A evolução do Estado de Direito e a sua conseqüente inserção na sociedade internacional, seara em que as individualidades sofrem relativa atenuação, cedendo lugar a aspirações e a preocupações de ordem essencialmente coletiva, tornam inevitável a confrontação das noções de soberania e de “mundialização”, “globalização” e de “construção regional”. Nessa perspectiva, merecem especial menção as crescentes formas de integração entre os Estados, resultando na criação de órgãos ou organizações internacionais de integração (v.g.: a União Européia e, em caráter ainda embrionário, o Mercosul), também denominadas supranacionais, com a respectiva delegação de poderes inerentes à soberania estatal (Cf. Fausto de Quadros, Direito das Comunidades Européias e Direito Internacional Público, 1991, pp. 196/249). Contrariamente ao que se verifica em relação às organizações de cooperação (v.g.: a ONU e a OEA), tipo clássico de organização internacional, é comum outorgar-lhes a atribuição de aferir a própria correção das medidas adotadas pelos órgãos de soberania do Estado, acrescendo que suas deliberações, não raro, possuem aplicabilidade e eficácia direta na ordem jurídica dos respectivos Estados-membros (Daillier et alii, Droit International Public, 2002, pp. 578/579).
Tomando-se como referencial de análise as peculiaridades do direito comunitário europeu - que não só regula as relações entre os Estados, como também influi diretamente na esfera jurídica dos cidadãos e dos demais operadores que atuam nos Estados-membros da União Européia -, ele pode ser concebido como um sistema distinto das ordens jurídicas nacionais e do direito internacional em geral. Trata-se da passagem da concepção ordinária do sistema internacional, como sistema de cooperação horizontal, no qual cada Estado conserva integralmente sua capacidade normativa e a executoriedade dos atos externos é determinada pelos atos internos, para um sistema de integração vertical. Com isto, tem-se a penetração das fontes comunitárias de produção jurídica nos ordenamentos nacionais que pertencem ao sistema e a conseqüente influência direta, muitas vezes sem a necessidade de adaptações ou de transposições que lhe confiram eficácia (Chiti, Diritto Amministrativo Europeo, 1999, pp. 35/43).
O direito comunitário, apesar de formado a partir dos influxos recebidos dos diferentes ordenamentos nacionais, pois destinado a produzir efeitos em domínios inerentes a estes últimos, é plenamente autônomo em relação a eles: possui um processo próprio de formação, finalidades específicas e um órgão jurisdicional de cúpula que zela pela unidade e pela efetividade de suas normas. Com esses influxos, o direito comunitário delineia suas próprias linhas e, em refluxo, irradia suas normas aos ordenamentos nacionais, neles penetrando e com eles coexistindo de forma harmônica (Schwarze, Droit Administratif Européen, vol. I, 1994, pp. 106 e ss.).
Em um primeiro momento, a integração pressupõe a existência de uma norma constitucional que autorize a delegação de atribuições legislativas à União e aos seus pilares, o que conferirá imperatividade às normas comunitárias no respectivo Estado-membro (v.g.: o art. 93, § 1º, da Constituição espanhola, dispõe que “mediante lei orgânica se poderá autorizar a celebração de tratados pelos quais se atribua a uma organização ou instituição internacional o exercício de competências derivadas da Constituição”). Nessa fase, verifica-se uma estreita relação de dependência entre o direito comunitário e o direito constitucional, não podendo o primeiro produzir efeitos senão em virtude do segundo. A partir daí, a relação de fluxo e refluxo entre as normas comunitárias e as normas nacionais enseja uma influência recíproca na própria elaboração normativa.
Na elaboração do direito comunitário, é devidamente sopesada a ordem jurídica de cada Estado-membro, operação esta oxigenada pela necessidade de serem estabelecidos padrões uniformes em busca da consecução de um interesse comum. Por outro lado, delineada a norma comunitária, devem os Estados adequar a legislação nacional aos parâmetros por ela traçados. Assim, é possível constatar que o direito nacional passa da condição de elemento informador à de elemento receptor das normas comunitárias, o que não importa em supressão da característica inicial, pois o direito comunitário continuará a servir-se das particularidades e das mutações do direito nacional, o que assegura a continuidade do ciclo já referido. Na expressão de Florence Chaltiel, verifica-se a “osmose progressiva das duas ordens jurídicas” [in Droit constitutionnel et droit communautaire, in Revue Trimestrielle de Droit Européen nº 3/395 (403), 1999].
