
No decorrer de sua história, a Suprema Corte construiu o que se pode denominar de “doctrines of justiciability”. Trata-se de interpretação alicerçada no art. III da Constituição, que limita o exercício da função jurisdicional às hipóteses em que seja divisada a existência de “cases” e “controversies”, o que termina por conferir ampla discricionariedade à Corte na definição da situação e do momento mais adequado à assunção de posições mais polêmicas quanto à interpretação constitucional (Cf. Tribe, op. cit., pp. 67 e ss.).
No sistema norte-americano, o Ministério Público apresenta uma organização eminentemente política, não sendo contemplado o recrutamento de seus membros por meio de concurso público ou mesmo a concessão de maiores garantias aos ocupantes dos cargos. Em grande parte dos Estados da Federação (cinqüenta no total), os integrantes da Instituição, ou melhor, da estrutura organizacional que mais se aproxima do modelo brasileiro, são escolhidos por meio de eleição.
No âmbito federal, a maior autoridade é o Attorney General (Procurador-Geral), titular do Department of Justice (órgão correspondente ao Ministério da Justiça), que é escolhido pelo Presidente da República, com ulterior aprovação do Senado Federal. Essa função foi inicialmente prevista no Judiciary Act, de 1789.
A adoção do controle difuso de constitucionalidade afasta qualquer possibilidade de se atribuir ao Attorney General um papel de destaque nessa seara. A sua influência na interpretação constitucional se fará sentir pelos meios regulares, levando ao conhecimento do Tribunal as causas em que seja divisada alguma incompatibilidade com a ordem constitucional.
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Emerson. O Processo Constitucional Norte-Americano e a Atuação do Ministério Público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2009, 10:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/437/o-processo-constitucional-norte-americano-e-a-atuacao-do-ministerio-publico. Acesso em: 24 nov 2024.
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