RESUMO: Este artigo teve o objetivo de demonstrar a existência de um fenômeno jurídico conhecido pela alcunha de mutação constitucional, a qual consiste em uma nova interpretação das normas constitucionais consoante à realidade observada em determinado lugar durante um dado período de tempo. Ao mesmo tempo, pode-se verificar o quão se mostra intenso este processo de modificação das normas constitucionais na contemporaneidade, com base na ocorrência relativa à questão da fidelidade partidária no Brasil, de modo a tornar a Constituição um texto passível de ser modificado em virtude das transformações pelas quais a sociedade tem passado, sem que os seus dispositivos sejam formalmente alterados por autoridades competentes para tanto.
PALAVRAS-CHAVE: Mutação. Interpretação. Constituição. Realidade.
INTRODUÇÃO
O processo de elaboração de uma Constituição não finda no momento em que ela é promulgada pelo poder constituinte. Tal procedimento prossegue, após iniciado o marco jurídico decorrente do novo documento constitucional, a partir da verificação de dois mecanismos de modificação do texto normativo: formais, os quais estão previstos e regulados na própria Constituição, e informais, em que se constata a alteração da norma no concernente à mudança de sentido da mesma, sem haver transformações em sua estrutura. Especialmente neste último, verificar-se-á a presença da mutação constitucional, o que pode ser verificado mediante a opinião de Jellinek (1991, p. 7), na qual o mesmo distinguirá os procedimentos de alteração de uma Constituição específica:
Por reforma da Constituição, entendo a modificação dos textos constitucionais produzida por ações voluntárias e intencionadas. E por mutação da Constituição, entendo a modificação que deixa incólume seu texto sem mudá-lo formalmente, o que se faz por meios que não tem que ir acompanhados pela intenção, ou consciência, de tal mutação.[1] (tradução livre).
Esta espécie de mudança da Constituição ocorrerá devido ao fato de a sociedade perceber, ininterruptamente, no decorrer dos anos, transformações as quais a envolvem diretamente e consistirá em uma autêntica atualização do texto constitucional a fim de integrá-lo adequadamente no contexto em que os indivíduos estão inseridos, o que demonstra uma crescente preocupação dos profissionais do Direito, especialmente os juristas, em estabelecer uma releitura constante das normas à luz das realidades verificadas em questão e aplicá-las em conformidade com esta.
Deste modo, a rápida explanação estabelecida no presente trabalho acerca do aspecto mutação constitucional servirá para demonstrar o fato de a norma constitucional se constituir em uma simples interpretação do texto normativo em ajuste com a realidade na qual ele está circunscrito. A partir deste pressuposto, permite-se inferir a seguinte constatação: o resultado do encontro entre a apreciação do texto normativo e as informações obtidas a partir de situações ocorridas no cotidiano social consiste em uma norma a qual possa funcionar como solucionador do problema concreto apresentado ao profissional do Direito.
Ao se ter em vista o fato de o referido fenômeno jurídico estar intensamente presente na vida dos Estados, descrever-se-á um caso concreto no qual pode ser verificada a alteração da semântica da norma constitucional sem haver modificação na estrutura de sua redação ao longo dos anos. A situação a ser demonstrada no presente trabalho será a evolução do tratamento concedido pela Constituição Brasileira de 1988 a fidelidade partidária no decorrer dos anos, no qual se estabeleceu uma interpretação inicial de o exercício de cargos eletivos não exigir a obrigatoriedade de filiação partidária para, posteriormente, modificar o tratamento relativo ao aspecto referido de modo a proclamar a obrigatoriedade da permanência em um determinado partido para qualquer indivíduo ocupante de encargo público eletivo durante o mandato deste.
Tal situação servirá para demonstrar que, em um período de tempo considerado pequeno no âmbito de um documento imprescindível a permanência de qualquer Estado Nação como o é a Constituição, um tratamento relativo a determinado aspecto modificou-se de maneira bastante significativa.
1 A FIDELIDADE PARTIDÁRIA NO BRASIL E A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
1.1 FIDELIDADE PARTIDÁRIA NO BRASIL
O artigo 14, parágrafo 3º, inciso V da Constituição Federal de 1988 (CF/88), dispõe que qualquer cidadão, ao disputar qualquer cargo eletivo, deverá possuir filiação partidária para ser considerado elegível, haja vista o fato do candidato a um específico cargo eletivo estar vinculado a uma ideologia específica e ser adepto de idéias e propostas as quais possam contribuir para uma melhoria na sociedade e que são pertencentes a determinado partido político, razão pela qual a pessoa se filiaria ao mesmo no intuito de participar do processo eleitoral e, caso eleito, implantar as idéias comungadas com o partido no exercício do poder.
