A entrada em vigor da Lei n. 12.403/2011 trouxe à baila o surrado discurso da impunidade que gera insegurança. A despeito dos presídios, cada dia mais abarrotados, dos mandados de prisão e das condenações brotando nas Varas Criminais, somos, cada vez mais, o país da impunidade.
Impunidade é palavra de ordem para os sensacionalistas, uma verdadeira panacéia, que surge sempre que a intenção defender a permanência do status quo na seara criminal. A citada lei tem por característica primordial adequar a prisão e liberdade provisórias, fiança e demais medidas cautelares penais, ao texto Constitucional, decorridos quase um quarto de século de vigência da Constituição.
De plano, verifica-se que não há interferência alguma na aplicação e execução de sanções criminais (condenações definitivas). Assim, não há que se falar em impunidade, uma vez que – ainda é preciso lembrar, infelizmente - a Constituição Federal garante que ninguém deve ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória.
É bom que se diga que não se pretende elaborar uma crítica jurídica à nova lei, até por que a maior parte dos escritos que se lê, têm muito pouco de jurídico. O que se pretende é chamar atenção para alguns argumentos apelativos que há tempos justificam o injustificável.
O primeiro deles, a IMPUNIDADE, já foi citado. Aliás, sempre que alterações desse calibre acontecem, há quem sempre se valha da palavra IMPUNIDADE, sem nenhum tipo de rigor que, a priori, necessário se faz em situações como a que ora se afigura...
Agora, fala-se muito na INSEGURANÇA pela soltura de presos provisórios, ou seja, a impunidade gerada pela nova lei vai resultar em insegurança da população. Ora! Presos provisórios são soltos todos os dias, aos montes, afinal, como a própria nomenclatura está a dizer, são PROVISÓRIOS... E mais, caso existam provas incriminadoras serão condenados, ao final do processo, ocasião adequada para se avaliar qual a pena a ser aplicada, e a que capitulação legal estarão, definitivamente, adstritos.
É preciso ressaltar, ainda, que medidas provisórias não têm caráter punitivo e que, portanto, a não aplicação não resulta em impunidade – NUNCA! Da mesma forma que não pode pleitear indenização, sob a alegação de ter sido injustamente punido, aquele que é preso preventivamente e, ao final do processo, absolvido.
Onde está, afinal, a justificativa plausível para a mencionada INSEGURANÇA da população? Afinal, a entrada em vigor de uma lei que impede a prisão preventiva – veja, a prisão é PREVENTIVA! – de supostos autores de crimes punidos com pena máxima inferior a quatro anos, a não ser que já tenha sido condenado definitivamente por outro crime doloso, gera insegurança para a população?
Antes mesmo de responder a tal indagação é preciso acrescentar que a lei excepciona, ou seja, – permite a prisão preventiva – nos casos em que o crime é cometido envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, desde que a prisão seja decretada para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, tais como a proibição de manter contato com pessoa determinada ou proibição de acesso ou frequência a determinados lugares.
Não se pode olvidar acerca de outra exceção, independentemente da pena aplicada ao crime, a prisão preventiva também pode ser decretada em casos de dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la.
Evidentemente, a resposta à pergunta acima é NÃO! Proibir a prisão preventiva em casos de cometimento de crime punido com pena máxima não superior a quatros anos, nas condições acima expostas, nada mais é do que dar tratamento isonômico à população. Assim é que é, porque é assim que deve ser. E não se exigem tantos esclarecimentos para tais questões, já que ninguém permanecerá preso em tais condições, caso tenha em sua defesa um profissional, minimamente interessado.
Ainda que preso em flagrante, será colocado em liberdade em questão de poucos dias, a não ser, obviamente, que seja preso e esquecido na prisão por não ter alguém que defenda seus interesses, o que, por certo, dá ensejo a uma outra discussão – não menos importante – pois esse é mais um dos dramas que acometem o sistema prisional /punitivo brasileiro, que bem pode ser tratado alhures.
