1. A derrocada do Welfare State apontou para a impossibilidade de o Poder Público, a partir de políticas públicas assistencialistas e finalisticamente voltadas à satisfação das necessidades básicas das classes menos favorecidas, por si só, promover a concretização de referenciais mínimos de igualdade material. Pouco a pouco, disseminou-se a concepção de que o social há de ser alcançado pelo social. Em outras palavras, incumbe às próprias estruturas sociais, em conjunto ou separadamente, norteadas por padrões axiológicos de solidariedade e de bem comum, contribuir para a amenização das desigualdades e para o evolver do grupamento.
2. Ao voluntarismo individual, presente em múltiplas pessoas, tem se somado a previsão de políticas públicas voltadas ao estímulo da solidariedade social. Medidas dessa natureza buscam estimular a integração social e o surgimento de objetivos comuns, valores de todo incompatíveis com o isolamento característico do liberalismo clássico.
3. Questão tormentosa no direito brasileiro tem sido a possibilidade de o responsável por doações aos fundos de direitos da criança e do adolescente direcionar o respectivo valor a uma instituição específica. Exemplo característico dessa possibilidade pode ser encontrado na Resolução nº 94, de 11 de março de 2004, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que fez menção expressa às “contribuições com destinação específica”. A esse ato juntaram-se múltiplos outros, semelhantes na letra e na essência, editados por conselhos estaduais e municipais da criança e do adolescente. Em linhas gerais, esses atos regulamentares dispõem sobre uma espécie de deliberação prévia, vale dizer, ao invés de deliberar, o conselho, a priori, indica que a doação será encaminhada à instituição escolhida pelo doador.
4. Face à natureza e à extensão das reflexões ora realizadas, é intuitivo não ser esta a seara adequada a uma análise exaustiva do tema. No entanto, ainda que em breves linhas, cremos seja possível demonstrar que essa possibilidade deve ser recebida com grande reserva, isto sob pena de enquadramento no rol dos atos de improbidade administrativa.
5. Iniciando nossa análise tópica, devemos observar que as doações são direcionadas aos fundos dos direitos da criança e do adolescente. A característica essencial dos denominados “fundos especiais” é congregar recursos de origem pública ou privada para a realização de objetivos ou serviços específicos (art. 71 da Lei nº 4.320/1964). Nesse momento, já se pode estabelecer uma premissa fundamental: esses fundos têm natureza pública, logo, recurso originariamente privado se transmuda em público ao ingressar no fundo. Esse aspecto dos fundos foi especialmente ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 2.306-3/DF, em que se discutia a constitucionalidade de lei federal que concedeu anistia a penalidades aplicadas pela Justiça Eleitoral e que seriam direcionadas ao denominado Fundo Partidário, cujos destinatários são os partidos políticos (Pleno, rel. Min. Ellen Gracie, j. em 21/03/2002). Na ocasião, o Tribunal entendeu ser a lei constitucional na medida em que o cunho institucional do Fundo Partidário não permitia fosse ele confundido com os destinatários em potencial dos seus recursos. Os destinatários, aliás, detinham mera expectativa de direito ao seu recebimento, não o direito adquirido aos valores constantes do Fundo.
6. Prevista a existência dos fundos dos direitos da criança e do adolescente, é imperativo seja definida a forma de aplicação dos respectivos recursos, sempre com o comprometimento de implementar ações em benefício das crianças e dos adolescentes (art. 88, IV, da Lei nº 8.069/1990).
7. No que diz respeito ao órgão competente para definir a forma de aplicação dos recursos dos referidos fundos, o Estatuto da Criança e do Adolescente, como não poderia deixar de ser, contém regra expressa: “Os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente fixarão critérios de utilização, através de planos de aplicação das doações subsidiadas e demais receitas, aplicando necessariamente percentual para incentivo ao acolhimento, sob a forma de guarda de criança ou adolescente, órfão ou abandonada, na forma do art. 227, § 3º, VI , da Constituição Federal”. De forma simples e objetiva: os Conselhos são os gestores dos fundos. Tratando-se de obrigação de cunho essencialmente financeiro, a ser desempenhada por órgão de composição colegiada, afigura-se evidente a impossibilidade de delegação. Aos Conselhos, e só a eles, compete definir os critérios de utilização dos recursos públicos contidos nos fundos. Note-se que na seara da realização da despesa pública somente se faz aquilo que é permitido por lei, não aquilo que a lei simplesmente não veda.
