1. RESUMO
Este artigo tem como objetivo, através de uma sucinta análise da Lei Complementar n.º 135 de 04/06/2010 (“Lei da Ficha Limpa”), demonstrar a relevância do aspecto substancial da norma no momento de sua aplicação, visando a atender sua real finalidade em prol do bem comum, com base nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Palavras-chave: DEMOCRACIA LEGALISTA – DEMOCRACIA SUBSTANCIAL– PONDERAÇÃO – MORALIDADE ADMINISTRATIVA
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O SURGIMENTO E AS CARACTERÍSTICAS DA LEI
A Lei Complementar n.º 135 de 04/06/2010 é originada de um projeto de lei de iniciativa popular, cujo objetivo, dentre outros, é o de estabelecer “hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.” Em outras palavras, a aplicação da referida Lei deve impedir que os políticos condenados na Justiça, pelos crimes elencados no artigo 2º, alínea “e”, possam concorrer às eleições.
O Projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 5 de maio de 2010, bem como no Senado Federal, no dia 19 de maio do mesmo ano, por votação unânime. Foi sancionado pelo Presidente da República, transformando-se na citada Lei Complementar.
2.2. O ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
No dia 23 de março de 2011, a validade da lei para as eleições de 2010 foi derrubada por 6 votos a 5 no Supremo Tribunal Federal. A maioria dos ministros decidiu que, ao estabelecer novos critérios de inelegibilidades, a lei interferiu claramente no processo eleitoral e, assim, feriu o artigo 16 da Constituição Federal, que diz: “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.
A decisão da não aplicação da lei beneficiou diretamente vários candidatos, cuja elegibilidade havia sido barrada em decorrência da tramitação de processos na Justiça. A Lei da Ficha Limpa passa a valer apenas a partir das eleições municipais de 2012, e será de fato aplicada apenas se passar em uma nova votação para decidir sobre sua constitucionalidade.
2.3. A INICIATIVA DA ELABORAÇÃO DAS LEIS
A iniciativa de elaboração de uma lei é o ato que desencadeia o procedimento ordinário legislativo propondo a adoção de um direito novo. Tal ato constitui uma declaração de vontade que deve ser formulada por escrito e articulada, manifestada pelo depósito do instrumento do projeto em mãos da autoridade competente.[1]
Em face da Constituição Federal de 1988, importa distinguir, quanto ao poder de iniciativa, o que é geral do que é reservado.
O caput do art. 61 da Carta Magna, aponta a iniciativa geral e concorrente como sendo do Presidente da República, Deputados e Senadores, Comissões de qualquer das Casas do Congresso, Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores, Procurador-Geral da República e cidadãos.
O § 1º do referido artigo, por sua vez, reserva ao Presidente da República a iniciativa de determinadas leis ali descritas. Isto porque o aspecto fundamental da iniciativa reservada é o de resguardar ao seu titular a decisão de propor direito nove em matérias confiadas a sua especial atenção (ao contrário da iniciativa vinculada que é imposta pela Constituição sem caráter facultativo).
A iniciativa de leis em tema federal conferida aos cidadãos (iniciativa popular), está condicionada aos seguintes requisitos:
1. Primeiramente há um requisito numérico, na medida em que o projeto de lei deve ser subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional; e
2. Requisito Espacial: tal porcentagem deve estar distribuída em, pelo menos, cinco Estados; com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
Atendendo ao rigor de tais requisitos é que surgiu a “Lei da Ficha Limpa”, oriunda da iniciativa popular representativa da democracia direta.
2.4. OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O artigo 37, caput da Constituição Federal, abriga os princípios básicos da administração pública, os quais se consubstanciam em regras de observância permanente e obrigatória para o bom administrador. São eles: princípio da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência (dentre outros não expressos, mas decorrentes do nosso regime político).
Resumidamente, o princípio da legalidade constitui a base de qualquer Estado Democrático de Direito, no qual os conflitos existentes são solucionados por meio de lei. Diz-se que o administrador, ao atuar, aplica a lei de ofício.
O princípio da publicidade consiste na divulgação oficial do ato administrativo para conhecimento público e início de seus efeitos externos
O princípio da impessoalidade, por sua vez, determina a obrigação do Poder Público de manter uma posição de neutralidade em relação aos seus administrados, sendo vedadas as discriminações gratuitas (sem um fundamento razoável), admitindo-se somente àquelas que tem como intuito a preservação do interesse público.
O princípio da eficiência exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional.
Finalmente, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a abrigar, expressamente, o princípio da moralidade no caput do artigo 37, levando-nos a concluir que um ato imoral é um ato inconstitucional, cabendo ao Poder Judiciário atuar no sentido de sua repressão através da Lei n.º 8429/92 (lei da Improbidade Administrativa).
Nas palavras do ilustre professor Hely Lopes Meirelles: “ (...) o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o bem do mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta.”[2]
Assim sendo, são por esses padrões que deverão se pautar todos os atos e atividades administrativas de todo aquele que exerce o poder público, constituindo-se, por assim dizer, os sustentáculos da atividade pública.
