Introdução
É certo que os enunciados do FONAJE (Fórum Nacional dos Juizados Especiais) possuem grande importância na interpretação e aplicação dos dispostos na lei 9.099/95, em especial, com relação aos juizados cíveis. Todavia, tais disposições não se caracterizam como lei, mas somente como recomendações, orientações procedimentais. Neste contexto, é certo que o magistrado não se encontra obrigado a julgar estritamente de acordo com os enunciados, bem como que tais enunciados não podem contrariar a legislação vigente. Ao final, serão trazidos casos específicos e, em especial, o recente enunciado nº 135, que condiciona o acesso das microempresas e empresas de pequeno porte ao juizado pela apresentação de nota fiscal, ainda que a parte contenha um título executivo.
O que é o FONAJE
Nada mais razoável do que iniciar o presente estudo com as definições básicas dos institutos que serão debatidos.
FONAJE é a abreviação de Fórum Nacional dos Juizados Especiais. Consiste nos encontros nacionais de coordenadores dos juizados especiais de todo o país, por duas vezes ao ano, desde a promulgação da lei 9.099/95. De acordo com o seu regimento interno, são membros do FONAJE todos os magistrados que atuarem na área dos Juizados Especiais.
Trata-se de um fórum de debates, visando interpretar noções para os operadores que atuam nos juizados especiais, bem como fortalecer os juizados especiais cíveis e criminais estaduais.
Nestes encontros, são votados enunciados, no intuito de preencher lacunas, interpretar e integrar a lei 9.099/95, os quais são, muitas vezes, utilizados como subsídios para os operadores do direito no sistema dos juizados especiais.
As deliberações do FONAJE, consoante o seu regimento interno, são tomadas por maioria simples de votos, exceto a modificação e exclusão de enunciados e alteração do próprio Regimento, que depende de voto de 2/3 dos presentes em Assembléia Geral.
O que é um enunciado. A natureza jurídica do enunciado
O enunciado, em termos jurídicos, assemelha-se à súmula.
A súmula de um Tribunal ou uma turma consiste no enunciado pelo qual este inscreve ou sintetiza o seu entendimento sobre questões que apresentem controvérsias na jurisprudência.
Em verdade, a súmula ou o enunciado servem para expressar a orientação de determinados julgadores acerca de um tema controvertido, objetivando divulgar a jurisprudência.
Todavia, não possuem, de modo algum, o “status” de lei, não sendo a sua aplicação obrigatória. Sua natureza é de orientação, reconvenção, não impedindo a atividade criadora do juiz de 1º grau nem o livre convencimento motivado.
Consoante Rodrigo Paladino Pinheiro, que acrescenta não ser a Súmula obrigatória nem para o próprio Supremo Tribunal Federal (2010):
“A Súmula também não é obrigatória para o próprio Supremo Tribunal: os advogados, quando surgir a oportunidade em algum processo, poderão pedir-lhe que reveja a orientação lançada na Súmula.”
Complementado por Airton Franco (2009):
“Súmulas não são leis, pois o Poder Judiciário não pode legislar positivamente, do mesmo modo como não pode deixar de proferir provimento para a solução de conflitos que lhe são encaminhados”.
Diversa não é a situação específica dos enunciados do FONAJE, que tão somente visam uma suposta padronização de atos processuais, não podendo se sobrepor às legislações formais ou quaisquer princípios. Nas lições de Douglas Fernandes (2009):
“Os enunciados tratam-se tão somente de orientações procedimentais com o fim maior de padronização e uniformização nacional dos atos processuais praticados em todos os Juízos, não podendo, por conseguinte, sobrepor as legislações formais, tampouco o princípio da legalidade. A relevância dos Enunciados FONAJE não devem passar de orientações procedimentais, entendimentos comuns entre os juizados dos estados sobre a aplicação técnico-jurídica de determinados dispositivos, sejam da lei especial seja da lei dos códigos de processos, no âmbito dos juizados especiais, para o deslinde dos casos”.
Em nosso sistema jurídico, só se verifica a existência de súmula vinculante quando se trata do Supremo Tribunal Federal.
A súmula vinculante é fruto de reiteradas decisões do Pretório Excelso, mas, para que obtenha o caráter vinculativo (para todos os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública) e seja editada, deve ser aprovada por 2/3 dos ministros.
No mais, todas as súmulas e enunciados dos Tribunais apenas têm natureza jurídica de guia, orientação, podendo, a qualquer tempo, ser contrariado pelo magistrado, desde que, fundamentadamente.
A lei 9.099/95, a legislação processual e a aplicação dos enunciados
O sistema jurídico prevê que, uma vez não constando a solução na lei 9.099/95, deverá ser utilizado o Código de Processo Civil, subsidiariamente.