Pois bem, circula a informação que milhares de presos serão liberados, causando extrema INSEGURANÇA para a população. Chegou-se a veicular que no Estado de Mato Grosso do Sul seriam liberados mais de 80 mil presos, informação, obviamente, equivocada e já desmentida publicamente por várias autoridades.
No Estado de São Paulo – o Estado que “mais prende” no Brasil! – veicula-se que podem ser colocados em liberdade 54 mil presos provisórios em razão da vigência da nova lei. Se a informação é verdadeira – e a vejamos pelo viés mais consentâneo e correto – O Estado de São Paulo mantém presas 54 mil pessoas que supostamente cometeram crimes punidos com pena máxima não superior a quatro anos, sem violência, sem condenação definitiva anterior, e devidamente identificados.
Será mesmo que a liberdade dessas pessoas é que vai gerar uma profunda sensação de insegurança? Façamos o raciocínio inverso: mantê-los presos, de forma irresponsável, ilegal e inconstitucional, AUMENTARÁ a SEGURANÇA da sociedade? Por certo que NÃO, já que, como dito acima, qualquer pessoa nessas condições obtém a liberdade provisória rapidamente, ou pelo menos, deveria obtê-la, de acordo com o que prescreve a jurisprudência dos nossos tribunais.
Insegurança (jurídica) é justamente o que acontecia antes da mencionada lei. Tratamento desigual para pessoas em situação jurídica idêntica é INSEGURANÇA, a contrario sensu, uniformizar o tratamento é SEGURANÇA!
As mesmas pessoas que usam argumentos como impunidade e insegurança para atacar a adequação da legislação infraconstitucional à Constituição, costumam citar exemplos de outros países – o que fazem sem qualquer atenção à correção das informações – para desqualificar o Brasil, determinando que vivemos no “país da impunidade”.
Dizem por aí que devemos seguir o exemplo dos EUA, pois lá, sim, as pessoas são punidas. Impávidos, colossais, difundem “aos quatro ventos” que nos Estados Unidos tudo é diferente - e melhor! Lá, a população não convive com a insegurança gerada pela impunidade, como no Brasil. Pois bem. Recentemente, publicou-se, sem grande alarde da mídia, a informação que a Suprema Corte do EUA mandou soltar milhares de presos das superlotadas prisões da Califórnia sob o argumento de que não havia condições mínimas de se abrigarem os presos dignamente. Assim mesmo, sem outra justificava condizente com os reclamos dos punitivistas de plantão, pelo simples motivo – pasmem, para alguns a dignidade humana é um simples detalhe - de que as prisões não respeitam as condições mínimas para abrigar seres humanos !!
É esse o exemplo que devemos seguir? Afinal, nos EUA não reina a impunidade, como ocorre no Brasil. Não vimos exaltação pública da atitude da Suprema Corte dos EUA, ao contrário, a notícia foi muito pouco comentada. O exemplo citado serve para ilustrar a total fala de coerência dos sensacionalistas que discordam de todo e qualquer avanço da legislação criminal brasileira.
Não bastasse tudo isso, outro aspecto dos comentários à nova lei chama muito a atenção. Várias medidas cautelares foram criadas pela nova lei e, dentre elas, as já citadas proibições de manter contato com pessoa determinada ou de acesso e frequência a determinados lugares, bem como, o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga, proibição de ausentar-se da Comarca e monitoração eletrônica.
Evidentemente, tais medidas importam em controle e fiscalização pelo Estado. E é aí que surge o pior de todos os argumentos contrários à nova lei, que é justamente a impossibilidade de fiscalização do cumprimento das medidas cautelares pela falta de condições materiais para tanto. É muito pior, chega a ser surreal, ouvir tal argumento de agentes do Estado.
O Estado que não tem condições materiais para implementar o seu PODER PUNITIVO, evidentemente, perde a legitimidade para exercê-lo. Não fiquemos por aqui. A questão é mais séria. O Estado é detentor do poder de tributar e, mesmo que tal poder não seja ilimitado, sabemos que a carga tributária no Brasil está entre as mais elevadas do mundo. Assim, a simples justificativa de que o Estado não tem condições materiais, não convence.