Contudo, verifica-se na contemporaneidade uma espécie de enfraquecimento paulatino da instituição Partido Político no Brasil, em razão do fato de atualmente haver uma abundância destes institutos, muitos dos quais não possuem programas partidários sérios e consistentes que possibilitem a cooptação de eleitores para seus quadros e terminam por serem denominados pela alcunha de “legendas de aluguel”, uma vez que a existência destas servirá apenas para angariar recursos advindos do Poder Público – o Fundo Partidário – e deter um espaço na propaganda eleitoral gratuita de rádio e televisão.
Além do fato elencado anteriormente, a CF/88, se analisada estritamente por um viés formal, possibilitou aos ocupantes de cargos eletivos deixarem os partidos pelos quais foram eleitos logo após a posse de modo a migrarem para outro partido ou a não serem obrigados a possuírem uma filiação partidária. Quanto a isso, Costa (2009, p. 95) alude que “[...] [os candidatos] elegem-se por um partido político; conquanto possam exercer mandato sem legenda e sem compromisso com programas partidários”.
Deste modo, os políticos possuidores de cargos eletivos, de acordo com a leitura estrita do texto constitucional vigente, não são passíveis de perda do mandato ou de cassação dos direitos políticos por motivo de não obediência irrestrita ao partido em virtude, principalmente, da inexistência de referência a fidelidade partidária durante o mandato no artigo 14, parágrafo 3º da CF/88. A partir deste raciocínio, o Supremo Tribunal Federal (STF) compreendeu, em um instante inicial, o fato de qualquer mandato obtido por sufrágio universal pertencer ao indivíduo e não a instituição partidária ao qual está integrado, ao se ter em vista as deliberações favoráveis a interpretação literal do texto constitucional pronunciadas nos MS 20.916 e 20.927.
Tal situação decorre principalmente do fato de o sistema eleitoral brasileiro estar voltado, durante muitos anos, para a valorização do individualismo – o candidato – em detrimento do coletivo – o partido político –, visto que a eleição é percebida como um instrumento de ganho pessoal em que o indivíduo veja o suporte dado por um determinado partido como uma espécie de trampolim para a conquista do poder. Além disso, a troca de legenda é vista pelo parlamentar ou governante como uma maneira de obter sucesso na profissão política e garantir, assim, a sobrevivência individual, o que pode ser verificado mediante a leitura de Melo (1999 apud MACIEL, 2004, p. 12):
[...] os deputados migram em busca de melhores alternativas para maximizar as chances de sucesso na carreira política. Ao escolher entre permanecer no partido e se afastar dele, o deputado é movido [...] pela necessidade de sobrevivência de uma carreira política cujo futuro lhe parece incerto, assim como é certo que a mudança de partido não lhe trará grandes custos.
Como se pôde perceber, a política transformou-se, de um espaço de discussão entre idéias divergentes com o intuito de melhorar o coletivo, para ser uma atividade corriqueira, tal como diversas existentes no cotidiano, em que os indivíduos são motivados pela ambição, pautada em sentimentos individualistas e egoístas do ser humano, de conseguir algo considerado relevante no âmbito social em seu proveito. Por conseguinte, haverá, consoante Mendes (2008, p. 2), “o aparelhamento das estruturas estatais para fins político-partidários e a apropriação de recursos públicos para o financiamento de partidos políticos”, processos os quais terminarão por proporcionar um colapso no sistema político-partidário brasileiro a partir do esgotamento do sistema eleitoral proporcional.
Neste sentido, o atual estágio do sistema político brasileiro ocasiona uma perda de identificação dos representantes perante os seus representados a partir da seguinte constatação: a corriqueira troca de partidos efetuada pelo retentor de cargo eletivo dificultará o julgamento de seu desempenho pelo eleitor, haja vista a existência de uma diversidade de partidos políticos no Brasil, alguns dos quais não dispõem de um definido programa ideológico, fato que contribuirá decisivamente para uma completa permutação das bancadas parlamentares no início e no final dos mandatos. No concernente ao referido aspecto, Melo (1999 apud MACIEL, 2004, p. 13) afirma o seguinte:
[...] se, em democracias menos peculiares do que a nossa, é possível ao cidadão atento julgar o desempenho de um deputado observando a postura de seu partido, no Brasil esta possibilidade é dificultada pelas freqüentes trocas de legenda.
