Cesare Battisti, condenado pela justiça italiana à pena de morte pela prática de quatro homicídios, fugiu para o Brasil. Aqui, em 2007, o governo italiano apresentou pedido de extradição, seguindo-se a decretação de sua prisão preventiva. Em março do mesmo ano, ele foi detido no Rio de Janeiro. Em novembro de 2008, tendo solicitado refúgio ao Governo brasileiro, o Comitê Nacional de Refugiados (CONARE), órgão responsável para julgar casos de asilo em primeira instância (art. 12, § 1º., da Lei n. 9.474/97), em parecer, rejeitou o pedido por três votos a dois. Em dezembro de 2008, a defesa de Battisti recorreu ao Ministro da Justiça, nos termos do art. 29 da referida Lei. Em janeiro de 2009, com fundamento em parecer da Advocacia Geral da União (AGU), o Ministro da Justiça Tarso Genro, contrariando o parecer, concedeu-lhe o status de refugiado político, com fundamento no art. 1º, I, da Lei n. 9.474/, de 1997 (Estatuto dos Refugiados), que dispõe: “Poderão ser reconhecidos como refugiados indivíduos que: “I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;”
No processo de extradição requerida pela Itália, em dezembro de 2009, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, deferiu o pedido. O Ministro Cezar Peluso, relator do feito, em seu voto, considerou ilegal a atribuição de refugiado a Battisti pelo Governo brasileiro. Para ele, o ato encontrava-se eivado de nulidade absoluta. O Ministro ponderou, ainda, inexistir qualquer indício de irregularidade no procedimento judicial, a existência de tratado bilateral de extradição entre o Brasil e a Itália, devendo, então, analisar a questão fundamental, qual seja, a natureza dos delitos pelos quais foi o extraditando condenado: se comuns ou políticos, nos termos do art. 5º, inc. LII, da Constituição Federal “Não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”.
Sobre a classificação dos delitos, assim se manifestou o Ministro Cezar Peluso: “Cabe exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal a apreciação do caráter da infração para definir se o fato constitui crime comum ou crime político. Não há indícios de perseguição política. Refugiado é uma vítima da Justiça e não alguém que foge da Justiça. Os crimes pelos quais ele é acusado entram com folga na classificação de crimes comuns graves.” Assim, o Pretório Excelso não aceitou os argumentos do Ministro da Justiça, anulou o refúgio e entendeu tratar-se de caso de crimes comuns e não políticos.
Principais pontos da ementa do acórdão proferido pelo STF deferindo o pedido de extradição passiva:
“Refúgio ao extraditando. Concessão, no curso do processo, pelo Ministro da Justiça. Ato administrativo vinculado. Não correspondência entre os motivos declarados e o suporte fático da hipótese legal invocada como causa autorizadora da concessão de refúgio. Contraste, ademais, com norma legal proibitiva do reconhecimento dessa condição. Nulidade absoluta.”
“Extradição. Crime político. Não caracterização. Quatro homicídios qualificados, cometidos por membro de organização revolucionária clandestina. Prática sob império e normalidade institucional de Estado Democrático de Direito, sem conotação de reação legítima contra atos arbitrários ou tirânicos. Carência de motivação política. Crimes comuns configurados.”
“Extradição. Pedido fundado em sentenças definitivas condenatórias por quatro homicídios. Crimes comuns. Refúgio concedido ao extraditando. Decisão administrativa baseada em motivação formal de justo receio de perseguição política. Inconsistência.”
“Sentenças proferidas em processos que respeitaram todas as garantias constitucionais do réu. Ausência absoluta de prova de risco atual de perseguição. Mera resistência à necessidade de execução das penas. Preliminar repelida.”
“Extradição. Deferimento do pedido. Execução. Entrega do extraditando ao Estado requerente. Submissão absoluta ou discricionariedade do Presidente da República quanto à eficácia do acórdão do Supremo Tribunal Federal. Não reconhecimento. Obrigação apenas de agir nos termos do Tratado celebrado com o Estado requerente (Tratado celebrado pelo Brasil e pela República italiana em 1989 e incorporado ao nosso direito positivo interno em face de sua promulgação pelo Decreto n. 863/93).” (Supremo Tribunal Federal, Ext n. 1.085, Relator Ministro CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 16/12/2009, DJe 67, publicado em 16-04-2010).
Deferido o pedido, por maioria, o Pretório Excelso, surpreendentemente, entendeu que a decisão final caberia ao Presidente da República, podendo ele recusar-se a entregar o extraditando. O ex-presidente Lula, em 31 de dezembro de 2010, negou a extradição e concedeu refúgio a Cesare Battisti.
Em face de recurso da Itália, o caso será julgado novamente em março do corrente ano, quando tomar posse o novo Ministro do STF, Luiz Fux. Nessa oportunidade, será apreciada somente a questão da recusa do ex-presidente Lula à entrega do extraditando.
Quanto à condição de refugiado, de ver-se que, nos termos do art. 3º, III, do Estatuto dos Refugiados, é proibida a outorga do mencionado status quando os indivíduos:
“III - tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas;” (itálico nosso).
Independentemente de considerações de ordem política, ideológica ou diplomática, anotando que a decisão envolve, de modo muito nevrálgico, todos esses aspectos, creio, sob o prisma estritamente jurídico, de suma gravidade aceitar a tese de que uma decisão do Ministro da Justiça pode, durante a tramitação do processo de extradição, ter supremacia em relação um texto constitucional e precedência quanto à competência, pois esta é do Supremo Tribunal Federal. Se a análise final fosse do Presidente da República, como foi entendido, de nenhuma valia teria a apreciação da Suprema Corte.
