Objetivo:
O ensaio tem o objetivo de fazer uma avaliação crítica sobre a postura do STF acerca da competência para manipular, na forma do artigo 27 da Lei n.º 9.868/99, os efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei, sem uma pretensão de esgotar o tema.
Enfrentamento do tema:
Antes de singrarmos ao enfrentamento do tema propriamente dito, torna-se importante fazer uma análise do surgimento do controle de constitucionalidade concentrado e abstrato no ordenamento jurídico brasileiro, ainda que de forma simplória, mas com o objetivo de situar o leitor.
O controle concentrado e abstrato surgiu no ordenamento jurídico brasileiro com a Emenda nº. 16/65, durante a ditadura militar. Consagrou-se inicialmente de forma tímida, tendo em vista que o único legitimado para a propositura desta ação era o Procurador-Geral da República. A partir de então, passa a conviver no cenário nacional o sistema difuso e o concentrado, o que fez a doutrina cunhar o modelo de controle judicial de constitucionalidade como misto, eclético ou híbrido.
Com efeito, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o constituinte originário deu um novo contorno ao controle de constitucionalidade, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade, permitindo assim o seu pleno funcionamento.
Na tentativa de regulamentar o procedimento e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade foi editada a Lei n.º 9.868/99, a qual introduziu uma série expressiva de inovações no sistema de controle de constitucionalidade adotado pela Carta Política de 1988. Dentre as inovações, merece destaque a regra do artigo 27, que permite o STF manipular os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, desde que fundada em razões de segurança jurídica ou de relevante interesse social, e isto porque, em regra, a decisão em sede de ação direta de inconstitucionalidade possui efeitos ex tunc, ou seja, retroativos. Confira-se o dispositivo, “in verbis”:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.
Esta possibilidade de modulação dos efeitos da decisão definitiva em ADin genérica, que não é uma novidade apenas do ordenamento jurídico brasileiro, estando presente na Lei Fundamental da Alemanha (art. 94, n.º 2), Constituição da Itália (art. 136), Constituição da Espanha (art. 164) e Constituição Portuguesa (art. 282, nºs 1 a 4), albergado agora no artigo 27 da Lei n.º 9.868/99 sofre crítica tanto construtiva quanto restritiva por parte da doutrina. Certo é que, antes mesmo de sua previsão legal, o STF já vinha restringido os efeitos do dogma da nulidade ab initio da lei inconstitucional, como correu no RREE nº 79.343 (DJ 02/09/1977, Rel. Leitão de Abreu, ainda como voto vencido), nº 78.209 e 78.594 (ambos de outubro de 1974, sobre servidores públicos de fato), 105.789 (DJ 09/05/1986, Rel. Carlos Madeira) e 122.202 (DJ 08/04/1984, Rel. Francisco Rezek).
Pois bem, pelo dispositivo mencionado, ficou agora legalmente autorizado ao STF o manejo dos efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade, tanto em relação a sua amplitude, quanto em relação aos seus efeitos temporais, desde que presentes os seguintes requisitos: a) decisão por maioria de dois terços dos membros do STF, e, b) presença de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Para o prof. Ingo Wolfgang Sarlet, ao comentar sobre o art. 11 da Lei n.º 9.882/99 e art. 27 da Lei n.º 9.868/99 in Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Alguns Aspectos Controvertidos, artigo publicado na REDE – Revista Eletrônica de Direito do Estado, número 19, julho/agosto/setembro de 2009, Salvador/BA, p. 11,
“(...) – a despeito da indeterminação da fórmula adotada pelo legislador (uma autêntica caixa de pandora jurídica) – é possível detectar com alguma margem de certeza, determinados pontos controversos, apontando especialmente para alguns graves riscos que podem decorrer da aplicação da nova legislação. Com efeito, postergar no tempo, para além das alternativas ex tunc e ex nunc (ainda mais sendo esta última de cunho excepcional), os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, isto é, a nulidade do ato, constitui fator de grande insegurança jurídica e institucional, por si só potencial ameaça ao princípio do Estado de Direito, além dos graves riscos até mesmo de ofensas aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Pelo