Com efeito, a falta de comprometimento dos políticos para com as instituições partidárias nas quais estão filiadas, evidente nos últimos anos com o intenso câmbio partidário, terminará, assim, por demonstrar uma incoerência de tal classe, a qual, salvo raras exceções, decide-se filiar as mais diversas legendas com o escopo, sobretudo, de permanecer sistematicamente no exercício do poder, usando, assim, as diretrizes ideológicas como um mero trampolim. Tal situação terminará por aumentar a descrédito do sistema político brasileiro presente na contemporaneidade perante a sociedade civil e prejudicar o próprio movimento democrático no Brasil, ao se ter em vista que a infidelidade partidária esvaziará os partidos daqueles os quais deveriam propalar os seus ideais perante a sociedade.
1.2 MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
O fenômeno jurídico denominado “mutação constitucional” consiste, segundo definição de Dau-Lin (1998 apud PEDRA, 2005, p. 153), em uma “separação entre o preceito constitucional e a realidade, sendo esta última mais ampla que a normatividade constitucional”. Em outras palavras, a mutação consistiria em uma interferência de determinado contexto social, político e econômico na atividade interpretativa de uma norma constitucional específica no sentido de alterar o sentido dessa diante da conjuntura na qual ela está inserida.
Tal fenômeno ocorre devido à atuação do poder constituinte difuso, um poder considerado de fato o qual não está expressamente previsto no documento constitucional e surgirá em decorrência do fato de a Constituição ter sua existência vinculada obrigatoriamente à imediata aplicação na realidade do Estado em que vigorar, de modo ao referido documento estar sempre em consonância com a permanente evolução social ocorrida na sociedade.
Além disso, tal poder praticamente não encontrará restrições em sua atuação pelo fato de ser o produto da ação de forças elementares as quais mudam diante dos desdobramentos provenientes de uma constante modificação de dado fato social, explicação a qual auxilia na compreensão do argumento enunciado por Bulos (2008, p. 324), consistido no fato de o documento constitucional ser um organismo vivo o qual acompanha as exigências e situações específicas da sociedade em um determinado período. Segundo o referido autor, a única limitação a ação do intérprete estaria no âmbito psicológico de sua consciência, ao não extrapolar de maneira desfiguradora os princípios fundamentais os quais regem determinada Constituição a fim de preservar a própria essência do texto constitucional. Diante disso, Bulos (1997 apud PEDRA, 2005, p. 157) alude o seguinte:
As mudanças informais da Constituição não encontram limites em seu exercício. A única limitação que poderia existir – mas de natureza subjetiva, e, até mesmo, psicológica – seria a consciência do intérprete de não extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado, através de interpretações deformadoras dos princípios fundamentais que embasam o Documento Maior. Assim, evitar-se-iam as mutações inconstitucionais, e o limite, nesse caso, estaria por conta da ponderação do interprete, ao empreender o processo interpretativo que, sem violar os mecanismos de controle da constitucionalidade, adequaria a Lei Máxima à realidade social cambiante.
Neste aspecto, a mutação constitucional poderia ocorrer, consoante Pedra (2005, p.159-185), de três formas distintas: variação da norma contra a Constituição; por costume ou por interpretação. Enquanto a primeira espécie de modificação informal do texto constitucional acontece na situação verificada de o resultado da alteração do sentido de um dispositivo específico estar em contraponto com o texto constitucional e tender, assim, a violá-lo, e a segunda categoria ocorre quando o costume objetiva o suprimento de uma lacuna jurídica deixada pelo legislador constituinte ao elaborar determinado dispositivo, a terceira maneira de mudar um texto constitucional sem alterar a letra deste consiste no estabelecimento de uma atividade interpretativa, a qual fará com que o dispositivo cuja semântica foi reformada esteja plenamente adaptado as demandas da coletividade em que está inserido.
