Introdução
Embora seja um fenômeno antigo, recentemente, o bullying tem ganhado destaque tanto na mídia quanto no âmbito jurídico.
Em linhas gerais, trata-se de uma conduta reiterada, de uma prática de discriminação de um determinado indivíduo (que pode ser criança, adolescente, adulto ou idoso) numa dada coletividade (ambiente de trabalho, escolas, clubes, ambiente virtual, etc).
Em 20 de outubro de 2010, o Conselho Nacional de Justiça lançou uma cartilha contra o bullying, direcionada a professores, pais e funcionários, visando, primordialmente, o combate do fenômeno nas instituições escolares. Ademais, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que estabelece a obrigatoriedade de escolas, clubes de recreação e estabelecimentos congêneres de adotarem medidas de prevenção e de combate ao bullying.
Muitos estados também têm elaborado legislação específica sobre o tema.
No judiciário, a prática do bullying tem, inclusive, gerado a responsabilização civil do agressor (e dos pais, quando este for menor de idade).
Como se verá adiante, a proteção contra o bullying, uma verdadeira espécie de violência, decorre do próprio princípio da dignidade da pessoa humana. Mas não são todos os casos que deverão ser submetidos ao Poder Judiciário, apenas aquelas práticas realmente excessivas e graves, sob pena de se gerar a verdadeira “indústria dos danos morais decorrentes de bullying”.
O que é “bullying”
O “bullying” é um termo em inglês utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo (ou um grupo de indivíduos), com o objetivo de intimidar ou agredir uma determinada pessoa, incapaz de se defender (causando dor e angústia). Pode também se constatar o cyberbullying, quando as ameaças são propagadas via internet, pelo meio digital.
Nas palavras de Luiz Artur Rocha Hilário (2010, p. 32):
“(...) Bullying é a prática reiterada e injustificada de atos intimidatórios e provocativos por um indivíduo, os quais são direcionados a alguém de seu “convívio social”, entendida tal expressão em sua forma mais ampla possível, isto é, abarcando as relações do indivíduo com sua família, seus amigos, colegas de trabalho, de escola/faculdade, ou qualquer outro grupo de que faça parte. (...) Curial perceber, ainda, que não é uma única ofensa ou agressão, física ou verbal, que configura o bullying, e sim uma série de atos contínuos, ainda que com espaços de tempo diversos entre um e outro”.
Complementadas por Miriam Abramovay e Priscila Calaf (2010, p. 34):
“O termo designa situações, primordialmente entre jovens, que levam uma pessoa ou grupo a usar atos repetidos de violência simbólica, psicológica e/ou física contra um terceiro para isolá-lo, humilhá-lo e/ou depreciá-lo. Apesar de ocorrer entre pares, a vítima é supostamente inferior em uma relação assimétrica de poder, na qual não possui meios de se defender. Ao mesmo tempo, o agressor não considera a vítima um sujeito, podendo ser utilizado contra ele a força física, agressão simbólica ou atos de incivilidade”.
E por Cléo Fante (2010, p. 36):
“Essa forma de violência gratuita ocorre na relação entre pares, sendo sua incidência maior entre os estudantes, no espaço escolar. Caracteriza-se pela intencionalidade e continuidade de ações agressivas contra a mesma vítima, sem motivos evidentes, resultando danos e sofrimentos, e dentro de uma relação desigual de poder, o que possibilita a vitimação. (...) O bullying tem como marca constitutiva o desrespeito, a intolerância e o preconceito – que impregna as relações humanas em todas as sociedades – contra alguma característica que destaca ou diferencia a vítima dos demais”.
A doutrinadora Gláucia Cristina da Silva Ésper, por sua vez, detalha os verbos que traduzem as ações de bullying:
“Bullying é uma forma de agressão, física ou psicológica, praticada repetida e intencionalmente com o objetivo de ridicularizar, humilhar ou intimidar quem a sofre. O ato de violência geralmente é cometido contra alguém em desvantagem de poder, sem motivação aparente, causando-lhe dor e humilhação. (...) Alguns verbos traduzem as ações do bullying, como zoar, provocar, isolar, excluir, gozar, apelidar, chutar, humilhar, assediar, amedrontar, ignorar, mas também “dar um gelo”, danificar material escolar, chamar a atenção do aluno ou filho na frente de todos, expondo-o a vexame.”
