Recentemente tive a oportunidade de trabalhar num caso onde um cliente respondera pelo crime capitulado no Art. 157, §2º do Código Penal, ou seja, roubo qualificado, além de ter sua conduta amoldada ao que preceitua o Art. 288 (quadrilha ou bando) do mesmo diploma legal, e tudo isso pelo fato de ter sido alvo de investigação da Polícia Federal por suposta participação num grupo que pretendia ´´assaltar´´ uma agência bancária do Banco do Brasil.
A Polícia Federal agiu na noite, que segundo ela, antecederia a prática do cogitado ´´assalto´´ à agência bancária, tendo apreendido com algumas pessoas da alegada quadrilha objetos que, segundo a polícia, seriam usados para a prática do roubo à agência bancária.
O Delegado de Polícia Federal procedeu com a prisão de todos em flagrante delito pelo crime de roubo tentado, além das demais tipificações imputadas especificamente a cada um dos detidos, prisão essa que recebeu a chancela do Estado-juiz, haja vista ter o Juiz de Direito acatado a arbitrariedade da prisão flagrancial.
Não bastasse, o Ministério Público ofertou denúncia mantendo a tipificação sugerida pelo Delegado de Polícia no que concerne ao roubo qualificado, sendo que para surpresa, não só desse causídico, mas de todos aqueles que labutam na seara do direito penal, o Juiz entendeu por bem receber a denúncia e prosseguir na ´´perseguição´´ criminal contra aqueles a quem arbitrária e ilegalmente foi imputada a conduta prevista no Art. 157, §2º do Código Penal.
Diante dos fatos praticados pelos agentes do Estado, nota-se que: a) errou o Delegado ao antecipar a prisão daqueles que supostamente praticariam o crime de roubo; b) errou o juiz ao chancelar a prisão arbitrária e ilegal, haja vista que não houve flagrante plausível para subsidiar o encarceramento estatal; c) errou o Promotor de Justiça ao passar por cima da norma penal e princípios norteadores do Direito Penal para desvirtuar o sentido da lei e enquadrar como fato típico singelos atos de cogitação e preparação insuficientes para a caracterização do tipo previsto no Art. 157 do CP; d) errou novamente o Juiz ao receber a absurda denúncia que reconheceu como típico atos de cogitação e supostamente preparatórios e permitir que pessoas fossem submetidas a um processo penal injusto, arbitrário e blindado de ilegalidade.
Impende destacar que todos esses agentes da ilegalidade (Delegado, Promotor e juiz) esqueceram o que aprenderam nos bancos acadêmicos no que concerne à atipicidade da cogitação e preparação, nos moldes do que asseverado por Ulpiano, segundo o qual: cogitationis poenan nemo patitutur.
O Código Penal Brasileiro adotou a teoria objetiva (formal) e exige que o autor tenha realizado efetivamente uma parte da conduta típica de modo a permitir que se adentre ao núcleo do tipo, razão pela qual o preceito constante do artigo 14 do Código Penal dispõe que só se verifica a tentativa quando o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente somente após iniciada a execução.
Mesmo que se levasse em consideração o critério objetivo-individual proposto por Welzel, onde é levado em consideração o plano do autor, que por sua natureza é suscetível de ser valorizada pela determinação de proximidade imediata à ação típica, não seria razoável e sequer permitido pela lei enquadrar atos de cogitação e preparação de assalto a banco no tipo previsto no artigo 157 do com haja vista que a própria atuação da polícia antes do início da execução põe em xeque a certeza quanto à intenção do agente.
Esquecer que a tentativa é a realização incompleta do tipo penal, de modo que há prática de ato de execução sem se chegar o sujeito ativo à consumação, é o mesmo que fadar ao fracasso a segurança jurídica necessária para impedir o peso da força do Estado contra aqueles que sequer exteriorizam a inteção de praticar delitos.
Tipificar atos de cogitação e preparação coloca nas mãos do Estado força e poder que destoam da objetividade necessária para assegurar às pessoas o mínimo de garantia e proteção contra atos arbitrários praticados pelos agentes do estado.
Aceitar como normal o ato de anteceder ao início da execução de um fato para enquadrar o ato como típico e antijurídico é reconhecer a como natural prender uma pessoa pelo fato de ter pensado em furtar, por ter imaginado matar alguém, o que é um absurdo, pois assim todo e qualquer policial poderá prender qualquer cidadão tendo como fundamento o fato de ter obtido a confissão daquele cidadão quanto à prática futura e incerta de um fato tipificado pela norma penal.
O ser humano é dotado de consciência e do direito/poder de decidir sobre a exteriorização da prática de qualquer ato, sendo que até o momento da execução de qualquer ato que seja, pode o ser humano voltar atrás e preferir que aquela conduta fique somente no plano da cogitação ou até mesmo preparação, sendo inconcebível que o Estado possa interferir nesse direito/poder para fins de imputar crimes a pessoas que sequer exteriorizaram atos que iniciados a fase executória são considerados ilícitos.
Felizmente não vivemos naquela realidade reportada pelo filme ´´Minority Report – A Nova Lei´´, onde a polícia podia prever a prática de crimes e prender pessoas sem sequer terem cogitado a prática de qualquer delito.
A realidade vivenciada pela nossa democracia é aquela que garanta ao cidadão o mínimo de objetividade jurídica para fins de impedir a prática arbitrária de atos restritivos de direitos e privativos de liberdades sem a necessária adequação típica do fato à norma penal.
É singular transcrever os ensinamentos do ilustre mestre Rogério Grecco, o qual discorre de forma brilhante sobre o tema ora proposto, veja-se:
"regra geral é que a cogitação e atos preparatórios não sejam puníveis. Em hipótese alguma a cogitação poderá ser objeto de repressão pelo Direito Penal, pois cogitationis poenam nemo patitur. Contudo, em determinadas situações, o legislador entendeu por bem punir de forma autônoma algumas condutas preparatórias, como no caso dos crimes de quadrilha ou bando (art. 288, CP) e a posse de instrumentos destinados usualmente à prática de furtos (art. 25, LCP)" (in Curso de Direito Penal, 2ª ed, Impetus , 2003, p. 275).
A ilustre Ministra Laurita Vaz do Egrégio Superior Tribunal de Justiça discorreu sobre o tema quando relatou o Conflito de Competência nº 56.209-MA, tendo lançado louvável fundamento nos seguintes termos:
´´Em nenhum momento observa-se o início da conduta tipificada no art. 157 do Código Penal. Não houve tentativa de subtração de coisa alheia móvel. Na realidade, restaram caracterizadas tão-somente algumas fases do iter criminis , quais sejam, a cogitação e os atos preparatórios, sem a realização de qualquer ato de execução.´´
Portanto, para que uma conduta seja tipificada como sendo ilícita e ao menos na forma tentada deve ser analisada a linha do crime, ou seja, se além da cogitação e preparação, houve pelo menos o início do ato de execução, nos termos do que preceituado no artigo 14 do CP, sendo que qualquer tentativa de criminalizar a fase de cogitação e preparação deve ser considerada como arbitrária e suscetível de medidas judiciais garantidoras dos direitos e liberdades individuais.
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