Uma questão não definitivamente pacificada na doutrina diz respeito à responsabilidade por infrações da legislação tributária. Sobre a questão prescreve o art. 136, do CTN:
“Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”.
Alguns doutrinadores de peso enxergaram nesse dispositivo legal a responsabilidade objetiva.
Aliomar Baleeiro escreveu: “A infração fiscal é formal. O legislador, além de não indagar da intenção do agente, salvo dispositivo de lei, também não se detém diante da natureza e extensão dos efeitos”[1].
Sandra Calmon Macário Coelho, por sua vez assim se manifesta:
“Podemos, então, sem medo de errar, afirmar que a infração fiscal configura-se pelo simples descumprimento dos deveres tributários de dar, fazer e não fazer previstos na legislação. Essa é a sua característica básica”. Mais adiante prossegue: “É preciso frisar – por isso que supinamente importante – ser o ilícito penal uma espécie do gênero ilícito jurídico. Consequentemente, a punição fiscal é uma espécie do gênero sanção. Nela não se vislumbra nada parecido com o ressarcimento do direito privado. É na verdade, castigo, reprimenda, pena. Nada obstante, e não vai nisso nenhuma heresia, a apuração da responsabilidade em tema da infração fiscal aproxima-se muito mais da ‘responsabilidade civil’ do que da ‘responsabilidade penal’... No direito penal, cresce a valorização das teorias da ‘consciência da ilicitude’. No direito civil, avultam as teses da responsabilidade objetiva em relação a terceiros prejudicados, Ora, o Fisco é um terceiro, e privilegiado, na medida em que o interesse público sobrepõe-se ao individual, Vivemos sob a égide da socialização. No fundo, o interesse fiscal é de natureza patrimonial (afetado a um fim público)... Da mesma forma, nas obrigações civis, o descumprimento da prestação acarreta a multa civil, se pactuada, a cargo da parte inadimplente. Assim também no Direito Tributário. Se o contador encarregado da escrita do contribuinte recebe deste o numerário para o pagamento do tributo e não o faz, descumprindo a obrigação, nem por isso é possível alegar escusante do ‘ato de terceiro’ ou da bona fide. A inadimplência é irrogada ao contribuinte, sem mais, acompanhada dos consectários: multa, juros e correção monetária quando cabíveis. O contribuinte é responsabilizado por culpa in eligendo e in vigilando. A sua responsabilidade é plena pela infração[2].
Não bastasse o fato de considerar o fisco como um terceiro quando, na verdade, é parte na relação tributária que se estabelece com o sujeito passivo da obrigação tributária, demonstra o trecho retrotranscrito o apego à teoria da culpa in eligendo e in vigilando que implica consideração do elemento subjetivo.
No nosso entender o art. 136, do CTN não consagra a teoria da responsabilidade objetiva que segundo a Constituição Federal é reservada apenas às entidades políticas e concessionárias de serviços públicos (§ 6º, do art. 37, da CF).
Quando o preceito em questão diz que “independe da intenção do agente” está a significar que independe da vontade consciente e livre de praticar a conduta antijurídica, ou seja, independe do dolo. A responsabilidade tributária só pode ser imputada a quem voluntariamente praticou o ato antijurídico, ou seja, pressupõe a culpa subjetiva do contribuinte ou do responsável, por ação ou omissão. Nesse sentido está evoluindo a jurisprudência de nossos tribunais:
“O art. 136 do CTN, o que toca à infração da lei tributária, deve ser examinado e, harmonia com o art. 137 do CTN, que consagra a responsabilidade subjetiva” (Resp nº 68.087/SP, Rel. Min. Castro Meira, DJU de 16.8.2004).
“Apesar de prever o art. 136 do CTN que a responsabilidade do contribuinte ao cometer um ilícito é objetiva, admitem-se temperamentos na sua interpretação, diante da possibilidade de aplicação da equidade e do princípio da lei tributária in dúbio pro contribuinte – arts. 108, IV, e 112. Precedentes: Resp nº 494080/RJ, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 16-11-2004; Resp nº 699.700/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 3-10-2005; Resp nº 278324/SC, Rel. Min. João Octávio de Noronha, DJU de 13-3-2006).
Não discrepa desse entendimento a jurisprudência do STF [3].
A tese da responsabilidade objetiva pura não se sustenta ante o temperamento que se impõe como decorrência do próprio texto do art. 136 e demais dispositivos do CTN. Aliás, os próprios defensores dessa tese extremada, inconscientemente, acabam por atribuir relevância jurídica ao elemento subjetivo.
Por derradeiro, o STJ dando relevância jurídica ao aspecto da boa-fé do contribuinte sedimentou a tese de que a declaração de inidoneidade de nota fiscal não elide o direito de crédito do ICMS do contribuinte de boa-fé, conforme ementa abaixo:
“EMENTA
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA
NÃO-CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.
1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal
(emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada
inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo
princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (Precedentes das Turmas de Direito Público: EDcl nos EDcl no REsp 623.335/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 11.03.2008, DJe 10.04.2008; REsp 737.135/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 14.08.2007, DJ 23.08.2007; REsp 623.335/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 07.08.2007, DJ 10.09.2007; REsp 246.134/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, julgado em 06.12.2005, DJ 13.03.2006; REsp 556.850/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 19.04.2005, DJ 23.05.2005; REsp 176.270/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 27.03.2001, DJ 04.06.2001; REsp 112.313/SP, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma, julgado em 16.11.1999, DJ 17.12.1999; REsp 196.581/MG, Rel. Ministro Garcia Vieira, Primeira Turma, julgado em 04.03.1999, DJ 03.05.1999; e REsp 89.706/SP, Rel. Ministro Ari Pargendler, Segunda Turma, julgado em 24.03.1998, DJ 06.04.1998).
2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual "salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato" (norma aplicável, in casu, ao alienante).
3. In casu, o Tribunal de origem consignou que: "(...) os demais atos de declaração de inidoneidade foram publicados após a realização das operações (f. 272/282), sendo que as notas fiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo o destaque do ICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de registro de entradas (f. 35/162). No que toca à prova do pagamento, há, nos autos, comprovantes de pagamento às empresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204), sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o Conselho de
Contribuintes."
4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado), uma vez caracterizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS.
5. O óbice da Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que a insurgência especial fazendária reside na tese de que o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro adquirente, máxime tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN.
6. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008”. (Resp nº 1.148.444/MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJE de 27-4-2010).
SP, 13-8-11.
* Jurista, com 22 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
Site: www.haradaadvogados.com.br
E-mail: [email protected]
OBS: O autor não responde às consultas em função deste artigo.
[1] Direito Tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1970, p. 436.
[2] Comentários ao Código Tributário Nacional, 6ª ed. Coord. Carlos Valder do Nascimento. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 325-326.
[3] Cancelamento da penalidade pecuniária, quando evidente a boa-fé do contribuinte: RTJ 33/647; RTJ 37/296; RTJ 41/55.
Advogado em São Paulo (SP). Mestrado em Teoria Geral do Processo pela Universidade Paulista(2000). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. Site:www.haradaadvogados.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HARADA, Kiyoshi. Cancelamento de multas do contribuinte de boa-fé Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jul 2011, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/965/cancelamento-de-multas-do-contribuinte-de-boa-fe. Acesso em: 26 nov 2024.
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