O concurso de crimes consiste na ocorrência de mais de um delito, mediante a prática de uma ou mais ações. Há dois sistemas[1] acolhidos pela legislação brasileira, que determinam regras para resolver o concurso de crimes: o primeiro é o do concurso material ou real, que prescreve que sejam somadas as penas cominadas aos diversos crimes (cúmulo material); o segundo é o do concurso formal ou ideal, que determina a aplicação da pena correspondente a um só dos crimes, se idênticos (concurso homogêneo) ou ao mais grave deles, se distintos (concurso heterogêneo), aumentada, porém, de um quantum determinado por lei (exasperação). [2]
Considera-se que um crime é idêntico a outro, não apenas nas hipóteses em que são previstos no mesmo dispositivo legal, mas também quando um deles configura uma forma especialmente mais grave ou qualificada do mesmo crime. [3]
Segundo Bitencourt[4], “o concurso pode ocorrer entre crimes de qualquer espécie, comissivos ou omissivos, dolosos ou culposos, consumados ou tentados, simples ou qualificados e ainda entre crimes e contravenções.
Configura-se o concurso material, de acordo com o artigo 69 do Código Penal, quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Se os crimes são idênticos, o concurso material é homogêneo e se são diversos, é heterogêneo. Em ambos os casos aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que o agente haja incorrido.
Como lembra Dotti[5], “soma das penas aplicáveis ao concurso não têm limite prefixado, dependendo do número das infrações cometidas e das respectivas sanções. Porém, o tempo de cumprimento da pena privativa de liberdade não poderá ser superior a trinta anos (CP, art. 75)”.
Vale também ressaltar que, nos termos do artigo 119 do Código Penal, a extinção da punibilidade dos crimes praticados em concurso, qualquer que seja a modalidade, incidirá sobre a pena de cada um deles, isoladamente.
Bitencourt[6] lembra ainda que “a pluralidade delitiva decorrente do concurso material poderá ser objeto de várias sentenças. Constatada a conexão entre os crimes praticados, serão observados os preceitos do artigo 76 do Código de Processo Penal[7]”.
No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e detenção, a legislação determina que seja executada primeiro a de reclusão, o que, segundo Fragoso[8] configura uma disposição inócua, já que não há praticamente diferença entre as duas modalidades de pena privativa de liberdade, exceto quanto ao regime inicial de cumprimento. No entanto, nesse caso, as duas modalidades se cumprem sob o mesmo regime. Quando aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado deve cumprir, simultaneamente, as que são compatíveis entre si e sucessivamente as demais.
Ressalte-se que, caso, por um dos crimes cometidos em concurso material, o agente tenha sido condenado a pena privativa de liberdade, sem que lhe tenha sido concedida a suspensão condicional da pena, a pena privativa de liberdade atribuída aos demais crimes não poderá ser substituída por pena restritiva de direitos, conforme determina o artigo 69, § 1º do Código Penal.
Há concurso formal, segundo prescreve o artigo 70, primeira parte, do Código Penal, “quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não”. Nesse caso, deve ser aplicada a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade.
Essa prescrição refere-se ao concurso formal próprio ou perfeito, para o qual se aplica a regra da exasperação, ou seja, há um aumento previamente definido, que deverá incidir sobre a pena cabível, e que pode variar de um sexto até metade. Sem que, no entanto, do aumento, resulte uma pena que supere aquela que seria obtida, caso fosse utilizada a regra do cúmulo material, prevista no artigo 69 do Código Penal.
Sobre a configuração do concurso formal próprio, Bitencourt[9] assevera que a unidade de comportamento deve corresponder à unidade interna de vontade do agente, ou seja, o ânimo do autor deve ser o de praticar um único crime e de obter um único resultado danoso. Assim, não poderão existir desígnios autônomos nessa modalidade de concurso, pois é a unidade de desígnio consiste na principal justificativa para a exasperação mais branda da pena, em relação à hipótese do cúmulo material.
Segundo Capez[10], a jurisprudência, embora sem caráter vinculante propõe a seguinte tabela para fins de exasperação da pena no concurso formal próprio:
Número de crimes |
Percentual de aumento |
2 |
1/6 |
3 |
1/5 |
4 |
1/4 |
5 |
1/3 |
6 ou + |
1/2 |
O artigo 70 do Código Penal, em sua segunda parte, prescreve que as penas aplicam-se, cumulativamente, quando a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos. Essa prescrição refere-se ao concurso formal impróprio ou imperfeito, para o qual se aplica a regra do cúmulo material das penas (art. 69, CP).
Nessa modalidade de concurso, conforme Bitencourt[11], o agente deseja realizar mais de um crime, tendo consciência e vontade em relação a cada um deles, o que define a expressão desígnios autônomos a que se refere o dispositivo em voga. Ou seja, “os crimes cometido em concurso não são apenas um, perante a consciência e a vontade, embora sejam objeto de uma única ação. A pluralidade de desígnios justifica a acumulação das penas, cuja conseqüência é uma exasperação mais severa do que a verificada segundo a regra do cúmulo jurídico.
Ressalte-se que o concurso formal impróprio, assim como o concurso material, não configura causa de aumento de pena, pois nos dois casos é prevista a cumulação material das penas e não um aumento incidindo sobre uma só pena.
A quarta modalidade de concorrência delitiva é prevista no artigo 71 do Código Penal: é a hipótese de crime continuado, verificada “quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro”. Nessa hipótese também é aplicada a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, entretanto, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
De acordo com Bitencourt[12], “o crime continuado é uma ficção jurídica concebida por razões de política criminal, que considera que os crimes subseqüentes devem ser tidos como continuação do primeiro, estabelecendo, em outros termos, um tratamento unitário a uma pluralidade de atos delitivos, determinando uma forma especial de puni-los”.