Assim, as lacunas da Lei que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis preenchidas pela legislação processual em vigor.
Grande parte da doutrina entende que este diploma legal deve ser integrado a todos os outros microssistemas legais, como Gustavo Camargo Hermann (2007):
“Para a boa aplicação do procedimento submetido aos JECs não deve a lei nº 9099/1995 ser interpretada isoladamente, mas sim, em conjunto com o Código de Processo Civil, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil, de modo a integrá-la”.
Por outro lado, existem operadores do direito que privilegiam a utilização dos Enunciados do FONAJE, para promover a integração da lei dos juizados. Esta opção, apesar de deveras válida, não pode, de modo algum, contrariar os ditames da legislação processual vigente. Noutras palavras, uma vez verificada contrariedade entre o enunciado e a legislação processual, esta deverá ser aplicada.
Neste sentido, pondera Douglas Fernandes (2009):
“Se houver confronto entre os enunciados FONAJE e a lei processual, sendo omissa a lei dos juizados, não resta dúvidas que a aplicação que deverá predominar é a disposta na lei processual, diante da disparidade de força entre a lei formal e os enunciados, que são meramente orientações de aplicação, sem força de lei”.
Casos específicos
Embora seja de inegável importância a existência e a aplicação dos Enunciados do FONAJE, é indispensável, quando de sua elaboração e/ou utilização, a observância da legislação processual em vigor, sob pena de violação dos princípios da legalidade e da segurança jurídica.
O doutrinador Douglas Fernandes (2009) traz à tona o caso da contagem do prazo de citação/intimação nos Juizados Especiais Cíveis. Trata-se, especificamente, do Enunciado de nº 13 do FONAJE, com o seguinte teor:
“Os prazos processuais nos Juizados Especiais Cíveis, contam-se da data da intimação ou ciência do ato respectivo, e não da juntada do comprovante da intimação, observando-se as regras de contagem do CPC ou do Código Civil, conforme o caso”.
Em verdade, o Código de Processo Civil dispõe que os prazos deveriam ser contados da juntada aos autos do comprovante de citação e/ou intimação. Tais prazos seriam sacrificados em sede de Juizado Especial Cível em razão da celeridade. Mas, segundo o doutrinador, seria imprescindível a aplicação do diploma processual. In verbis:
“Exemplos desta natureza se encontram no enunciado número 13 do Fonaje, que diz que a contagem do prazo para citação e intimação inicia-se com a ciência da parte, e o disposto no artigo 241do Código de Processo Civil, o qual diz que a contagem do prazo da citação e da intimação se dá da juntada do comprovante de citação ou de intimação. Tal conflito deve ser resolvido com a aplicação do código de processo civil, uma vez que o enunciado não tem força de lei e o código de processo civil trata do assunto, devendo ser aplicado subsidiariamente à lei dos juizados especiais estaduais o código de processo. A aplicação do citado enunciado reputa-se total afronta à lei formal, caracterizando ilegalidade e um descompasso aos dogmas constitucionais”.
Ousamos trazer à baile o recente caso do Enunciado 135 do FONAJE, relativamente aos Juizados Especiais Cíveis. Tal orientação condiciona o acesso da microempresa ou da empresa de pequeno porte à comprovação de sua qualificação tributária atualizada e documento fiscal referente ao negócio jurídico debatido. Transcrevemos:
“Enunciado 135 (substitui o enunciado 47) – O acesso da microempresa ou empresa de pequeno porte no sistema dos juizados especiais depende da comprovação de sua qualificação tributária atualizada e documento fiscal referente ao negócio jurídico objeto da demanda”.
Ora, não restam dúvidas quanto à necessidade de comprovação da qualificação tributária atualizada de tais pessoas jurídicas. Entretanto, a celeuma se assenta com relação ao documento fiscal referente ao negócio jurídico objeto da demanda.
Primeiramente, há de se observar que a nota fiscal não é o único meio de prova da operação de uma existência mercantil, especialmente em pequenos estabelecimentos. Tal enunciado, aliás, em não contribui, de modo algum, para a melhor solução dos litígios e/ou na busca da verdade real, mas somente dificulta a subsistência das microempresas e empresas de pequeno porte, face aos altos índices de inadimplência. Em verdade, frustra-se, de certo modo, a função social da justiça, de fazer os devedores cumprirem com suas respectivas obrigações.
Leciona Éderson Ribas Basso e Silva (2009):
“Vale observar que determinada decisão em nada contribui para a melhor solução dos litígios e para a busca da verdade real, apenas servindo para tornar ainda mais difícil a vida das empresas de pequeno porte ou microempresas neste país, bem como fomentar a ação malévola dos maus pagadores”.