8. Na medida em que os Conselhos atuam como órgãos deliberativos e não meramente consultivos, mostra-se manifestamente ilegal a edição de um ato regulamentar que busque definir a priori, de forma contínua e inalterável, insensível aos circunstancialismos fáticos e jurídicos pelos quais passa qualquer sociedade, em especial em um país de modernidade tardia como é o Brasil, a forma de aplicação dos referidos recursos. A ratio dos Conselhos é simples: conferir a mobilidade necessária em matéria tão sensível, como aquela afeta à infância e à juventude, permitindo que um órgão público, dotado de representatividade popular, defina as prioridades que lhe pareçam mais adequadas à satisfação do interesse público. À evidência, não é legítimo aos Conselhos abrirem mão de seu decisionismo concreto em prol de uma regulamentação abstrata, isto sob pena de colocar em causa a própria razão de ser de sua existência, pois deliberações dessa natureza fazem melhor figura na lei, editada por órgão democraticamente legitimado.
9. Especificamente em relação à temática abordada, é louvável que os Conselhos possam facultar à sociedade civil, no momento próprio (v.g.: na elaboração do plano de atuação), a possibilidade de sugerirem as instituições que devam receber os respectivos recursos. A sugestão, no entanto, jamais poderia ser tomada como imposição, isto sob pena de o Colegiado estar delegando a gestão de recursos públicos (aqueles afetos ao fundo) a entidades privadas. Não merece prosperar o argumento de que o Conselho estaria tão-somente “antecipando” a decisão que tomará: in casu, a antecipação mostra-se dissonante da ordem jurídica por consubstanciar o reflexo de uma delegação de poderes não autorizada expressamente em lei e que afronta o princípio da impessoalidade, indicativo de que a Administração Pública deve tratar a todos com igualdade. O fato de uma instituição não merecer recursos públicos sob o ponto de vista do doador não significa não seja ela uma prioridade a ser atendida em dado contexto sócio-temporal. Acresça-se que entendimento contrário retiraria o caráter deliberativo do Conselho, pois permaneceria à margem do processo de escolha da instituição beneficiada e da quantidade de recursos que lhes será destinado. Uma situação desse tipo daria margem a múltiplas incongruências, como a de se destinar vultosos recursos a instituição diminuta e algumas poucas moedas a outra de indiscutível relevância social.
10. Ainda sob a ótica da impossibilidade dos Conselhos “abrirem mão” ou “anteciparem” o seu poder decisório, merece menção a evidente violação ao princípio da moralidade administrativa. Justifica-se a assertiva na medida em que os entes privados doadores, além de se beneficiarem de tratamento especial sob o prisma tributário, ainda poderão direcionar suas doações a instituições que lhes confiram publicidade ou que sejam, direta ou indiretamente, dirigidas por agentes públicos que possam de algum modo beneficiá-los. À guisa de ilustração, basta imaginar a situação de uma empresa estatal, com personalidade jurídica de direito privado, que realize doações a instituição simpatizante com o partido político responsável pela indicação dos seus diretores.
11. Questão complexa sob a ótica da lei de improbidade diz respeito à responsabilização dos integrantes de um órgão colegiado pelos ilícitos que venham a praticar.
12. Face à natureza deliberativa dos Conselhos, suas decisões, como manifestações de um poder essencialmente discricionário, não estarão sujeitas à sindicação judicial naquilo que diz respeito aos seus aspectos propriamente valorativos. À necessidade de adequação dos atos administrativos aos contornos estabelecidos pelas normas comunitárias está normalmente associada a previsão de uma certa margem de liberdade na sua execução. Tal ocorre nas situações em que não possa ser previamente identificada a melhor solução a ser adotada, sendo preferível a concessão de uma liberdade mais ampla às autoridades responsáveis pela execução do ato. Possibilita-se, assim, uma melhor valoração das circunstâncias inerentes à determinada situação, em especial as de cunho temporal, local e pessoal, o que permitirá a identificação e a conseqüente adoção da medida mais adequada.
13. Essa atividade valorativa culminará com a escolha, dentre dois ou mais comportamentos possíveis, daquele que se mostre mais consentâneo com o caso concreto e a satisfação do interesse público.[1] Para tanto, no entendimento há muito sedimentado na doutrina,[2] deve a autoridade proceder à “ponderação comparativa dos vários interesses secundários (públicos, coletivos ou privados), em vista a um interesse primário”, sendo esta a essência da discricionariedade.[3] O interesse público primário a ser satisfeito não se identifica com o interesse de um ramo da Administração ou mesmo com o subjetivismo da autoridade responsável pela prática do ato, mas, sim, com a comunidade em sua inteireza.[4] Referida margem de liberdade traça os contornos do denominado poder discricionário, ensejando, em regra, um controle restrito por parte dos Tribunais.