Entretanto, estabelecer-se-á um questionamento pautado no modo como a atividade interpretativa da norma seria realizada. Tal abordagem será respondida por Müller (2007), cuja pretensão consistirá em suceder o termo “interpretação” pelo vocábulo “concretização”, uma vez que este demonstra ser mais apropriado à circunstância da produção de uma norma jurídica com o escopo de solucionar, com total eficácia, um específico conflito social mediante a sua teoria estruturante do Direito, tese na qual o referido autor almeja inovar a concepção tradicional e existente de norma jurídica – herdada do positivismo formal e entendida por Kelsen (2009, p. 4-10) como a significação possuída por um ato de vontade destinada ao comportamento de ordem que detém um sentido pessoal arrogado por quem o realiza e determinante do fato de uma específica conduta ser considerada, no âmbito das relações sociais, obrigatória, proibida ou permitida – a partir do estabelecimento de uma relação mais intrínseca entre os campos do Direito e da realidade com a finalidade de possibilitar uma máxima harmonia na sociedade. No concernente a isso, Müller (1977 apud BONAVIDES, 2011, p. 499) permite entender que:
A concretização possui assim um raio de abrangência muito mais largo e a perspectiva “metódica”, na linguagem do autor, abraça todos os meios de trabalho mediante os quais se chega a concretizar a norma e a realizar o direito.
Diante deste cenário, a teoria de Müller (2007) romperá com a relação conflituosa existente entre a preservação da constituição formal e a mutação constitucional mediante o fato de a interpretação constitucional proporcionar uma modernização do dispositivo constitucional e possibilitar que ele possua vida de modo a ter o seu sentido modificado constantemente. Com isso, não se verificará uma identificação entre a redação da regra constitucional e a norma concreta, visto que o simples texto normativo é imutável no decorrer dos anos ao passo que a segunda poderá sofrer alterações sucessivamente em virtude do fato de ser densamente pautada no contexto em que está inserida enquanto o simples texto normativo.
A partir da referida concepção, três elementos constituirão a tese defendida por Müller (2007 apud PEDRA, 2011, p. 22): “programa normativo; âmbito normativo; e norma de decisão”, os quais se diferenciarão pelo fato de o primeiro consistir no fato de ser a expressão literal presente em um dado dispositivo inserido no texto constitucional, enquanto o segundo, por sua vez, se referirá à realidade circundante no qual o dispositivo está inserido. Ainda que as expressões sejam distintas quanto ao conceito pertencente a cada um, ambas estabelecerão uma conexão da qual finalmente resultará a norma de decisão, a qual possuirá o escopo de solucionar um determinado problema existente na realidade, dentro dos limites estabelecidos juridicamente. Tal ligação pode ser denominada concretização, visto que objetiva tornar a norma apta para a efetiva atuação da Constituição em um determinado momento.
Logo, questionar-se-á o modo como a interpretação das normas integrantes de uma Constituição será realizada. Segundo Ferraz (1986, p. 55), a atividade interpretativa de um dispositivo constitucional poderá ocorrer por duas frentes distintas: não-orgânica e orgânica, as quais se diferenciarão pela seguinte constatação: a primeira é uma interpretação realizada com o escopo de encontrar uma determinada acepção do texto constitucional sem quaisquer compromissos com a realidade, o que pode ser verificado a partir da opinião expressa pela doutrina jurídica acerca de um determinado ponto da Ciência do Direito, enquanto a segunda consiste em uma hermenêutica efetuada com o intuito de atender uma situação específica, demonstrada, por exemplo, mediante o desenvolvimento normativo dos preceitos constitucionais e a deliberação judicial, a qual empregará o texto constitucional de modo que este possua eficácia na realidade.
Esta última frente interpretativa, por sua vez, dividir-se-á em três categorias de interpretação constitucional: legislativa; administrativa e judicial. Enquanto a primeira é atribuída ao Poder Legislativo e efetuada mediante as normas cujas eficácias sejam contidas ou limitadas, e a segunda é conferida ao Poder Executivo e aos organismos dotados de natureza administrativa e realizada por atos, resoluções ou disposições as quais não intencionem a elaboração de leis, a terceira e última das categorias anteriormente mencionadas é considerada a modalidade de maior importância consoante Bulos (1997 apud PEDRA, 2005, p. 170) ao se ter em vista, além de ser uma atividade desempenhada pelo Poder Judiciário e executada por determinações as quais aplicarão a Constituição, o fato dela ser obrigatória, primária e definitiva e das decisões desta repercutirem de maneira significativa na realidade. Esta constatação contribuirá decisivamente para que a interpretação constitucional judicial se sobressaia em relação às demais formas de exercício da atividade interpretativa.
