Leis infraconstitucionais – leis complementares e leis ordinárias – não podem excepcionar a inviolabilidade do sigilo de dados proclamada na Constituição Federal sem interferência do Poder Judiciário.
Desde o advento da Lei Complementar n° 105, de 10-1-2001, regulamentada pelo Decreto n° 3.724, de 10-1-2001, a questão da quebra do sigilo bancário pela autoridade administrativa vinha suscitando dúvidas e incertezas.
É que o art. 6° da LC n° 105/01 facultou aos agentes do fisco o exame de documentos, registros e livros de instituições financeiras, desde que houvesse processo administrativo instaurado, ou procedimento fiscal em curso e desde que o exame de tais dados fossem reputados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Preenchidos esses dois requisitos legais – existência de processo administrativo ou de procedimento fiscal e a indispensabilidade da quebra do sigilo bancário a juízo da autoridade administrativa competente – caberia a esta autoridade expedir o competente Mandado de Procedimento Fiscal (MPF) habilitando os agentes fiscais a requisitar e examinar os dados bancários.
De posse desses dados – movimentação financeira dos últimos cinco anos – o fisco obrigava o contribuinte fiscalizado a justificar e comprovar cada uma das movimentações dos depósitos bancários e dos cheques emitidos, sob pena de autuação por sonegação de receitas. É claro que em se tratando de contribuinte pessoa física, não obrigado a manter registro contábil de sua movimentação financeira, a exigência do fisco era praticamente impossível de se cumprir, pelo que acabava sendo lavrado o auto de infração.
Tivemos caso de um profissional que prestava serviços para uma empresa de factoring, procedendo a cobrança de créditos e depositando em conta especial o produto da cobrança para ulterior destinação ao credor ou a pessoa por ele indicada. Apesar dos indícios de que a aludida conta destinava-se à movimentação de recursos de terceiros o fisco procedeu à autuação, porque o fiscalizado não logrou explicar as centenas de movimentações bancárias dos últimos cinco anos.
Lembre-se que durante os primeiros anos de vigência da CPMF vigorou o § 3°, do art. 11 da Lei n° 9.311/96, que vedava a utilização pela Secretaria da Receita Federal de dados bancários “para constituição do crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos”.
A lei tornava, pois, ilegal a utilização de prova colhida nas instituições financeiras para outros fins que não a constituição do crédito tributário pertinente a CPMF. A aplicação retroativa da Lei nº 10.174/01 que permitiu a utilização dos dados da CPMF, por implicar utilização de prova ilícita fere o art. 5º, LVI, da CF, o art. 332 do CPC e o art. 157 do CPP. Mas, na falta de definição da jurisprudência dos tribunais o fisco vem promovendo aplicação retroativa dessa lei, confundindo a aplicação imediata com a aplicação retroativa. A CSRF, com base na Portaria nº 69, de 15-7-2009, do CARF, editou Súmula dispondo sobre a utilização retroativa dos dados bancários propiciados pela arrecadação da CPMF.
Apesar da pendência de nada menos que cinco Adins contra o art. 6° da LC n° 105/01 (2.390, 2.386, 2.397, 2.389 e 2.406) o fisco vem promovendo a quebra do sigilo bancário sem ordem judicial, contrariando a tendência jurisprudencial da Corte Suprema.
De fato, a jurisprudência do STF só reconhece o direito de romper o sigilo bancário às CPIs porque elas receberam diretamente da Constituição Federal poderes investigativos próprios de autoridades judiciais (art. 58, § 3°). Assim mesmo os procedimentos para a quebra do sigilo pelas CPIs sempre ficaram submetidos ao controle do Judiciário para coibir abusos.
A Corte Suprema entendeu que nem o Ministério Público, fiscal da lei, pode, sem autorização do Judiciário, quebrar o sigilo bancário, pois o art. 129, III, da CF não lhe confere essa prerrogativa apesar do disposto na Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n° 6.625/93) e na Lei Complementar n° 75/93 que dispõe sobre as atribuições e o Estatuto do Ministério Público da União.
Ora, se ao membro do Ministério Público, mesmo agindo na condição de custus legis, não se reconhece o direito de quebrar o sigilo bancário sem interferência do Poder Judiciário o que não dizer, então, em relação aos agentes do fisco, parte interessada na relação jurídico-tributária?
Apesar de não existir jurisprudência firmada a respeito as decisões do Judiciário sinalizavam a inconstitucionalidade do art. 6° da LC n° 105/01. Essa sinalização veio à tona com o julgamento do RE nº 389808-PR, em 15-12-2010.
O RE n° 389808-PR, Rel. Min. Marco Aurélio questionava o art. 6° da LC n° 105/01 e os arts. 4° e 5° do Decreto n° 3.724/01 considerados constitucionais pela Corte local. Esse julgamento teve uma passagem peculiar.
Para dar efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário a recorrente havia ajuizado Ação Cautelar de n° 33 com pedido de liminar. O Relator da Ação Cautelar, Min. Marco Aurélio deferiu a liminar que, contudo, não foi referendada pelo Plenário no julgamento de 24-11-2010, restando vencidos os Ministros Cezar Peluso, Ricardo Lewandowisk e Celso de Mello, além do Ministro Relator.
Contudo, o RE n° 389.808-PR, no julgamento ocorrido, no dia 15-12-2010, foi provido por maioria por maioria de votos, restando vencidos os Ministros Dias Tófolli, Cârmen Lúcia, Ayres Britto e Ellen Gracie, ausente o Min. Joaquim Barbosa. O Min. Gilmar Mendes, que havia votado pela revogação da liminar na Ação Cautelar n° 33, acompanhou o voto do Min. Relator do Recurso Extraordinário dando-lhe provimento.
Na ocasião, o eminente Min. José Celso de Mello proferiu percuciente voto para concluir que “a inviolabilidade do sigilo de dados, tal como proclamada pela Carta Política em seu art. 5°, XII, torna essencial que as exceções derrogatórias à prevalência desse postulado só possam emanar de órgãos estatais – órgãos do Poder Judiciário (e, excepcionalmente, as Comissões Parlamentares de Inquérito), aos quais a própria Constituição Federal outorgou essa especial prerrogativa de ordem jurídica.”
A decisão plenária da Corte Suprema causa reflexo em inúmeros casos discutidos em juízo sustentando a invalidade e inconstitucionalidade dos créditos tributários constituídos mediante utilização do simples MPF expedido pela autoridade fazendária.
A menos que haja modulação temporal dos efeitos da decisão, que decretou a inconstitucionalidade da quebra do sigilo bancário sem ordem judicial, aquelas autuações fiscais resultantes de utilização de dados bancários poderão ser questionadas em juízo.
Como se sabe, a Corte Suprema, apesar de a modulação de efeitos estar prevista apenas no âmbito da Adin (art. 27 da Lei nº 9.868/99) e da ADPF (art. 11 da Lei nº 9.882/99) vem aplicando esse efeito prospectivo nas decisões de inconstitucionalidade proferidas no controle difuso de constitucionalidade. É o caso, por exemplo, do RE nº 560.626/RS aonde foi declarada a inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/91 que versavam sobre matéria submetida à reserva de lei complementar.
SP, 16-12-10.
* Jurista, com 22 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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