A Lei nº 10.826, de 22 de Dezembro de 2003, denominado Estatuto do Desarmamento, dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras providências.
Referida Lei, revogou expressamente a Lei no 9.437, de 20 de fevereiro de 1997 (Art. 36), sendo que as condutas criminosas da Lei revogada, praticamente foram repetidas no Estatuto, entretanto com penas mais severas.
Entre os delitos previstos no Estatuto, a Lei tratou do crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido nos seguintes termos:
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Ocorre que no artigo no Art. 30, em sua redação original o legislador dispôs:
Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos.
Significa dizer que durante os 180 dias seguintes à publicação da Lei, o crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido, previsto no 12 não poderia ser considerado crime, pois a Lei deu opção para que os possuidores de armas nessa qualidade, fizessem a sua regularização no prazo acima descrito, que foi denominado de abolitio criminis temporalis..
Nessa mesma situação, aquele que não quisesse regularizar sua arma poderia devolvê-la à Polícia Federal, inclusive com a possibilidade de indenização, conforme redação original do art. 32, da Lei de Regência:
Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.
Essa regra também era aplicada aos casos de posse de munições e assessórios, conforme acabou por decidir a jurisprudência:
STJ - Penal. Estatuto do desarmamento (Lei n. 10.826/03). Abolitio criminis temporária. Munição. Recurso em habeas corpus. Posse irregular de arma de fogo. Abolitio criminis temporária. Apreensão de munição no interior da residência. Crime previsto no art. 12 da Lei n. 10.826/2003. Atipicidade. Trancamento da ação penal. Recurso provido – “1. Esta Corte firmou entendimento no sentido de ser atípica a conduta de posse irregular de arma de fogo, tanto de uso permitido (art. 12) quanto de uso restrito (art. 16), no período referido nos artigos 30 e 32 da Lei nº 10.826/2003 em razão da descriminalização temporária. 2. Caracteriza-se o delito de posse irregular de arma de fogo quando esta estiver guardada no interior da residência (ou dependência desta) ou no trabalho do acusado, evidenciado o porte ilegal se a apreensão ocorrer em local diverso. 3. Muito embora o recorrente tenha sido denunciado como incurso no art. 14 da Lei n. 10.826/2003, por supostamente "ter em depósito" a munição, a denúncia narra que os cartuchos foram apreendidos no interior da sua residência, "em uma gaveta do guarda-roupa", caracterizada, portanto, a prática do delito de posse irregular descrito no art. 12 da aludida lei. 4. Recurso provido para trancar a ação penal” (STJ – 6ª T. – RHC 19.466/RS – rel. Paulo Gallotti – j. 18.12.2006 – DJU 26.02.2007, p. 641).]
HABEAS CORPUS. POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO. ARTIGOS 30 E 32 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. VACATIO LEGIS. ABOLITIO CRIMINIS TEMPORALIS.
1. O prazo deferido pelos artigos 30 e 32 da Lei nº 10.826/2003, para regularização das armas dos seus proprietários e possuidores, é, na jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, de vacatio legis, por reconhecida hipótese de abolitio criminis temporalis.
2. Ordem concedida.
(HC 38.460/RJ, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 28.06.2005, DJ 06.02.2006 p. 341)
Com esta abolitio criminis temporalis, aqueles que foram presos, processados, condenados na vigência da lei anterior, pelo crime de posse de arma de fogo, previsto no artigo 10, da 9.437/97, restaram beneficiados, pois neste ponto, a nova lei é mais favorável, a medida em que torna atípica temporariamente a conduta de posse de arma de fogo, motivo pelo qual os Tribunais passaram a aplicar a abolitio criminis temporalis à aqueles que praticaram o crime de posse ilegal de arma de fogo na vigência da Lei de Armas, nº 9.437/97, senão vejamos:
STJ - RECURSO ESPECIAL. PENAL. POSSE DE ARMA DE FOGO. ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA. PREVISÃO NOS ARTS. 30, 31 E 32 DA LEI N.º 10.826/03.
PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. APLICAÇÃO AO CRIME DE POSSE ILEGAL DE ARMA COMETIDO NA VIGÊNCIA DA LEI N.º 9.437/97.
1. Diante da literalidade dos artigos relativos ao prazo legal para regularização do registro ou entrega da arma de fogo à Polícia Federal, nos termos do arts. 30, 31 e 32 da Lei 10.826/03, houve uma abolitio criminis temporária, no tocante às condutas delituosas relacionadas à posse de arma de fogo.
2. Com base no art. 5.º, inciso XL, da Constituição Federal e no art. 2.º, do Código Penal, esta abolitio criminis temporária deve retroagir para beneficiar os Réus apenados pelo crime de posse de arma de fogo perpetrado na vigência da Lei n.º 9.437/97.
Precedentes.