menos, tal prerrogativa, exercida sem a devida moderação, poderá colocar em cheque o princípio da separação de poderes consagrado pela nossa Carta Magna, por mais que se possa (e deva) relativizar e contextualizar o seu sentido e alcance. (...). Na tentativa de ilustrar a problemática, verifica-se que, argumentando apenas com a fórmula “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” (e porque não por razões de “Estado” ou, melhor ainda, de “Governo”?) poderá o Supremo Tribunal Federal – e o exemplo aqui vai citado em caráter meramente especulativo – decidir até mesmo que um determinado tributo ou outra medida restritiva de direitos e garantias fundamentais (não ouvidando aqui que as limitações constitucionais ao poder de tributar – ao menos parte delas – já foram consideradas pelo próprio Supremo direitos e garantias fundamentais do cidadão-contribuinte e “cláusulas pétreas”) mesmo sendo manifestamente inconstitucional, poderá continuar sendo aplicada, cobrada ou executada por meses e, quem sabe, até mesmo por anos após ter sido declarada inconstitucional. Em assim sendo, o contribuinte – apesar de ver reconhecido o seu direito a não pagar determinado tributo ou contribuição ofensiva aos princípios constitucionais – e como tal já declarado pelo Supremo Tribunal Federal – poderá ser compelido pelo poder público (e pior, haverá de se resignar com isto, já que – em virtude do efeito vinculante e a depender de sua amplitude e rigor – também não adiantará recorrer às instanciais judiciais inferiores) a continuar pagando pelo prazo que vier a ser fixado pelo Tribunal?!”.
Esta indeterminação mencionada pelo prof. Ingo Sarlet, diga-se, é um fato, pois, tanto o conceito de segurança jurídica como de excepcional interesse social, são conceitos indeterminados, que dependem da visão que cada um tem das coisas, não pode servir, com a devida vênia, como um empecilho à aplicabilidade da modulação dos efeitos da decisão em ação direta de inconstitucionalidade.
É bem verdade que, um dos papeis do julgador, ao proferir uma determinada decisão, é ponderar os bens jurídicos em conflito e optar pela providência menos gravosa para as partes legitimamente interessadas, ainda que esta decisão possa ter como resultado uma situação ilegítima. Vale aqui observar, a modulação dos efeitos da ADIn somente terá sua razão de ser nos casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada ou naquelas hipóteses em que a lacuna resultante da impugnação da norma inconstitucional possa ocasionar o surgimento de uma situação que se distancie ainda mais da vontade constitucional.
Nesse diapasão, é o entendimento de Teori Albino Zavascki in Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional, São Paulo: Revista dos Tribunais 2001, p. 49/50:
“a eficácia ex nunc da decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade, não infirma a tese da nulidade da lei inconstitucional. Ao manter atos com base nela praticados, o Supremo não declara sua validade, nem assume a função de “legislador positivo”, mas exerce típica função jurisdicional: Diante de fatos consumados, irreversíveis ou de reversão possível, mas comprometedora de outros valores constitucionais, só resta ao julgador – e esse é o seu papel – ponderar os bens jurídicos em conflito e optar pela providência menos gravosa ao sistema de direito, ainda quando ela possa ter como resultado o da manutenção de uma situação originariamente ilegítima. Em casos tais, a eficácia retroativa da sentença de nulidade importaria a reversão de um estado de fato consolidado, muitas vezes, sem culpa do interessado, que sofreria prejuízo desmesurado e desproporcional”.
Para Daniel Aguiar de Figueiredo Neto em artigo intitulado A Modulação Temporal dos Efeitos da Decisão em ADIN Genérica, publicado na Revista da ESMESE n.º 9, 2006, p. 293:
“(...), o Supremo Tribunal Federal ao apreciar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade deve ser guiado pelo princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, fazendo prevalecer o bem jurídico, que conforme as peculiaridades do caso, se apresente mais relevante, ainda que isto importe na manutenção de situações amparadas em norma declarada inconstitucional, pois tal prática resulta numa menor ofensa aos valores constitucionais protegidos pela Carta Política”.