Diante desta rápida explicação acerca do fenômeno denominado mutação constitucional, poder-se-á notar a imprescindibilidade deste para a vida dos Estados em virtude do fato de utilizar, muitas vezes, da realidade de fato para possibilitar a interpretação das normas constitucionais em acordo com as circunstâncias da realidade de modo a proporcionar maiores eficácia na coletividade e legitimidade, sem desrespeitar os limites estabelecidos pelo Direito, de maneira a preservar, deste modo, a supremacia da Constituição como o ápice do ordenamento jurídico de qualquer Estado.
2 A RELAÇÃO ENTRE FIDELIDADE PARTIDÁRIA E MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL A PARTIR DO CASO CONCRETO
A verificação na sociedade civil de um cenário no qual havia uma forte descrença na política, decorrente, dentre outros fatores, das sucessivas mudanças partidárias realizadas pelos políticos, fez com que um partido político – o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas – consultasse, no ano de 2007, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a possibilidade de o partido ou coligação pelo qual um determinado candidato se elegeu ter o direito de preservar a vaga conquistada mediante o voto e requerer, caso o referido se desligue de um partido para ingressar em outro, o seu mandato. O tribunal, diante da consulta realizada, entendeu o objeto do questionamento de forma positiva e editou, em março do mesmo ano, uma resolução – a Resolução nº 22.526 – em que determina a perda do mandato do indivíduo eleito para os cargos considerados proporcionais (Vereador, Deputado Estadual e Deputado Federal) em duas situações: quando ele tiver a sua filiação partidária cancelada, ou quando ele sair do partido político no qual está filiado sem atender uma das hipóteses previstas em documento:
I) incorporação ou fusão de partido;
II) criação de novo partido;
III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;
IV) grave discriminação pessoal.
Tal decisão promoveu muitas discussões e vários grupos entraram com recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a atitude do TSE a partir do argumento de que a Constituição Federal, conforme o seu artigo 55, não compreende expressamente a infidelidade partidária como condição necessária para a perda do mandato. A instância máxima do Judiciário brasileiro, por sua vez, decidiu, sob fortepressão da sociedade civil e de grupos políticos influentes, confirmar a decisão do TSE, mediante as deliberações a ela favoráveis pronunciadas nos MS 26.602, 26.603 e 26.604, e aplicá-la tal qual uma norma.
Para justificar de forma plausível a obrigação de fidelidade do parlamentar para com a corporação partidária da qual é integrante, mesmo esta não originalmente prevista na CF/88, segundo Bulos (2008, p. 713), faz-se necessário elencar o fato de o texto constitucional prever a obrigação de lealdade, a qual está inserta dentro do princípio da democracia representativa existente em seu artigo 1º, parágrafo único, cuja redação dispõe o seguinte: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Deste modo, o parlamentar eleito possui a obrigação de respeitar a instituição partidária pela qual obteve o mandato eletivo e, por conseguinte, permanecer na mesma até o fim do período em que foi delegado pelo eleitorado para exercer o que fora conquistado por sufrágio universal, sob pena de perder o mandato em caso de não observância desse requisito.
Com base na perspectiva referida anteriormente, o STF decidiu ampliar os efeitos da decisão anterior para os cargos majoritários (Presidente da República, Governador de Estado, Senador da República e Prefeito) a partir de uma consulta ao TSE realizada por um deputado federal – Nilson Mourão, do Partido dos Trabalhadores (PT) do Acre – e posterior edição de outra Resolução pela mesma instituição judiciária – a Resolução nº 22.600. Esta decisão, por sua vez, proporcionou uma polêmica ainda maior, visto que o sistema majoritário destaca-se por relevar mais a figura do candidato do que a do partido, haja vista o direito fundamental da soberania popular e foi justificada com fundamento legal em normas constitucionais, tais como aquelas referentes ao direito de associação (artigo 5º, incisos XVI a XXI da CF/88), à cidadania, ao pluralismo político, à representação popular e à soberania da manifestação do voto.
Neste aspecto, as duas decisões do STF tiveram o escopo de coibir a crescente permutação partidária realizada pelos políticos, ao disporem o aspecto da preservação de vaga pelo partido político ou coligação quando o candidato eleito tiver sua filiação partidária cancelada ou se transferir do partido pelo qual se elegeu para outra legenda, e possuíram uma eficácia grande desde o momento em que tiveram força normativa, de tal forma que o número de transferências partidárias diminuiu drasticamente desde 2007 e as instituições judiciárias passaram a punir com uma maior freqüência aqueles os quais se desfiliam de determinada legenda sem haver qualquer motivo legítimo para tal ato.