3. Recurso conhecido e desprovido.
(REsp 895.093/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 26.06.2007, DJ 06.08.2007 p. 679)
STJ - Penal. Posse ilegal de arma de fogo. Abolitio criminis. Recurso Especial. Art. 1º, caput, da Lei n. 9.437/97. Arts. 30, 31 e 32, do Estatuto do desarmamento. Posse ilegal de arma de fogo. Fato anterior ao início do prazo para regularização da arma – “A Lei n. 10.826/03, em seus arts. 30 a 32, estipulou um prazo para que os possuidores de arma de fogo regularizassem sua situação ou entregassem a arma para a Polícia Federal. Dessa maneira, até que findasse tal prazo, que se iniciou em 23.12.2003 e que teve seu termo final prorrogado até 23.10.2005 (cf. Lei 11.191/2005), ninguém poderia ser processado por possuir arma de fogo. A nova lei, ao menos no que tange aos prazos dos artigos 30 a 32, que a doutrina chama de abolitio criminis temporária ou de vacatio legis indireta ou até mesmo de anistia, deve retroagir, uma vez que mais benéfica para o réu (APn nº 394/RN, Corte Especial, Rel. p/ Acórdão Min. José Delgado, j. 15/03/2006). O período de indiferença penal (lex mitior), desvinculado para os casos ali ocorridos, dado o texto legal, alcança situações anteriores idênticas. A permissão ou oportunização da regularização funcionaria como incentivo e não como uma obrigação ou determinação vinculada. A incriminação (já, agora, com a novatio legis in peius) só vale para os fatos posteriores ao período da ‘suspensão’” ( STJ – 5ª T. – RHC 21.271/DF – rel. Felix Fischer – j. 28.06.2007 – DJU 10.09.2007, p. 245).
Em 17 de junho de 2004, surge a Lei nº 10.884, convertendo Medida Provisória nº 174, de 19 de março 2004, dispondo em seu art. 1º que:
O termo inicial dos prazos previstos nos arts. 29, 30 e 32 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, passa a fluir a partir da publicação do decreto que os regulamentar, não ultrapassando, para ter efeito, a data limite de 23 de junho de 2004.
Com este novo prazo, restou prorrogado a abolitio criminis temporalis, impedindo a punição dos possuidores de arma de fogo irregular. Ou seja, ninguém poderia ser preso nestas circunstâncias.
A partir desta data, o crime de posse de arma de fogo passou a ser punido e pessoas que fossem encontradas nesta situação, passaram a ser autuadas em flagrante.
Ocorre que seis meses após, em 17.12.2004, surge a MP nº 229, dispondo em seu Art. 5º, que os prazos previstos nos arts. 30 e 32 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, ficam prorrogados, tendo por termo final o dia 23 de junho de 2005, redação esta que foi mantida pela Lei nº 11.118, de 19 de maio de 2005, trazendo mais uma vez a abolitio criminis temporalis.
Em 10 de novembro de 2005, vem a Lei nº 11.191 (convertendo a MP. Nº 253, de 23.6.2005) dispondo em seus arts. 1º e 2º, que:
Art. 1º O termo final do prazo previsto no art. 32 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, fica prorrogado até 23 de outubro de 2005.
Art. 2º O termo final do prazo previsto no art. 30 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, fica prorrogado para os residentes em áreas rurais que comprovem depender do emprego de arma de fogo para prover sua subsistência familiar, de acordo com o disposto no § 5º do art. 6º da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, por 120 (cento e vinte) dias após a publicação desta Lei.
A partir de 23 de outubro de 2005, as pessoas que fossem surpreendidos no interior de suas residências na posse da arma de fogo, passaram a serem presas e processadas pelo crime previsto no art. 12 do Estatuto do Desarmamento, pois já não mais vigia a abolitio criminis temporalis, instaurando-se as respectivas ações penais, surgindo condenações, submetendo os autores às sanções previstas no art. 12 da Lei de Regência. Só não seria crime, nas hipóteses em que o autor residisse em área rural e comprovasse depender do emprego da arma de fogo para prover sua subsistência familiar.
Vejamos mais algumas jurisprudência sobre o tema:
STJ - HC. Posse de arma de fogo e munições. Estatuto do desarmamento. Flagrante lavrado em sua vigência. Prorrogação do prazo. Possibilidade de regularização da posse ou de entrega da arma.
HABEAS CORPUS Nº 47.895 - MS (2005/0153256-1) (DJU 10.04.06, SEÇÃO1, P. 251, J. 16.03.06)
RELATOR: MINISTRO GILSON DIPP
IMPETRANTE: L.C.N.L
IMPETRADO: SEGUNDA TURMA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO D0 MATO GROSSO DO SUL
PACIENTE: D.M.P.
EMENTA
CRIMINAL. HC. POSSE DE ARMA DE FOGO E MUNIÇÕES. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. FLAGRANTE LAVRADO EM SUA VIGÊNCIA. PRORROGAÇÃO DO PRAZO. POSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO DA POSSE OU DE ENTREGA DA ARMA. VACATIO LEGIS INDIRETA E ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.
