É bastante preocupante o crescente conflito entre as instituições públicas, a partir do início da última década do século XX, no Brasil.
Esses conflitos ocorrem, na maioria da vezes, porque os agentes públicos, de um lado, não obedecem ao princípio da hierarquia, imprescindível em qualquer organização pública, até mesmo no setor privado. De outro lado, em sentido mais amplo, há que se observar o princípio da independência e harmonia dos Poderes, que é um princípio federativo protegido por cláusula pétrea.
A maioria das Adins do governo contra as Casas Legislativas, por exemplo, tem sua origem na usurpação de competência do Executivo na iniciativa de leis em determinadas matérias.
Quando é o Executivo que usurpa a competência do Legislativo, de forma ostensiva, a Constituição Federal prevê o mecanismo da sustação do ato impugnado por iniciativa do Congresso Nacional. Quando é o Judiciário que “legisla”, por meio de construção pretoriana, não há medida prevista na Constituição para coibir eventual excesso, porque o Judiciário é o Poder apropriado para dirimir conflitos de competência e de dizer a última palavra em matéria de aplicação do Direito, por intermédio de seu órgão de cúpula, que é o Supremo Tribunal Federal.
Outros conflitos existem, como os noticiados pela imprensa, envolvendo desentendimentos entre autoridades do mesmo Poder, ou autoridades de um Poder versus autoridades de outros Poderes, culminando, às vezes, com prisões espetaculosas. Tudo isso, aos olhos da população em geral, não deixa de causar impacto negativo nas imagens de nossas instituições públicas.
Mas, o propósito específico deste artigo é o de examinar o recente mal-estar no seio do Ministério Público motivado pelo posicionamento da AGU no sentido de processar, por ato de improbidade, os membros do Parquet que ingressarem com ação judicial, para obstar a construção de obras devidamente licenciadas por órgãos competentes.
O caso que deu margem a essa resolução da AGU, com o respaldo do governo, é a construção da Unsina Hidroelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu.
De um lado, há que se examinar a obrigação do Estado, no caso, do governante, de agir de forma previdente. Não se pode aguardar o esgotamento de recursos energéticos para, só então, começar cogitar da construção de usinas hidroelétricas, ou de aventar outras fontes alternativas de energia. Do contrário, poderá repetir-se o episódio do “racionamento” ocorrido no governo FHC, que amargou os frutos da inércia da década de 80, conhecida como a “década perdida”. A crise de energia trouxe prejuízos incalculáveis à nação, apesar de todo o esforço desenvolvido pelo governo de então, para minimizar ao máximo seus efeitos danosos.
De outro lado, não se pode esquecer do papel constitucional do MP como órgão incumbido da “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, da CF).
Outrossim, a instauração do inquérito civil e da ação civil pública, para proteção do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, está expressamente previstas no inciso III, do art. 129, da CF.
É verdade que, algumas vezes, o MP vem extrapolando suas atribuições ingressando com ação civil pública em matéria tributária, o que importa em confundir “interesses difusos e coletivos” com “interesses individuais plúrimos e disponíveis”, os quais, estão fora do alcance da ação do MP, sob pena de invadir esfera de ação reservada a advogados em geral. E aqui é oportuno esclarecer que não se está negando o direito do MP de ingressar com outro tipo de ação na condição de fiscal da lei. Nada impede, por exemplo, de o MP propor Adin contra uma lei tributária de manifesta inconstitucionalidade, mas, isso não tem acontecido, na prática, lamentavelmente.
Essa exorbitância vem ocorrendo com base na Lei nº 7.347/85, que instituiu a ação civil pública e com fundamento no art,. 25, IV, a da Lei nº 8.625/93, que teria matriz constitucional no inciso IX, do art. 129, da CF, que confere ao MP a faculdade de “exercer outras funções que lhe forem conferidas...”.
Só que a expressão “exercer outras funções” e incompatível com a expressão “promover ação civil pública” contida no inciso III, do art. 129, da CF. Uma coisa é exercer funções, outra coisa bem diversa é propor ação judicial.
Porém, no caso sob exame, a ação civil pública do MP tem expressa previsão legal e constitucional. Não se trata, pois de extrapolamento de atribuições institucionais do do Órgão Ministerial.
Agora, se está ou não havendo abuso ou excesso no ajuizamento de ação civil pública é outra questão.
O certo é que não se pode sustentar, com a tranqüilidade que parece transparecer na decisão da AGU, que obstar, por meio de ação judicial, a execução de obra pública licenciada pelo IBAMA, configura ato de improbidade.
O único inciso legal que poderia ser invocado contra os Promotores Públicos e Procuradores de Justiça, no caso, seria o do inciso I, do art. 11, da Lei nº 8.429/92, consistente na prática de “ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”.
Logo, sem a prova do dolo, no caso, abuso de autoridade, isto é, exercício de um poder conferido para determinado fim, para alcançar outro fim, não será possível falar em ato de improbidade.
A questão não tão simples para ser decida, apressadamente, sem amplos estudos conjuntos com as autoridades e instituições envolvidas.
Obra licenciada pelo órgão competente não significa, necessariamente, obra intocável. Sempre que houver fundadas suspeitas de irregularidades é possível ao MP, no cumprimento de sua missão constitucional, por meio de inquérito civil, detectar eventuais ilegalidades cometidas no ato de concessão da licença ambiental.
Dessa forma, transformar em rotina o ajuizamento de ação de responsabilidade por ato de improbidade contra os membros do Parquet que promoverem ação civil pública em defesa do meio ambiente e dos direitos individuais indisponíveis, não nos parece uma solução adequada. Ela representaria uma espécie de “reconvenção” sui generis, sem respaldo na lei. Na eventualidade de o órgão ministerial resolver revidar com uma outra ação, a de natureza penal, por crime de abuso de autoridade, o relacionamento entre as duas instituições ficaria estremecido de forma irreversível.
Por isso, a melhor solução é a manutenção da sistemática que sempre vigorou, ou seja, encarregar o Poder Judiciário para servir de árbitro nas divergência entre o Executivo e o Órgão Ministerial, dotado de autonomia administrativa e orçamentária a partir da Constituição de 1988.
Um liminar concedida em primeira instância, para obstar o prosseguimento de uma obra, sempre será passível de revisão por meio de recursos nas instâncias ordinária e extraordinária. Assim agindo preserva-se a autonomia e harmonia das instituições públicas e resguardam a boa imagem e a confiabilidade delas perante a sociedade em geral.
SP, 7-2-10.
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