Este autor elenca uma série de bons argumentos contrários a tal orientação, como o fato de se tratar de processo relacionado a direito patrimonial, disponível, de a apresentação de nota fiscal não se caracterizar como condição da ação ou condição de procedibilidade, da possibilidade de comprovação de existência do débito por diversos meios (e não somente mediante a apresentação de nota fiscal) de que a exigência de nota fiscal ser atribuição do fisco e jamais do Poder Judiciário, e, finalmente, do fato que tal enunciado contraria o livre acesso ao judiciário e o direito de defesa. Em suas próprias palavras:
“Sob esta ótica, creio que a decisão que extingue o processo sem resolução do mérito, sob a batuta da não emissão da nota fiscal, é completamente equivocada, pelos seguintes motivos: 1.º) se o reclamado for regularmente citado e não comparecer em audiência, não se defender e não pagar a dívida, é evidente sua revelia e a procedência da reclamação; 2.º) se trata de matéria de direito disponível e direito privado, cabendo a parte contrária argumentar tal desiderato, no caso, o devedor; 3.º) não é condição de procedibilidade para se ingressar com reclamação no Juizado Especial, a apresentação da nota fiscal, face a possibilidade da comprovação dos negócios jurídicos através de outros meios legais e idôneos; 4.º) há outros meios de prova que podem ser perfeitamente produzidos (art. 401 do CPC e art. 32 da Lei 9.099/95), especialmente a produção da prova testemunhal, máxime em casos cujo valor da causa é baixíssimo e permitido pelo Juizado Especial (art. 3.º, inciso I da Lei 9.099/95); 5.º) a exigência de nota fiscal é atribuição do Fisco Estadual ou Fisco Federal, dependendo do caso, e não do Poder Judiciário em casos desse jaez, e 6.º) exigir a juntada da nota fiscal em casos como o alinhado acima, seria o mesmo que ceifar o Livre Acesso ao Poder Judiciário, Cercear o Direito de Defesa da parte lesada, no caso, a credora, que está apenas tentando buscar seus direitos da maneira mais correta, legal e justa possível, bem como agredir os Princípios da Informalidade e Simplicidade”.
Neste caso específico, pode se cogitar, até mesmo de ofensa à Magna Carta. Ora, nossa Constituição Federal possui princípios básicos que devem nortear o ordenamento jurídico, como o acesso ao poder judiciário, o contraditório e a ampla defesa. Não se garante o acesso ao Poder Judiciário com a colocação de empecilhos às microempresas e empresas de pequeno porte. Ademais, o Código de Processo Civil estabelece quais são as condições da ação e dentre elas, não elenca a apresentação de nota fiscal.
Títulos executivos extrajudiciais como notas promissórias e cheques também não podem perder as suas qualidades de autonomia e executividade em razão de um enunciado.
Por derradeiro, o Juizado Especial Cível, que deve se pautar nos princípios da oralidade, simplicidade e informalidade, contraria os seus próprios postulados, com exigências ainda maiores do que a justiça comum.
Não é razoável que os processos ajuizados pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam extintos sem julgamento de mérito simplesmente pela ausência de nota fiscal.
Conclusões
Os enunciados do FONAJE possuem grande importância para a interpretação, bem como para a integração dos dispostos na lei 9099/95. Servem como guias, orientações para todos os operadores que atuam na área dos juizados especiais, mas não possuem a natureza jurídica de lei nem tampouco são vinculantes.
Ademais, uma vez contrariando os dispostos na legislação (que deve ser utilizada de modo subsidiário e complementar à lei dos Juizados Especiais Cíveis), tais postulados devem ser preteridos, em razão dos princípios da legalidade e da segurança jurídica.
Especificamente com relação ao enunciado nº 135, relativamente ao ingresso das microempresas e empresas de pequeno porte no Juizado Especial Cível, não é correta a criação de um obstáculo à justiça, principalmente face aos ditames constitucionais (princípios do contraditório, ampla defesa e acesso à justiça). Não pode ser criada uma condição da ação, tornando o acesso aos Juizados mais difícil do que o próprio ingresso na justiça comum, pelo ferimento da simplicidade e da informalidade.
Por fim, é imprescindível repisar que os Juizados Especiais cíveis possuem uma inegável função social no sentido de coibir a inadimplência e tal seria, efetivamente, frustrada.
Bibliografia
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+ESPECIAL+CIVEL Acesso em 17.set.2010.
Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. O Juizado Especial Cível, os enunciados do FONAJE e a legislação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2010, 01:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/704/o-juizado-especial-civel-os-enunciados-do-fonaje-e-a-legislacao. Acesso em: 22 nov 2024.
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