Essa interpenetração do direito comunitário com o direito nacional, como é intuitivo, não poderia permanecer à margem do Ministério Público, instituição estatal de vital importância no sistema de cooperação policial e judiciária em matéria penal, que consubstancia o Terceiro Pilar da União Européia (art. 29 do Tratado da União Européia). A existência de problemas que transcendem a individualidade de cada Estado membro, projetando-se sobre a vida comunitária, exigem a adoção de medidas coletivas, que podem alcançar (1) o estabelecimento de uma normatização comum, (2) a divisão de tarefas entre os órgãos nacionais ou (3) a criação de órgãos comunitários incumbidos de sua concretização. É justamente sob essa última ótica que se fala na possível criação de um Ministério Público Europeu.
A partir de solicitação da Comissão Européia, foi apresentado por um grupo de estudiosos, em 1997, um projeto voltado ao estabelecimento de regramento comum, de natureza substancial e processual, visando à concretização da referida cooperação. Trata-se do denominado Corpus Juris [Bernardi, Corpus Juris e formazione di un diritto penale europeo, in Rivista Italiana di Diritto Pubblico Comunitario nº 2/283 (283 e ss.), 2001]. O projeto previa a criação de um Ministério Público Europeu, que teria atribuição para atuar no combate às fraudes comunitárias. Com isto, buscava-se aumentar a eficiência na atuação, evitando o inevitável retardamento causado pela expedição de cartas rogatórias e pela formalização de processos de extradição. O projeto foi reformulado em 2000, ficando expresso, em seu art. 18, que o órgão é “uma autoridade da Comunidade Européia”.
O Ministério Público Europeu, de acordo com o projeto de 2000, seria independente em relação às autoridades nacionais e comunitárias. No plano organizacional, competiria ao Parlamento Europeu, a partir de provocação da Comissão Européia, nomear o Procurador-Geral Europeu para um mandato de seis anos, permitida uma recondução, sendo a sua sede fixada em Bruxelas. Cada Estado indicaria os Procuradores que deveriam atuar no âmbito do seu território, sendo a nomeação igualmente realizada pelo Parlamento. A Instituição observaria um princípio de hierarquia, estando os órgãos inferiores sujeitos à orientação do Procurador-Geral, e seria informada pelo princípio da indivisibilidade, de modo que cada ato praticado por um membro seria imputado ao ofício em sua integridade (Monaco, Pubblico Ministero ed Obbligatorietà dell’Azione Penale, 2003, p. 269).
No plano propriamente funcional, competiria ao Ministério Público Europeu investigar as infrações penais, iniciar a ação penal em juízo e zelar pela execução das sentenças definitivas. Especificamente em relação à ação penal, com poucas exceções (v.g.: pequeno potencial lesivo da infração penal ou, em situações específicas, transação realizada com a autoridade nacional), incidiria o princípio da obrigatoriedade.
Note-se que as atribuições da Instituição não iriam necessariamente se sobrepor às de outros órgãos já em funcionamento no âmbito da União Européia, como o Eurojust, integrado por juízes, membros do Ministério Público e policiais oriundos dos vários Estados membros. Esse órgão, criado por decisão do Conselho Europeu de 28 de fevereiro de 2002, tem a função de coordenar e de impulsionar as investigações criminais, evitando a duplicação de atividades e permitindo a simplificação da execução das cartas rogatórias. Enquanto o Eurojust continuaria a ser uma estrutura de coordenação, o Ministério Público Europeu exerceria funções essencialmente executórias, atuando numa esfera jurídica específica e tendo por objetivo a persecução de infrações penais lesivas aos interesses comunitários (Monaco, op. cit., p. 270).
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Emerson. Rumo a um Ministério Público Europeu Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2009, 08:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/443/rumo-a-um-ministerio-publico-europeu. Acesso em: 24 nov 2024.
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