1. Introdução
Hoje, existe um amplo consenso na doutrina e na jurisprudência a respeito da importância da publicidade dos atos estatais para a própria existência da democracia. Não se pode imaginar um “governo do povo, para o povo e pelo povo” se esse mesmo povo não tem acesso àquilo que é feito em seu nome dentro da máquina estatal.
Sem dúvida, o sigilo torna-se necessário em determinadas situações, principalmente aquelas referentes à defesa externa (segurança nacional), às investigações criminais (segurança interna) e à defesa da privacidade e da intimidade. Essas situações, porém, são exceções, e, por isso, somente podem ser aceitas de modo muito restrito, quando estiver evidenciada a sua necessidade.
Fora desses casos excepcionais, o sigilo dos atos do Estado é um modo de colocá-lo a serviço de determinadas pessoas ou grupos, em visível afronta ao princípio constitucional da impessoalidade (ou imparcialidade). Infelizmente, o segredo ainda impera em boa parte das atividades estatais, demonstrando a persistência do patrimonialismo[1] no Brasil.
A seguir, serão tratadas as principais questões atuais relacionados à aplicabilidade do princípio da publicidade no País.
2. Atos secretos do Senado
Há pouco, foram descobertos centenas de atos administrativos emitidos pelo Senado sem que houvesse a devida publicidade. Esses atos têm conteúdos bastante variados, desde o aumento de remuneração, passando pela designação de servidores para cargos em comissão e funções de confiança até a concessão de benefícios referentes a planos de saúde.
A doutrina e a jurisprudência não se pacificaram quanto às consequências da ausência de publicação de um ato. Existem posições no sentido de que o ato secreto seria imperfeito; perfeito e inválido; ou mesmo perfeito, válido e ineficaz. Não há dúvida nenhuma, porém, a respeito da impossibilidade desse ato produzir efeitos jurídicos. Nenhum direito ou obrigação pode ser criado validamente.
Portanto, esses atos secretos somente podem ter um destino: a extinção, com o necessário desfazimento de todos os seus efeitos. Isso significa, por exemplo, que todas as verbas públicas utilizadas em decorrência desses atos devem ser devolvidas por aqueles que se beneficiaram.
Há um detalhe, porém: os atos de designação de servidores para cargos em comissão ou para funções de confiança devem ser extintos, mas não é possível a devolução da remuneração recebida por eles, uma vez que, aparentemente, foi desenvolvido um trabalho por eles, o que demanda, necessariamente, uma contraprestação pecuniária, sob pena de enriquecimento ilícito do Estado. Trata-se de posição já assentada pelo Judiciário no que se refere à remuneração de trabalhadores contratados irregularmente.
Também é necessária a responsabilização dos agentes públicos, servidores ou mesmo senadores, que impediram a publicação ou foram coniventes com o sigilo desses atos. Existe, nesse caso, notório ato de improbidade administrativa que atenta contra princípios da Administração Pública, conforme preceitua o art. 11, IV, da Lei 8.429/92. As penalidades incluem multa, perda do cargo e suspensão dos direitos políticos.
É bastante provável, também, que tenha existido o crime de prevaricação, que consiste em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. É evidente que agentes públicos omitiram-se em sua obrigação, qual seja, a publicação daqueles atos administrativos. Restaria provar a motivação do ato: satisfazer sentimento ou interesse pessoal. Se, de alguma forma, houve suborno, poderá haver o crime de corrupção passiva. Caso alguém tenha sabido desses atos e não fez nada para responsabilizar os autores, também haverá a incidência do crime de condescendência criminosa. Finalmente, tudo indica que várias pessoas uniram-se no sentido de encobertar esses atos, o que faria incidir também o crime de quadrilha.
