Notas Introdutórias
A teoria da imputação objetiva de Günter Jakobs desenvolve sua sistemática com base no conceito de papel social. Este se utiliza de conotação social para delimitar as balizas de imputação, consoante a incidência do indivíduo no contexto da sociedade.
Os papéis sociais constituem-se como pedra angular do sistema de imputação do comportamento de Jakobs, orientando as instituições dogmáticas inseridas no primeiro nível de imputação, que resultam da conseqüência reflexa de aplicação dos papéis, conforme o enfoque direcionado.
Como critério orientador, os papéis sociais indicam o comportamento a ser tomado, de acordo com a composição do sistema social vigente, em que o indivíduo está situado, como elemento objetivamente considerado e, sobretudo como portador de um papel.
Os papéis sociais
Na dicção de Jakobs, os papéis sociais podem ser definidos como “um sistema de posições definidas de modo normativo, ocupado por indivíduos intercambiáveis; trata-se, portanto de uma instituição que se orienta com base nas pessoas” (JAKOBS, 2007, p.22).
Com a aplicação dos papéis sociais, o doutrinador tedesco visa tornar objetivo o comportamento dos indivíduos no sistema social, no sentido de que pertencem a um grupo, que tem certos deveres de conduta esperada pelos demais que sejam cumpridas na medida de sua posição como portador de um papel.
A composição da sociedade esteia-se nestas posições objetivas para manter a ordem e harmonia nas relações de convívio, sendo que, a defraudação das expectativas sociais são suscetíveis de reprimenda, no intuito de reafirmação preventivo-positivo da norma.
A utilização de papéis para definir a atribuição de um comportamento ao resultado prescinde dos conhecimentos subjetivos do agente, isto é, não considera o que o indivíduo sabe de fato, mas do que ele deveria saber como sujeito portador de um papel, inserido em grupo. Nesta direção, Guilherme Guimarães Feliciano preleciona, acerca do papel social considerado que,
“Seu rol de deveres e obrigações estabelece pautas de comportamento para a administração de riscos sociais: comportando-se dentro desses parâmetros, o indivíduo não defrauda expectativas e, por conseguinte, não lesa ou expõe a perigo de lesão bens juridicamente tuteladas”(FELICIANO, 2005, p.94-95).
Para conhecermos a respeito da real extensão dos papéis sociais na imputação objetiva, cabe exemplificar, como no caso do vendedor de armas autorizado, em que seu papel no contexto social corresponde a vender armamento tão somente para aqueles que apresenta porte deferido administrativamente, bem como seguir as demais regras impostas, seja ex lege ou outra forma de normatização definida pelo Estado. A venda ilegal de armas configura violação de seu dever social enquanto portador do papel de vendedor de armas autorizado, passível de punição na esfera penal.
Na hipótese do vendedor de armas que vende uma pistola e munição para um vizinho seu com sérios problemas psicológicos, mas com porte de arma de fogo, não frustra expectativas sociais, pois em sua posição de vendedor, portador de um papel social não são considerados os conhecimentos subjetivos, ou melhor, os conhecimentos especiais do caso concreto, isto é, a degeneração mental do cidadão compete àquele que defere o porte e não ao vendedor, independente de informações adicionais que chegaram ao seu conhecimento.
Jakobs divide os papéis sociais em papéis comuns e especiais, em que a violação dos papéis comuns “trata-se da violação do único papel comum que existe, o papel de comportar-se como uma pessoa comum em Direito, é dizer, o de respeitar os direitos dos demais como contrapartida ao exercício dos próprios direitos”(JAKOBS, 2007, p.57). Sobre os papéis especiais decorre do fato de que os indivíduos devem formar junto com outras pessoas um ente comum, mais ou menos completo, e.g., o papel do pai, que forma uma comunidade com o filho (JAKOBS, 2007, p.56)
Assim, os papéis sociais se delineiam conforme a configuração da sociedade como sistema, atrelado as posturas predispostas pelo ordenamento social, sob uma análise eminentemente objetiva do sujeito, abstraído de juízo de valor próprio para a aferição da violação de papéis.
Acerca da incidência dos papéis sociais na teoria da imputação objetiva de Jakobs, não se situa como modo de aferição segregado, mas impregnado nas instituições dogmáticas do primeiro nível de imputação, relativo ao comportamento.
A influência dos papéis sociais nas instituições dogmáticas de Jakobs
A apreciação acerca da influência dos papéis sociais sob as instituições dogmáticas decorre da observação de que estas são mero corolário lógico dos papéis sociais, variando apenas a posição do indivíduo ou o grau de análise da situação de contato social.
No que tange ao princípio da confiança, em que os indivíduos confiam que o outro cumprirá seus deveres como portador de um papel, isto é, apenas define a interconexão entre os indivíduos objetivamente considerados, ao invés de direcionar o foco nas expectativas sociais da coletividade, aproxima o grau de exame para as expectativas dos indivíduos um em relação ao outro, pessoalmente.
A respeito do risco permitido se define justamente por meio dos papéis sociais, porque tudo aquilo que corresponde às expectativas do papel do agente são reputados como risco permitido, impassível de repreensão penal.
Em outra instituição dogmática, menciona acerca de “uma proibição de regresso cujo conteúdo é que um comportamento que de modo estereotipado é inócuo não constitui participação numa organização não permitida”(CALLEGARI, 2001, p.28). Neste caso, o enfoque concerne aos papéis sociais do terceiro que atua nos seus limites sociais, embora outrem venha a desvirtuá-lo.
Por último, a competência (capacidade) da vítima analisa a vítima e seu papel no contexto social, que por ter sido frustrado por si, vem a ensejar lesão própria que exclui a imputação do comportamento de outrem.
Considerações Finais
De acordo com a exposição supra, os papéis sociais reafirmam a função da norma como preceito a ser respeitado e mantido, em consonância às expectativas alheias, na uniformização dos papéis como atributo ligado a realidade social faticamente tangível.
A objetivação decorrente dos papéis sociais consolida a seu modo a standardização dos comportamentos esperados do indivíduo, em que a partir do momento que o torna destoante à denotação social padronizada sofre contra-reação a fim de incentivar o cumprimento da conduta devida e aceita pela sociedade.
Acerca das instituições dogmáticas, pelo fato destas decorrerem dos papéis sociais, caracteriza a teoria da imputação objetiva de Jakobs como sistematização tautológica, sofrendo fortes críticas em razão disso, como expõe Luiz Régis Prado e Érika Mendes de Carvalho: “o método jacobiano desemboca, em última análise, em uma série de argumentações circulares, de base decisionista, que abre comportas à arbitrariedade”(PRADO, CARVALHO, 2002, p.126).
Não obstante, os papéis sociais no âmbito da teoria da imputação objetiva revelam sua utilidade e adaptação concreta às situações sociais em que os indivíduos se inserem, porém, deve ser vislumbrado com reservas, através de sua conjugação com outros dispositivos que extrapolam a construção teórica de Jakobs, tais como a outra vertente da imputação objetiva, isto é, referente à Roxin, que traz inúmeras contribuições profícuas ao Direito Penal Contemporâneo.
Referências Bibliográficas
CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de dinheiro e outros temas do Direito Penal. 2ªed. rev ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004.
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental Brasileiro. São Paulo: LTr, 2005.
JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no Direito Penal, tradução de André Luís Callegari, São Paulo: RT, 2007.
PRADO, Luiz Régis; CARVALHO, Érika Mendes de. Teoria da Imputação Objetiva do Resultado: Uma aproximação crítica a seus fundamentos. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2002.
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