I. A Lei n.º 10.826/03, ao estabelecer o prazo de 180 dias para que os possuidores e proprietários de armas de fogo sem registro regularizassem a situação ou as entregassem à Polícia Federal, criou uma situação peculiar, pois, durante esse período, a conduta de possuir arma de fogo deixou de ser considerada típica.
II É prescindível o fato de se tratar de arma com a numeração raspada ou de ser de uso restrito das Forças Armadas e, portanto, insuscetível de regularização, pois isto não afasta a incidência da vacatio legis indireta, se o Estatuto do Desarmamento confere ao possuidor da arma não só a possibilidade de sua regularização, mas também, a de simplesmente entregá-la à Polícia Federal.
III. Tanto o art. 12, quanto o art. 16, ambos da Lei n.º 10.826/2003, pela simples posse, ficam desprovidos de eficácia durante o período de 180 dias. Precedentes.
IV. O prazo estabelecido na Lei n.º 10.826/2003 foi majorado posteriormente por outras normas (Lei n.º 10.884/04, Lei n.º 11.118/05 e Lei n.º 11.191/05), as quais prorrogaram o limite de regularização das armas, bem como de sua entrega até a data de 23/10/2005.
V. Deve ser trancada a ação penal instaurada contra o paciente, quanto ao delito tipificado no art. 16 da Lei n.º 10.826/03, por atipicidade da conduta.
VI. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator.
Para nossa surpresa em janeiro de 2008, o Presidente da República, resolveu ressuscitar a abolio criminis¸ por meio da Medida Provisória nº 417, de 31 de janeiro de 2008, diploma este que foi convertido na Lei nº 11.706, de 19 de junho de 2008 dispondo que o art. 30 da Lei nº 10.826/2003 passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo de fabricação nacional, de uso permitido e não registradas, deverão solicitar o seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008, apresentando nota fiscal de compra ou comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e a sua condição de proprietário.
Parágrafo único. Os possuidores e proprietários de armas de fogo de procedência estrangeira, de uso permitido, fabricadas anteriormente ao ano de 1997, poderão solicitar o seu registro no prazo e condições estabelecidos no caput.”
Com essa nova alteração no Estatuto do Desarmamento, pode-se afirmar que o Estado-juiz deve trancar (extinção de punibilidade) todas as ações criminais em curso, tendo em vista a abolitio criminis temporalis que reingressou no ordenamento jurídico, ou seja, quem foi preso, no período compreendido entre 23.10.2005 a 31.01.2008, deve ser colocado em liberdade, os processos em cursos devem ser extintos, quem foi condenado, deve ter julgada a extinção de punibilidade.
Assim, podemos concluir que a partir de 31 de janeiro de 2008, as Autoridades Policiais devem se abster de autuar em flagrante quem quer que seja encontrado na posse de arma de fogo de uso permitido, não registradas. Já os casos em que a arma fogo for de uso restrito, a lei continua em plena aplicação, não ocorrendo a abolitio criminis temporalis.
Mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada - Espanha. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo ICAT/UDF. Pós-graduado em Gestão Policial Judiciária pela ACP/PCDF-FORTIUM. Professor Universitário de Direito Penal e Orientação de Monografia. Advogado. Delegado de Polícia da PCDF (aposentado). Já exerceu os cargos de Coordenador da Polícia Legislativa da Câmara Legislativa do Distrito Federal (COPOL/CLDF), Advogado exercendo o cargo de Assessor de Procurador-Geral da CLDF. Chefe de Gabinete da Administração do Varjão-DF. Chefe da Assessoria para Assuntos Especiais da PCDF. Chefe da Assessoria Técnica da Cidade do Varjão - DF; Presidente da CPD/CGP/PCDF. Assessor Institucional da PCDF. Secretário Executivo da PCDF. Diretor da DRCCP/CGP/PCDF. Diretor-adjunto da Divisão de Sequestros. Chefe-adjunto da 1ª Delegacia de Polícia. Assessor do Departamento de Polícia Especializada - DPE/PCDF. Chefe-adjunto da DRR/PCDF. Analista Judiciário do TJDF. Agente de Polícia Civil do DF. Agente Penitenciário do DF. Policial Militar do DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COIMBRA, Valdinei Cordeiro. A Lei nº 11.706, de 19 de junho de 2008 e o crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido e não registradas - abolitio criminis temporalis e suas sucessivas ocorrências Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 ago 2008, 21:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/5/a-lei-no-11-706-de-19-de-junho-de-2008-e-o-crime-de-posse-ilegal-de-arma-de-fogo-de-uso-permitido-e-nao-registradas-abolitio-criminis-temporalis-e-suas-sucessivas-ocorrencias. Acesso em: 21 nov 2024.
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