Após estabelecer uma rápida explanação acerca do tratamento concedido à fidelidade partidária pelo STF antes e depois da ocorrência de uma mutação constitucional, destacar-se-á o exemplo mais emblemático acontecido no Brasil desde a mudança na interpretação do artigo 14, parágrafo 3º, inciso V da Constituição do referido país: a cassação do mandato do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, em março de 2010, cujo contexto o qual proporcionou o referido fato será aqui descrito de forma simplificada:
Em fins de novembro de 2009, a Polícia Federal realizou uma operação denominada Caixa de Pandora a qual descobriu o envolvimento de Arruda em um amplo esquema de corrupção no qual havia o fornecimento, por parte de empresas as quais possuíam contratos com o Governo do Distrito Federal, de propina a vários políticos influentes de Brasília, entre eles o próprio governador, e a existência de uma espécie de caixa dois – recursos financeiros obscuros e não contabilizados aos órgãos de fiscalização – a qual financiava a campanha de Arruda ao governo estadual no ano de 2006.
Em função da participação de José Roberto Arruda no esquema como um de seus beneficiários e dos pedidos de impeachment advindos de vários setores da sociedade civil e decorrentes da comprovação desta mediante as investigações posteriores, o partido do qual o governador fazia parte, o Democratas (DEM), ameaçou expulsá-lo de seus quadros devido à conduta antiética de seu filiado, a qual era incompatível com a postura demonstrada pelo partido ao público em combater implacavelmente a corrupção.
Diante de uma situação na qual a permanência no cargo de governador era insustentável em virtude do grave incidente ocorrido em sua imagem, Arruda decidiu se desfiliar do partido o qual integrava – DEM – sob a alegação de estar sofrendo grave discriminação pessoal por meio da descoberta das denúncias existentes contra ele e procurar poupar a própria imagem e a do partido do qual era filiado, uma vez que esta instituição partidária opunha-se a um governo federal densamente marcado por denúncias de corrupção e, por tal razão, pregava a bandeira da ética e da moralidade na política brasileira. A partir deste argumento, considerado legítimo segundo o entendimento do STF para o indivíduo detentor de cargo eletivo poder reivindicar a sua saída de um determinado partido político sem correr o risco de ser cassado por infidelidade partidária, Arruda poderia deixar o DEM sem haver perigo de ele perder o mandato de governador do Distrito Federal.
Entretanto, o Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, ao analisar o caso em questão, considerou que Arruda tomou a decisão de se desfiliar do DEM única e exclusivamente por convicções pessoais, visto o fato de, segundo os juízes do TRE-DF, o referido cidadão não aguardar uma deliberação de seu partido quanto à situação em que ele estava inserido na qual se decidiria a expulsão ou não de Arruda do rol de filiados. Tendo isso em vista, o colegiado decidiu por cassar o mandato do governador por infidelidade partidária, como mostra a sentença da Petição 335-69, Acórdão 2885, proferida no dia 16 de março de 2010:
A inércia do Partido DEMOCRATAS, não reivindicando, na forma do artigo 1º da Resolução TSE nº 22.610/2007, a decretação da perda do cargo eletivo do requerido em nada inviabiliza a presente ação (precedente do TSE, na CTA 1.720, Resolução nº 23.148, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, 24/09/2009, unânime, Dje 107 de 16/10/2009, p. 28). Seria mesmo paradoxal que a Resolução outorgasse legitimidade ativa ao Ministério Público diante da omissão do partido e, logo depois, se considerasse essa mesma inércia como concordância com a desfiliação e, portanto, justa causa para ela. Seria inócuo conferir legitimidade subsequente a quem tenha interesse jurídico e ao Ministério Público. Abrir-se-ia a porta para conchavos políticos, acordos escusos, com a burla da vontade política emitida pelos eleitores no momento do voto.
Se o partido move contra o filiado processo de expulsão de cunho arbitrário, é evidente a grave discriminação pessoal, configuradora de justa causa para a desfiliação, de acordo com o inciso IV do § 1º da Resolução TSE nº 22.610/2007. Mas procedimento de expulsão calcado em motivos graves, intensamente repudiados pela coletividade, não autoriza o reconhecimento de justa causa para a desfiliação partidária.