Incluem-se na prática do bullying todos os apelidos pejorativos ou circunstâncias propositais criadas para humilhar outra pessoa; comentários depreciativos sobre a família de uma pessoa (particularmente, a mãe), sobre o local de moradia, a aparência pessoal, a orientação sexual, a etnia ou o nível de renda, também. É muito comum o ambiente escolar apresentar esse problema (crianças são discriminadas e apelidadas como “gordas”, “quatro-olhos”, “cdfs”, “pirralhas”, “pobrinhas”, etc)
Mas engana-se quem pensar que o bullying só pode ser cometido por atos verbais ou de violência física, uma vez que pode ser praticado, até mesmo, sem que seja proferida uma palavra. Assim ensina Luiz Artur Rocha Hilário (2010, p. 32):
“Chama-se a atenção para o fato de que o bullying não se restringe a atos verbais, podendo ser praticado, inclusive, sem que seja proferida uma única palavra. É o caso típico, por exemplo, do adolescente tímido e fraco que todos os dias, ao passar próximo a determinados colegas no pátio, durante o recreio, ou mesmo na entrada e saída da escola, recebe um tapa na cabeça ou sofre uma queda em razão de colocarem o pé propositalmente para que tropece, e tudo sem qualquer justificativa”.
Das definições transcritas acima, podemos destacar uma série de elementos integrantes/constitutivos do bullying, a saber: 1) pode ser praticado por um indivíduo ou um grupo de indivíduos; 2) contra uma determinada pessoa, supostamente diferenciada (por algum motivo fútil, seja discriminação racial, por idade, classe econômica, etc); 3) a pessoa vítima do bullying é incapaz de se defender, o que possibilita a “vitimização”; 4) os atos de bullying (agressões) são repetitivos; 5) podem ser atos de violência física ou moral; 6) acarreta danos e sofrimentos.
Uma das grandes dificuldades das escolas e locais de trabalho é realmente identificar quais são os casos de bullying, uma vez que a vítima, muitas vezes, cala-se.
O bullying e o direito. A responsabilização civil e criminal. Os projetos de lei.
Embora o bullying não seja um tema novo, sendo que vários adultos de hoje já sofreram com condutas e atos repetitivos e discriminatórios ainda em fase escolar, atualmente, a situação é mais preocupante, principalmente pela existência do cyberbullying.
Em verdade, a prática de bullying é vedada em razão do próprio princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos da personalidade, esculpidos no Código Civil.
Pondera Luiz Artur Rocha Hilário (2010, p. 32):
“Não há, portanto, a menor necessidade de se discutir as proposições legislativas inerentes ao bullying, posto que – não se mostra ocioso repetir – estamos diante de um ato ilícito comum, conhecido, que, acaso gere um dano, permitirá que a vítima busque a responsabilização civil do autor e, dependendo das circunstâncias, até mesmo penal. Sob a ótica do direito constitucional, a proteção contra a prática do bullying decorre do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e do disposto no inciso X do art. 5º da CR/88. (...) No Código Civil Brasileiro, por sua vez, a proteção contra o bullying encontra amparo, principalmente, na proteção dos direitos da personalidade (art. 12), dentre os quais se inserem a honra, a imagem, a integridade física, o nome e a própria “paz interior”, ou seja, inerentes à inviolabilidade da pessoa humana, no aspecto físico, moral e intelectual”.
Ora, muitos doutrinadores acreditam que, uma vez que o bullying se caracteriza como um verdadeiro ato ilícito que ofende a imagem e/ou a honra da pessoa, seriam aplicáveis as regras referentes à responsabilidade civil em geral (ou seja, nos moldes dos artigos 186 e 927 do Código Civil, segundo os quais todo aquele que praticar ato ilícito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, tem o dever de indenizar).