Em relação a essa previsão, o Código Penal adotou a teoria objetiva pura, que, segundo Galvão[13], exclui do conceito de crime continuado toda referência ao elemento subjetivo do autor, de modo que o artigo 71 não faz qualquer menção aos desígnios do agente, sendo apenas necessário que os crimes sejam da mesma espécie.
A despeito da adoção da teoria objetiva pura, conforme Fragoso[14], há jurisprudência firmada pelo STJ no sentido de exigir unidade de desígnio para a caracterização do crime continuado, o que o autor considera intolerável, já que, como já dito, os requisitos do concurso formal não incluem nenhum critério subjetivo. Os requisitos são: crimes da mesma espécie que estejam ligados por certos elementos objetivos homogêneos.
Para Alberto Silva Franco[15], crimes da mesma espécie não são apenas aqueles previstos no mesmo dispositivo legal, mas também aqueles que se assemelham pelos elementos subjetivos e objetivos.
Do mesmo modo, para Fragoso[16], crimes da mesma espécie não são apenas os abrigados sob o mesmo dispositivo legal, incluindo-se na categoria aqueles que, embora distintos, “ofendem o mesmo bem jurídico e que apresentam, pelos fatos que os constituem ou pelos motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns”.
Assim, entende-se que a continuidade resulta de um conjunto de elementos exteriores comuns, necessitando, portanto, que os crimes apresentem as mesmas condições de tempo e de lugar ou de maneira de execução e outras semelhantes.[17]
O juiz, no que tange ao aumento de pena dos crimes continuados, tem a faculdade de exercer um juízo discricionário, podendo aumentar a pena nos limites previstos, de forma motivada, conforme critérios relativos à continuação delitiva, sem considerar elementos outros que já tenham sido analisados em outras etapas da fixação da pena.[18]
Para a exasperação da pena do crime continuado, de acordo com Capez[19], propõe-se, embora sem caráter vinculante, a seguinte tabela:
Número de crimes |
Percentual de aumento |
2 |
1/6 |
3 |
1/5 |
4 |
1/4 |
5 |
1/3 |
6 |
1/2 |
7 ou + |
2/3 |
Se os crimes que compõe a continuidade delitiva forem dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, o juiz poderá, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo.
Entretanto, a pena que resultar desse aumento não pode ser superior àquela que resultaria da aplicação do cúmulo material, o que, segundo Fragoso[20] “equivale a eliminar o benefício do crime continuado nos crimes violentos que atingem a pessoa”.
Segundo Capez[21], “se todos os delitos que integram a série continuada são objeto do mesmo processo, o juiz sentenciante aplicará a regra do art. 71. Se, todavia, os delitos tramitarem por processos diversos, far-se-á a unificação no juízo da execução, que então aplicará a regra do art. 71 do CP”.
Conforme determina o artigo 72 do Código Penal, as penas de multa, no concurso de crimes, qualquer que seja a modalidade, são aplicadas distinta e integralmente, sendo esse o entendimento majoritário da doutrina. Entretanto, Capez[22] aponta a existência de algumas controvérsias em relação aos crimes continuados. Se os mesmos forem considerados concurso de crimes, então a regra deve ser a mesma do concurso formal, ou seja, aplica-se o artigo 72 do Código Penal. Entretanto, se forem considerados crime único, haverá apenas exasperação da pena, sem incidir, portanto, a regra do artigo 72 do Código Penal. Esse tem sido o posicionamento jurisprudencial dominante.
Referências bibliográficas
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, v. 1., 7. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2002.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo : Saraiva, 2001.
DOTTI. René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro : Forense, 2002.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 2004.
GALVÃO, Fernando A. N. Aplicação da Pena. Belo Horizonte : Del Rey , 1995.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro : volume 1: parte geral : arts. 1º a 120. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002.
[1] Há ainda dois outros sistemas de aplicação de penas aos crimes em concurso, que, entretanto, não são acolhidos pela legislação brasileira: o do cúmulo jurídico, segundo o qual a pena aplicada deve ser superior às cominadas a cada um dos crimes e o da absorção, que considera que a pena aplicada ao delito mais grave absorve a pena do delito menos grave. Ver PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro : volume 1: parte geral : arts. 1º a 120. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002, p. 411.
[2] PRADO. Curso de Direito Penal brasileiro..., p. 411.
[3] DOTTI. René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro : Forense, 2002, p. 537.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, v. 1., 7. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 561.
[5] DOTTI. Curso de Direito Penal... , p. 537.
[6] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 563.
[7] A competência será determinada pela conexão: I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras; II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas; III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.
[8] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 2004, p. 440.
[9] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 563.
[10] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 515.
[11] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 563.
[12] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 563.
[13] GALVÃO, Fernando A. N. Aplicação da Pena. Belo Horizonte : Del Rey , 1995, p. 233.
[14] FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 443-444.
[15] Apud GALVÃO. Aplicação da Pena..., p. 233.
[16] FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 444.
[17] FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 444.
[18] FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 446.
[19] CAPEZ. Curso de Direito Penal..., p. 516.
[20] FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 446.
[21] CAPEZ. Curso de Direito Penal..., p. 518.
[22] CAPEZ. Curso de Direito Penal..., p. 518.
Graduada em Direito (UP). Graduada em Comunicação Social - Jornalismo (PUCPR). Especialista em Língua Portuguesa (PUCPR). Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia (ICPC). Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA). Advogada do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Positivo<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARREIROS, Yvana Savedra de Andrade. Concurso de Crimes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 out 2008, 18:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/76/concurso-de-crimes. Acesso em: 22 nov 2024.
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