Não se pode identificar a representação posta contra o requerido com um processo de expulsão de cunho arbitrário. Está a representação devidamente motivada em razões objetivas, explicitadas, circunstanciadas, em face de reprováveis atos e fatos, divulgados amplamente por todo o país, e no exterior, em mídias variadas, de gravidade ímpar e inquestionável, que provocaram justificada indignação geral. Fosse omisso o partido político, estaria severamente reprovado pela consciência coletiva nacional e alienígena.
O processamento da representação pelo partido político, o DEM, correspondeu não somente ao regular exercício de direito, como também ao indeclinável dever de zelar pelo cumprimento de princípios básicos que regem a democracia nacional, respeitando seu dever político para com a cidadania. Isso se distancia radicalmente do conceito de "grave discriminação pessoal", justa causa para a desfiliação partidária. O quadro não se altera diante dos fatos, incontroversos, de que era dada como certa a expulsão do requerido do Partido e de que ele requereu a desfiliação para evitar a provável expulsão. A opção do requerido por não aguardar a decisão partidária, esta quiçá politicamente inconveniente, lícita se mostra, porque ninguém é obrigado a permanecer filiado a partido algum, mas tem o preço da perda do direito ao exercício do mandato, pela quebra do dever de fidelidade partidária, que determina permaneça o eleito, mesmo após a eleição, vinculado ao partido a que se filiou e possibilitou sua candidatura.
A situação elencada neste estudo, caso fosse analisada sob um ponto de vista estritamente formal da Constituição, inocentaria o cidadão José Roberto Arruda do ato de infidelidade partidária, haja vista o fato de não haver, no Brasil, uma legislação ordinária a qual diga se é proibido ou permitido um político se transferir de partido para outro em meio a um exercício de mandato decorrente de cargo eletivo. Ao se ter tal constatação como fundamento, decorre uma sentença tradicional do Direito, a qual está expressa no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Contudo, a Carta Magna brasileira concedeu, no ano de 2010, um dado tratamento à fidelidade partidária diferente do concedido no momento de sua promulgação (1988), no qual o legislador constituinte disciplinou tal matéria com o escopo de concebê-la como princípio regulado no estatuto dos próprios partidos e permiti-la, ao se ter em vista que o Brasil recém voltava de um período ditatorial em que coexistiam dois partidos, um governista – a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – e outro oposicionista – o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) –, e, por essa razão, permitiu o livre estabelecimento de partidos políticos a fim de os políticos poderem encontrar um espaço partidário melhor no qual defendam suas idéias.
No momento em que julgava o caso em que o governador Arruda estava inserido, a Constituição entendia que a permuta partidária no Brasil era motivada na contemporaneidade não muito pela necessidade de o indivíduo se sentir melhor representado no concernente a defesa dos seus ideais, mas sim por uma manobra do mesmo com o intuito de preservar ao máximo os seus interesses e assegurar, desta forma, uma imagem de cidadão responsável perante o público de modo a ocultar os episódios de corrupção em que ele possa estar envolvido – no caso em abordagem, a participação em um esquema de fornecimento de propina a personagens importantes da política brasiliense. Como conseqüência dessa nova filiação partidária, ele buscaria estar sempre próximo das instâncias de poder a fim de continuar exercendo influência no campo político, ainda que ele possa estar sem filiação partidária.
Por esta linha de argumentação, a mutação constitucional ocorrida em relação ao tratamento dispensado a infidelidade partidária demonstra-se importante devido ao fato de a Constituição se caracterizar por ser um documento permanentemente aberto à interpretação do contexto com a finalidade de possibilitar o surgimento de uma nova norma jurídica a qual preserve sempre os valores essenciais da Constituição em todos os momentos em que ela estiver vigente e torne-os concretos a quaisquer indivíduos. No concernente a esse aspecto, Pedra (2011, p. 20) infere o seguinte:
A Constituição aberta é uma característica das sociedades complexas, porque, diante da multiplicidade dos problemas que podem surgir, a Constituição necessita de soluções para acompanhar este casuísmo problemático, e, por isso, o conteúdo dessas normas necessita ser objeto de concretização.