Como explicita de modo incontestável Luiz Artur Rocha Hilário (2010, p. 33), no caso de o praticante de bullying ser menor de idade, é certo que seus pais serão responsabilizados objetivamente pelos seus atos, a teor dos artigos 932, inciso I e 933 do Código Civil.
As escolas ou quaisquer outras instituições que não atuarem na prevenção e no combate ao bullying, conforme o caso, também podem ser responsabilizadas pela sua omissão.
Ademais, deve se atentar que, uma vez que o ato praticado, caracterizado como bullying, também seja ilícito na esfera penal, o agente também poderá ser responsabilizado nesta esfera. Assim, se forem praticadas lesões corporais ou vias de fato, crimes de calúnia, difamação ou injúria (incluindo racial), o autor deverá ser processado criminalmente.
Neste contexto, em 20 de outubro de 2010, o Conselho Nacional de Justiça lançou uma cartilha contra o bullying, direcionada a professores, pais e funcionários, visando o combate (e a própria repressão) do fenômeno nas instituições escolares. Buscou-se aclarar a definição e a identificação dos casos de bullying.
Existem também diversos projetos de leis tramitando tanto no Congresso Nacional como nas Casas Legislativas estaduais.
Na Câmara dos Deputados já foi aprovado o projeto que estabelece a obrigatoriedade de escolas e clubes de recreação adotarem medidas de conscientização, prevenção e combate ao bullying e, ao mesmo tempo, cria o “Programa de Combate ao Bullying”, destinado a identificar as crianças vítimas de intimidação e vitimização nas escolas e na sociedade, com mecanismos de prevenção.
Há estados, como do Rio de Janeiro, em que lei estadual instituiu a obrigatoriedade de escolas públicas e particulares notificarem os casos de bullying à polícia, sendo cominada multa de três a vinte salários, na hipótese de descumprimento.
A seu turno, Santa Catarina se tornou um verdadeiro exemplo de combate ao “bullying”, pois promoveu junto às escolas discussões e orientações em seminários regionais, distribuiu matérias educativos direcionados aos estudantes, professores e familiares, em uma parceria entre a Assembléia Legislativa e o Ministério Público Estadual.
O Poder Judiciário e o combate das “verdadeiras violências”
É inegável que os abusos perpetrados a título de bullying deverão ser submetidos ao Poder Judiciário.
Entretanto, como bem salienta Cléo Fante (2010, p. 37), antes de ser uma questão a ser resolvida pelo judiciário, o bullying deve ser combatido nas próprias instituições (escolas, clubes e estabelecimentos similares, locais de trabalho ou qualquer outra comunidade). In verbis:
“O combate ao bullying continua a ser uma missão mais atribuída às escolas do que aos tribunais. No Reino Unido, todas as escolas são obrigadas a ter um “plano antibullying” que integre normas disciplinares claras. No Canadá e EUA foram introduzidas, no currículo escolar, medidas de prevenção contra o bullying, podendo as escolas serem responsabilizadas por omissão. A Noruega instituiu um programa que prevê a constituição de “comissões antibullying” com competência para a capacitação de docentes e demais profissionais à realização de intervenções e encontros com estudantes e pais dos envolvidos, incluindo a adoção de medidas de apoio às vítimas. Em Portugal, o bullying está sendo amplamente discutido e foi incluído no Programa de Educação para a Saúde – associado à Saúde Mental – e deve integrar o projeto educativo das escolas”.
E complementa Luiz Flávio Gomes (2010):
“Mas não se trata de assunto que possa ser solucionado só com a intervenção do judiciário (da Justiça). Estamos diante de um problema social muito grave, que está a requerer a intervenção de muitos profissionais (solução multidisciplinar). E talvez também aqui a mediação possa dar uma enorme contribuição, buscando uma solução para cada problema com a intervenção de todas as pessoas envolvidas: os protagonistas do bullying (agressor e agredido), os pais, os professores, diretores da escola, funcionários etc”.