Importa ressaltar ainda, a aplicação de efeitos ex-nunc à decisão que declara a inconstitucionalidade de um ato normativo, encontra limite no respeito à coisa julgada, pois, conforme assevera Daniel Sarmento citado por Alexandre Freitas Câmara in O Controle de Constitucionalidade e a Lei 9.868/99, p. 115/116:
“a declaração de inconstitucionalidade de uma norma não tem o condão de desconstituir sentenças transitadas em julgado, baseadas em regra inconstitucional. Contudo, no âmbito civil, se o prazo decadencial de dois anos após o trânsito em julgado da decisão ainda não tiver escoado, poderá o interessado ajuizar ação rescisória, baseando-se em violação literal de lei (art. 485, VI, do CP), já que tal fundamento abrange também a inconstitucionalidade da norma em que se alicerça a sentença”.
Infere-se assim, em que pese os problemas que possa advir do seu uso, a possibilidade de manipulação dos efeitos da decisão definitiva em ADIn é um instrumento de vital importância para tornar mais efetivo o exercício da jurisdicional constitucional. Contudo, impõe-se que seja utilizado com moderação, para evitar abusos, pois, num Estado Democrático de Direito, como o nosso, qualquer atuação estatal deve pautar-se pelo respeito absoluto à Magna Carta, à segurança jurídica e aos direitos fundamentais, sendo inadmitido, portanto, desrespeitos de qualquer ordem, ainda mais de quem têm o dever constitucional de protegê-los.
Implica dizer, ao STF, no uso da discricionariedade que lhe confere o artigo 27 da Lei n.º 9.868/99, compete ponderar os bens jurídicos em conflito e optar pela providência menos gravosa ao ordenamento jurídico vigente, sem ofuscar o princípio da separação dos poderes e relegar em segundo plano os direitos fundamentais. Não se trata de tarefa fácil, mas também não é tarefa impossível.
Assim, o atual cenário em que se encontra o nosso ordenamento jurídico-constitucional, que a cada dia busca tutelar os direitos fundamentais, está a exigir que a postura do STF, ao manipular, na forma do artigo 27 da Lei n.º 9.868/99, os efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade de um ato normativo, seja no sentido de colaborar com a construção de uma sociedade mais humana, justa e igualitária, contribuindo, de igual forma, para que o Estado cumpra o seu papel idealizador, que é realizar o bem comum.
Referência Bibliográfica:
NETO, Daniel Aguiar de Figueiredo. A Modulação Temporal dos Efeitos da Decisão em ADIN Genérica, publicado na Revista da ESMESE n.º 9, 2006.
SARLET, Ingo Wolfgang. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Alguns Aspectos Controvertidos, artigo publicado na REDE – Revista Eletrônica de Direito do Estado, número 19, julho/agosto/setembro de 2009, Salvador/BA.
SARMENTO, Daniel. A eficácia temporal das decisões no controle de constitucionalidade. In: CÂMARA, Alexandre Freitas et al. O controle de constitucionalidade e a lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001.
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
Tabelião concursado do 1º Ofício de Notas de Mutum/MG; Bacharel em Direito com Pós-Graduação em Direito Público, Direito Constitucional, Direito Processual Civil, Direito Notarial e Registral e Direito de Família e Sucessões. Foi advogado nas Comarcas de Belo Horizonte e Região Metropolitana. Foi Tabelião concursado do Tabelionato de Protesto de Títulos da Comarca de Peçanha/MG e Oficial Registrador interino do Ofício de Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de Peçanha/MG. Ex Diretor do Procon Municipal de Ribeirão das Neves/MG e Ex Procurador Geral da Câmara Municipal de Ribeirão das Neves/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIRANDA, Marcone Alves. Crítica à modulação dos efeitos da decisão em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 out 2010, 07:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/738/critica-a-modulacao-dos-efeitos-da-decisao-em-sede-de-acao-direta-de-inconstitucionalidade-adin. Acesso em: 25 nov 2024.
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