2.5. ASPECTOS RELEVANTES DO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO
O chamado “Constitucionalismo” teve seu marco inicial durante as revoluções liberais (francesa e norte-americana), as quais pregavam a ideia da existência de uma Constituição escrita e rígida.
Após a II Guerra Mundial, na qual se vivia o chamado “Positivismo” (que se traduzia na existência de Constituições de caráter meramente político e não jurídico-vinculante, legitimando, assim, o estabelecimento das ditaduras), surgiu o Neo-Constitucionalismo como nova roupagem do Direito Constitucional.
Neste passo, com o surgimento de um Estado Constitucional Democrático, a Constituição Federal também vincula o legislador, na medida em que nem toda norma existente é sempre e plenamente válida. Isso porque, vivemos uma evolução de uma democracia formal/legalista para uma democracia material/substancial, a qual se baseia, dentre outros pontos, na maior valorização de princípios do que de regras, ou seja, pratica-se mais a ponderação do que a mera subsunção entre a norma e o fato concreto, com base no princípio da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.
Neste passo, dentro de tal contexto de evolução é que deveria ter sido analisada a aplicação imediata ou não da “Lei da Ficha Limpa”, vale dizer, em que pese a existência da norma em seu aspecto formal, determinando a não aplicação imediata da lei, tal legalidade não prescinde de uma análise substancial da mesma, de sua finalidade.
3. CONCLUSÃO
A vontade popular que, legitimamente originou a Lei Complementar n.º 135 (“Lei da Ficha Limpa”), representa a busca incessante do respeito aos princípios que regem a administração pública, especialmente no que se refere ao princípio da moralidade, da tentativa de resgate dos padrões nos quais devem se pautar todos os atos e atividades administrativas de todo aquele que exerce o poder público,e, por fim, da distinção entre o bem e o mal, do honesto do desonesto.
Como já afirmado, em que pese o aspecto legal/formal das normas, as mesmas não são desprovidas de “substância”, cabendo ao operador do direito e mesmo ao legislador, a análise de suas entrelinhas, da teleologia da norma.
No que se refere à aplicação da lei em questão, uma análise formal do artigo 16 da Constituição Federal, deixa clara a vedação de sua aplicação imediata, na medida em que, alterando o processo eleitoral, só pode entrar em vigor na data de sua publicação, não devendo ser aplicada à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.
Com efeito, como a publicação da nova lei ocorreu em período anterior a um ano das eleições de outubro, ficou a dúvida quanto à aplicabilidade de seus comandos já para as eleições de 2010, restando por fim, o entendimento no sentido de que o referido comando legal passaria a valer apenas a partir das eleições municipais de 2012, e será de fato aplicada apenas se passar em uma nova votação para decidir sobre sua constitucionalidade.
Por outro lado, o propósito da lei ao impedir que os políticos condenados na Justiça possam concorrer às eleições, homenageia o princípio basilar da razoabilidade, o qual determina a adequação entre meio e fim, vale dizer, é vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas necessárias ao atendimento do interesse público. Ora, não parece nem um pouco excessiva a imposição de inelegibilidade ao político condenado na Justiça por atos criminosos, sobretudo no que diz respeito à improbidade administrativa, uma vez que tal fato acaba por demonstrar um total desprezo do elemento ético no exercício do mandato.
Esta é uma análise fundada na ponderação do caso concreto diante da norma escrita/formal, não se aplicando simplesmente a subsunção imediata, mas sim a valorização do aspecto substancial dessa norma.
Tal posicionamento no sentido de que a Lei será aplicada nas eleições de 2012, retrata a face de uma democracia puramente formal e legalista que suprime completamente a finalidade da norma, a sua substância mais preciosa, que é o resguardo da probidade e da moralidade administrativas no exercício do mandato, como se ética e moralidade (conceitos atemporais), tivessem momento certo para serem exigidas.
Curiosamente, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, defendeu a “Lei da Ficha Limpa” como sendo “a lei do futuro”, resultado de uma aspiração legítima da nação brasileira. “A tentação da sua aplicação imediata é muito grande, até para quem vota contra, mas deve ser resistida, sob pena de comprometimento de valores mais elevados”, afirmou.
Respeitados os entendimentos diversos, diante de todo o exposto, resta saber a que valores Sua Excelência se refere, os quais possam ser mais valorosos do que a probidade e a moralidade na condução da res publica.
[1] FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, pág.186
Advogada, inscrita na OAB/SP. Pós -graduação Lato Sensu com titulo de Aperfeiçoamento em Direito Público e Privado, pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Graduada pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SUTHERLAND, Virginia de Sylos. A Lei Complementar n.º 135 DE 04/06/2010 ("Lei da Ficha Limpa") e os princípios da Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2011, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24672/a-lei-complementar-n-o-135-de-04-06-2010-quot-lei-da-ficha-limpa-quot-e-os-principios-da-administracao-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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