E o que isso significa? Significa que o bullying é uma questão grave, que merece tutela jurídica, mas que não pode ser criada uma verdade “indústria dos danos causados pelo bullying”.
Apenas os casos realmente graves, que cause danos irreversíveis, é que estarão sujeitos à apreciação dos magistrados. O ambiente escolar não pode se tornar uma fonte inesgotável de indenizações. Simples brincadeiras ou meros dissabores não poderão ser abusivamente intitulados como bullying.
Nas palavras de Luiz Artur Rocha Hilário (2010, p. 33):
“O grande desafio que se impõe, a meu ver, é como controlar, prevenir ou reprimir o bullying sem que se imponha um rigorismo excessivo e formal a ambientes tradicionalmente informais e liberais, como é o escolar. Veja que a prevenção e a repressão ao bullying não podem retirar dos demais alunos a liberdade de brincar e, sobretudo, a de brigar, ínsita ao ser humano, porquanto algumas das maiores lições que aprendemos provieram de situações difíceis e penosas, ou mesmo de castigos que nos foram impostos. Todo cuidado é pouco, dessarte, para que indenizações desmedidas não estimulem ações judiciais por quaisquer discussões ou brigas de escola, tornando o ambiente escolar, tradicionalmente alegre, prazeroso e liberal, em rigoroso internato. (...) Os desentendimentos e pequenos dissabores que, mais cedo ou mais tarde, acontecem em nossas vidas, devem ser, na medida do possível, resolvidos na forma amigável, relegando-se ao Poder Judiciário apenas as práticas realmente excessivas, posto que abusos não podem ser tolerados, mormente nos dias de hoje, em que o risco de danos decorrentes do bullying são muito maiores do que em décadas passadas, haja vista, por exemplo, o maciço acesso da população à internet e a sites de relacionamento. (...) Noutro norte, nunca é demais alertar para os efeitos colaterais que a chamada “industria dos danos morais” poderia gerar em casos como tais”.
As escolas, os locais de trabalho, os clubes ou quaisquer outras instituições, devem, num primeiro momento, controlar, prevenir e punir os casos de bullying ocorridos em seus respectivos âmbitos. As soluções amigáveis sempre deverão ter preferência.
Apenas no caso de prática de delitos criminais é que os casos de bullying estarão automaticamente sujeitos ao Judiciário. Ao direito devem ser destinadas as “verdadeiras violências”.
Conclusões
O bullying é uma forma de agressão, uma verdadeira de violência praticada nas relações inter-pessoais e, em especial, no âmbito escolar.
Trata-se de uma forma de discriminação e desrespeito e, por esta razão, pode ser submetido ao Poder Judiciário. A responsabilização pode se verificar tanto na esfera cível (inclusive, com os pais respondendo objetivamente pelos atos de seus filhos menores) como na esfera criminal.
Entretanto, deve se atentar que somente os abusos, os excessos, as verdadeiras violências é que devem ser submetidas a uma decisão do Poder Judiciário. Os juízes, deparando-se em casos de supostos bullying, devem verificar a gravidade dos danos, limitando o comportamento das pessoas na sociedade e, ao mesmo tempo, evitando que meros dissabores corroborem com altas e infundadas indenizações.
Bibliografia
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GOMES, Luiz Flávio. Bullying: a violência que bulina a juventude. Disponível em: http://www.novacriminologia.com.br/Artigos/ArtigoLer.asp?idArtigo=2735 Acesso em 09.dez.2010.
HILÁRIO, Luiz Artur Rocha. Bullying – um novo desafio? In Revista Jurídica Consulex, ano XIV, nº 325, agosto de 2010.
PRETEL, Mariana Pretel e. Bullying nas escolas – você sabe o que é? In Jornal Notícias Paulistas, edição de 03 de dezembro de 2010.
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Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. Bullying: uma espécie de violência que não pode ser tolerada pelo direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2010, 08:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/777/bullying-uma-especie-de-violencia-que-nao-pode-ser-tolerada-pelo-direito. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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