Infelizmente, tais conclusões demonstram que o Senado Federal, como boa parte do Estado brasileiro, tornou-se uma versão sofisticada de organização criminosa. Os parlamentares não fizeram por merecer a autonomia administrativa que têm. Por isso, provavelmente, é hora de cogitar a criação de um “Conselho Nacional do Legislativo”, órgão de controle, que teria a função de manter um padrão ético mínimo dentro das casas legislativas.
3. Divulgação da remuneração de servidores públicos
No outro extremo, a Prefeitura de São Paulo decidiu divulgar a remuneração de todos os seus servidores em relação nominal. Esse fato causou a reação imediata de um sindicato de servidores que conseguiu, judicialmente, decisão liminar que suspendeu a divulgação. O argumento utilizado é que essa publicidade salarial põe em risco a segurança dos servidores e provoca constrangimentos, ou seja, foi arguida a desobediência ao princípio constitucional da intimidade. Posteriormente, o Tribunal de Justiça de São Paulo cassou a referida decisão, permitindo que os dados fossem novamente divulgados.
A iniciativa é bastante louvável, uma vez que aumenta a transparência da Administração Pública e a aproxima do cidadão. Porém, é inegável que parece existir, ao menos, uma tensão entre dois princípios constitucionais: publicidade e intimidade. A questão é fazer a adequada ponderação entre os direitos à privacidade e à intimidade dos servidores públicos e o princípio da publicidade da Administração Pública..
No tocante à Administração Pública, é inadmissível falar-se em privacidade e intimidade. Pelo contrário, é bem sabida a necessidade de máxima transparência, inclusive, e, obviamente, no que se refere a seus gastos. É absolutamente, inadmissível que, em uma democracia, a população não conheça o destino de seus tributos.
Por isso, não pode haver dúvidas sobre a necessidade de publicidade ampla a respeito da remuneração paga aos agentes públicos. Isso já estava sendo feito de forma parcial, ou seja, o pagamento devido aos ocupantes de cada cargo público é definido por meio de lei. Assim, qualquer pessoa tem condições de saber quanto deve receber, por exemplo, um técnico da Justiça Federal ou um gestor do Ministério do Planejamento.
O problema é a limitação dessa modalidade de informação: a população pode saber o que deve ser pago, mas não que é efetivamente pago aos agentes públicos. Ora, a transparência completa requer o fornecimento de dados exaustivos a respeito da remuneração efetivamente recebida por cada um. Por dados exaustivos, entenda-se o fornecimento do valor total pago e de suas parcelas, como gratificações, abonos, indenizações, décimo-terceiro salário, etc.
Argumenta-se que esse tipo de providência afeta a privacidade e a intimidade dos servidores públicos. Há, porém, um erro de foco: como visto, não há “vida privada” no que se refere a verbas públicas. Existe, sim, privacidade, no tocante à utilização que o servidor faz da remuneração recebida[2]. Assim, não há interesse público em conhecer com que produtos ou serviços o servidor utiliza sua remuneração, mas sua existência é indubitável no que tange à remuneração em si.
Contudo, é pertinente a alegação de que essa divulgação afetaria a segurança dos envolvidos, tornando-os presas mais fáceis de crimes como “sequestro-relâmpago”. A solução para isso, já aventada, é simples: deve ser divulgada apenas a matrícula funcional do servidor, preservando seu nome. Caso haja suspeita de irregularidade em determinado caso, o Ministério Público, por meio da ação civil pública, e o cidadão, por meio da ação popular, podem requerer o acesso aos dados completos do servidor. Assim, compatibilizam-se os dois princípios fundamentais (publicidade e privacidade), preservando seus núcleos fundamentais, ou seja, a sua essência intocável.
[1] Patrimonialismo é o conjunto de usos e costumes que envolvem a crença da ausência de distinção entre público e privado, colocando o primeiro a serviço do último.
[2] Mesmo nesse caso, existe um exceção: é preciso publicizar a qualidade dos gastos que deu origem às verbas indenizatórias, uma vez que somente são pagas como compensação por esses gastos.
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