A extradição nada mais é senão a entrega de refugiado, acusado ou criminoso ao governo estrangeiro que o exige em seu próprio Estado para o julgamento de um delito ou cumprimento de uma pena. É de relevo salientar que se o ato é discricionário, só cabe juízo administrativo, não existindo espaço para juízo de legalidade, conforme aponta Celso Antonio Bandeira de Mello em seu parecer no processo.
O Tratado de Extradição entre Brasil e Itália de 1989 (Decreto n. 863/1993) cuida dos casos de recusa de extradição em seu art. 3.º e estabelece em seu n. I, alínea “e”, que a medida “não será concedida: (e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela parte requerida, crime político”. Nos mesmos termos, impõe o art. 77, inciso VII, Lei n. 6.815/1980: “Não se concederá a extradição quando: VII - o fato constituir crime político”. E o art. 5.º, inciso LII, da nossa Constituição Federal, dispõe que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”.
Como vimos, não pode ser esquecido que o § 2.º do art. 77 da Lei n. 6.815/1980 disciplina a competência para apreciação da natureza do crime: “caberá, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal, a apreciação do caráter da infração”.
Se o STF não considerar o crime de natureza política, o Presidente da República encontrará limites para sua discricionariedade, pois não pertence a ele a apreciação da qualificação legal do delito. Assim, não obstante a própria Corte entender que a extradição deve observar a conveniência e oportunidade do Estado, o Chefe do Executivo apenas atuará com discricionariedade se o delito for considerado político. E o Pretório Excelso afirmou decididamente que os fatos objeto da questão são crimes comuns. Ora, se os delitos se mostram de qualificação comum, análise de competência exclusiva do STF, como é que no âmbito do Poder Executivo podem ser considerados políticos, contrariando decisão da mais alta Corte do país?
O Ministério da Justiça do Brasil publicou A Extradição, de autoria da Secretaria Nacional de Justiça e do Departamento de Estrangeiros, esclarecendo que “na extradição passiva, cabe ao Ministério da Justiça encaminhar ao Supremo Tribunal Federal a solicitação do Estado requerente, feita por via diplomática. Após o julgamento do pedido e deferida a extradição, retorna o processo à esfera administrativa para a comunicação à Missão Diplomática do Estado requerente e início da contagem do prazo para a retirada do extraditando do território Nacional” (Imprensa Nacional, Brasília, 1997, Introdução, item “Da atuação do Ministério da Justiça nos processos de extradição”). Assim, conclui o texto, “terminada a fase judicial da extradição, inicia-se a segunda fase administrativa do processo, referente à entrega do extraditando” (item “Da entrega do extraditando”).
Cremos que a legislação brasileira, não adotando o sistema misto ou belga, distingue extradição e entrega do extraditando. Aquela, resultante de um ato jurisdicional, é de competência exclusiva do STF; a última, ato meramente administrativo, de atribuição do Poder Executivo. Este não a pode recusar quando o STF decide tratar-se de crime comum. Nesta hipótese, é possível o adiamento da entrega em determinados casos. Exemplos: doença grave do extraditando e, com consentimento da parte requerente, razão humanitária (Tratado, art. XV, 3). Recusa, nunca. Obedecido o Tratado de Extradição entre a República Federativa e a República italiana, dispõe o seu art. III, 1, “e”, que a medida não será concedida quando o fato pelo qual é pedida for considerado, pela parte requerida, crime político. E o Brasil, pela sua mais alta corte, afirmou que se trata de crime comum. E a alínea “f” da mesma norma proíbe a extradição se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de opinião política ou que sua situação possa ser agravada, razões tidas como inexistentes pelo STF. Decidida a extradição, “o prazo para entrega” (do extraditando) “será de 20 dias” (Tratado, art. XIV, 3).
Nota: nossa primeira apreciação sobre o caso Battisti, no sentido de sua extradição, foi publicada no dia 20 de outubro de 2009 no blog http://damasio.blog.com.br e atualizada em 27 de janeiro e 8 de fevereiro de 2011. Na última versão, contamos com a colaboração dos Doutores Estefam de Araújo Lima, George Niaradi e Emerson Penha Malheiro, Professores do Complexo Educacional Damásio de Jesus (SP). Este trabalho é uma síntese da versão final apresentada por nós na Mesa Redonda O Caso Battisti: Razões do Direito, realizada na Universidade de Estudos de Salerno (Itália), no dia 31 de janeiro de 2011, com a participação dos Profs. Andrea Castaldo, Luigi Kalb, Ernesto Sassano, Giuliana Ziccardi Capaldo e Damásio de Jesus. O evento para o qual fomos convidados para falar durante dez minutos, durou cinco horas. A Moção de Salerno, com as conclusões da Mesa, foi publicada em nosso blog (7 de fevereiro de 2011). Este trabalho, com um pouco mais de 3 paginas, é uma síntese do apresentado em Salerno (43 páginas).
Advogado em São Paulo. Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS. Membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos (CONJUR) da Federação da Indústria de São Paulo. Membro da delegação do Instituto Inter-Regional de Criminologia das Nações Unidas (UNICRI) no 12.º Período de Sessões da Comissão das Nações Unidas de Prevenção ao Crime e Justiça Penal, Viena, Áustria (13-22.5.2003). Autor de várias obras jurídicas. Home page: www.damasio.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Damásio E. de. O Caso Cesare Battisti Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2011, 07:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/848/o-caso-cesare-battisti. Acesso em: 22 nov 2024.
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