14. O ato discricionário, no entanto, tem como antecedente lógico a sua necessária adequação à concepção de juridicidade. A impossibilidade de sindicação a que nos referimos somente se manifestará em relação aos atos praticados em harmonia com a lei e o direito (an Resht und Gesetz), isto para utilizarmos a sugestiva expressão da Grundgesetz alemã. O ato discricionário é lícito se (e enquanto) praticado em harmonia com a lei. Reconhecendo-se que as resoluções anteriormente mencionadas destoam do direito posto ter-se-á um sério indício da prática de ato de improbidade.
15. Fala-se em ato de improbidade na medida em que os conselheiros efetivamente exercem função pública (art. 2º da Lei nº 8.429/1992) e estão atuando à margem da lei. Presente este quadro, ter-se-á a presença da figura do art. 11 da Lei de Improbidade, que reflete a violação aos princípios regentes da atividade estatal, ou, eventualmente, a do art. 9º da mesma Lei, que estará configurada sempre que restar demonstrado o intuito de beneficiar terceiros com os recursos do erário (in casu, dos fundos).
16. Finalizando, ainda se faz necessário mais um breve comentário nessa despretensiosa análise tópica. Tanto o art. 9º, como o art. 11 da Lei de Improbidade, pressupõem um atuar doloso, intencional, o qual não deve ser presumido, mas efetivamente demonstrado. Assim, divisada a existência de uma resolução do conselho competente, delegando atribuições indelegáveis, deixando de zelar pela correta aplicação do dinheiro público, é de bom alvitre seja expedida uma recomendação apontando a ilicitude da conduta. Reiterada a prática, estará caracterizado o dolo e possível se mostrará a responsabilização dos autores do ato. Nesse particular, é importante frisar que somente será possível responsabilizar os conselheiros que se manifestaram favoravelmente à tese, não aqueles que legitimamente resistiram até o limite de suas forças. Não se argumente que o responsável pelo ato é o órgão e não cada conselheiro considerado em sua individualidade. Essa tese, fraca na estrutura, frágil na essência, caminha em norte contrário a padrões básicos de decência e moralidade, tendo sido sepultada, há muito, inclusive no direito priva
[1] Cf. Jacqueline Morand-Deviller, Cours de Droit Administratif, 4a ed., Paris: Montchrestien, 1995, p. 255; Dominique Lagasse, L’Erreur Manifeste D’Appréciation en Droit Administratif, Essai sur les Limites du Pouvoir Discrétionnaire de L’Administration, Bruxelas: Etablissements Emile Bruylant, 1986, p. 367; Pierre Moor, Droit Administratif, vol. I, 2a ed., Berna: Éditions Staempfli, 1994, p. 370; Hartmut Maurer, Manuel de Droit Administratif Allemand (Allgemeines Verwaltungsrecht), trad. de Michel Fromont, Paris: LGDJ, 1994; Paul Craig, Administrative Law, 5a ed., Londres: Sweet & Maxwell Limited, 2003, p.521; e A. W. Bradley e K. D. Ewing, Constitutional and Administrative Law, Harlow: Pearson Education Limited, 2003, p. 699.
[2] Cf. Massimo Severo Gianini, Diritto Amministrativo, vol. 2o, 3a ed., Milano: D. A. Giufrrè Editore, 1993, p. 49.
[3] Na síntese de Sandulli (Manuale di Diritto Amministrativo, vol. 1, 15a ed., Napoli: Jovene Editore, 1989, p. 593), “a discricionariedade importa sempre uma valoração, uma ponderação de interesses e um poder de escolha”.
[4] Cf. Pietro Virga, Diritto Amministrativo, vol. 2, 5a ed., Dott. A. Giuffrè Editore, 1999, p. 8.
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Emerson. Fundo Especial dos Direitos da Criança e do Adolescente: Direcionamento das doações e possível configuração da improbidade administrativa Tópicos de análise Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2009, 08:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/450/fundo-especial-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-direcionamento-das-doacoes-e-possivel-configuracao-da-improbidade-administrativa-topicos-de-analise. Acesso em: 24 nov 2024.
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