Imaginemos o sujeito no caixa do supermercado afirmando que não vai pagar o valor dos impostos, apenas o valor do produto, sob a alegação de que não tem condições financeiras de pagar. Ou, ainda, na praça de pedágio o motorista exigindo a liberação da cancela independentemente de pagamento, já que não tem condições de pagar o pedágio, pois já paga imposto na compra do veículo, no combustível e IPVA. Tais justificativas seriam aceitas pelo Estado?
Na questão da lei em comento, especificamente, é de se observar alguns detalhes acerca das condições materiais do Estado para fiscalização das medidas cautelares.
O Poder Judiciário, entretanto, é dotado de uma série de garantias, todas tendentes a propiciar a sua independência e imparcialidade. A independência do Poder Judiciário é, sem dúvida, um dos pilares do Estado Democrático de Direito, tão almejado por todos. Não é crível viver, em pleno século XXI, sob a égide de um Judiciário atrelado a interesses particulares.
Entre as citadas garantias há o denominado autogoverno. Tal prescrição constitucional permite ao Poder Judiciário a elaboração de proposta e gestão das dotações orçamentárias, ou seja, concede autonomia administrativa e financeira. Destacam-se entre os poderes conferidos a organização de Secretarias e Serviços auxiliares e Juízos, elaboração de regimentos internos, propositura de criação de novas Varas Judiciárias e provimento dos cargos necessários à administração da justiça, dentre outras, que, por certo, fariam com que o exercício da atividade jurisdicional propiciasse, in casu, o aparelhamento adequado para a efetivação do exercício não arbitrário do poder punitivo, tal qual previsto pelo Texto Constitucional e a legislação que – repita-se – deve a ela se reportar, razão de ser da afirmação outrora feita, no sentido de que a Lei em comento é consentânea com a Constituição Federal.
Falar sobre a utilização dos recursos orçamentários pelo Poder Judiciário merece um capítulo próprio. Afinal, ainda não é possível afirmar que está totalmente vencida a batalha para extirpar o nepotismo dos Tribunais. Aqui, a menção serve somente para afastar argumentos absurdos de discussões (que deveriam ser) sérias.
Cabem, portanto, ao Poder Judiciário – via garantia de autogoverno – as providências necessárias ao fiel cumprimento da lei, somente assim haverá legitimidade no exercício do poder de punitivo Estatal. Não há mais lugar para a famigerada desculpa “o Estado não tem condições”, que necessita ser substituída pela afirmativa “o Estado está cumprindo a lei, e todas as medidas cautelares estão efetivamente em vigor e adequadamente fiscalizadas”. É isso que nos deve o Poder Judiciário na vigência do Estado Democrático de Direito!
Por fim, e apenas para que não pareça ser este mais um texto oportunista “às avessas”, cumpre observar que punir criminosos é um DEVER do Estado, muito mais que um DIREITO. A punição, entretanto, deve ser conseqüência da condenação definitiva, fruto de respeito ao devido processo legal. Assim, como segurança da população deve decorrer da certeza de que o Estado, por intermédio do Poder Judiciário, trata a todos com isonomia, sem pesos e medidas diversos. Parafraseando Nietzsche, em Assim Falava Zaratustra: “Eis aqui, todavia, o conselho que vos dou, meus amigos: desconfiai de todos os que sentem poderosamente o instinto de castigar!”
Mestre em Direito (Tutela Jurisdicional no Estado Democrático de Direito) pela UNITOLEDO/SP; Professor da UFMS - Campus de Três Lagoas. Site pessoal: http://www.tellesotaviano.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OTAVIANO, Luiz Renato Telles. O Estado deve cumprir suas obrigações! Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jul 2011, 01:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/978/o-estado-deve-cumprir-suas-obrigacoes. Acesso em: 25 nov 2024.
Por: Ives Gandra da Silva Martins
Por: Joao vitor rossi
Por: Ives Gandra da Silva Martins
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Precisa estar logado para fazer comentários.