Ao se trazer isto para o caso concreto, verifica-se a importância das duas resoluções do TSE e ratificadas pelo STF a fim de disciplinar a fidelidade partidária, visto o fato de elas modificarem a interpretação da norma constitucional – no caso, o artigo 14, 3º, V – de maneira que abranjam situações reais inseridas ao longo dos anos e não as deixem sem uma resolução definida. Na situação especificada neste presente estudo, a solução para o fato de os indivíduos detentores de cargos eletivos se desligarem do partido político pelo qual foram eleitos em meio ao exercício do mandato consistiria na punição destes com a perda, pelo cidadão, do posto público obtido mediante o sufrágio universal.
Deste modo, o fato de não analisar o dispositivo constitucional à luz do contexto no qual é utilizado a partir de uma situação específica e, por conseguinte, não punir o político infiel ao seu partido com a perda do mandato por ele obtido representaria uma defasagem da Constituição Federal de 1988 perante a realidade a partir do fato de a omissão, no tocante à disciplina da fidelidade partidária, estimular sucessivas práticas de infidelidade dos políticos aos seus partidos e, por conseguinte, contribuir para uma evolução no processo de degeneração da política brasileira mediante a ausência de identidade entre seus representantes e representados, verificada a partir de uma constante descrença da sociedade civil em relação à instituição partidária em virtude do fato de a classe política estar mais engajada com a defesa de interesses próprios do que com os da maior parte da população brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação demonstrada neste trabalho evocará um processo de alteração do texto constitucional denominado mutação constitucional, o qual não é regulado por normas específicas previstas na própria Constituição, mas pela interpretação de uma determinada norma à luz de um contexto específico. No âmbito do atual constitucionalismo, este procedimento mostra-se bastante comum em virtude do caráter dinâmico da sociedade e terminará por produzir, do encontro entre os componentes lingüístico e empírico do texto normativo, uma norma jurídica voltada exclusivamente para resolver o caso concreto.
Além disso, a mutação constitucional demonstra ser importante ao se ter em vista o fato desta em alterar o alcance de uma norma em conformidade com as circunstâncias sociais, políticas e econômicas de cada período e de forma a concretizar constantemente o Direito de forma equitativa para todos os indivíduos.
Ao se trazer tais idéias para o caso concreto em abordagem, pode-se verificar que o governador José Roberto Arruda, ao se desfiliar do partido político no qual estava filiado, buscou utilizar um motivo previsto pela resolução do tribunal eleitoral como justificativa legítima (justa causa) para o seu ato de modo a não perder o mandato obtido por ele mediante o sufrágio universal.
No entanto, a referida instituição judiciária compreendeu a situação e concluiu que a simples desfiliação partidária não é condição imprescindível para o indivíduo, enquanto detentor de um cargo eletivo, tomar parte em atos os quais esquivem integralmente aos interesses do bem público, tais como a participação em esquemas de corrupção nos quais se verifica o desvio de recursos financeiros destinados, em tese, a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos com fins de atendimento a interesses próprios. Deste modo, a decisão de cassar o mandato do governador do Distrito Federal por ele não ser fiel ao seu partido passa pela mudança de interpretação ocorrida a partir da exigência da sociedade civil por uma maior moralidade na política.
Neste sentido, um ponto importante a ser destacado ao final de toda a análise realizada do caso concreto abordado neste trabalho é o maior ativismo do Supremo Tribunal Federal na contemporaneidade, o qual se aproveitará de uma relativa ineficácia do Poder Legislativo a fim de garantir a transformação dos anseios de uma sociedade civil que exigirá mudanças na política em normas as quais realizem as modificações mediante a simples interpretação do texto constitucional e a inserção deste no contexto em que o episódio acontece, sem, em momento algum, violar o princípio da separação de poderes.
Com efeito, entende-se que a mutação constitucional deterá o objetivo claro de estabelecer uma permanente evolução da Constituição de maneira que ela detenha não apenas aspectos formais, consistidos em ser o ápice do ordenamento jurídico brasileiro, mas também materiais, tais como possibilitar uma sociedade justa a todos e concretizar os direitos fundamentais em consonância com a realidade.
REFERÊNCIAS
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[1]Para conferir credibilidade, segue o texto original: JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de La Constitución: Trad: Christian Förster. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 1991, p. 7.
Graduando do curso de direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Frederico de Bortoli. A mutação constitucional e seus efeitos na realidade atual: análise da fidelidade partidária como um exemplo deste fenômeno Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jan 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33626/a-mutacao-constitucional-e-seus-efeitos-na-realidade-atual-analise-da-fidelidade-partidaria-como-um-exemplo-deste-fenomeno. Acesso em: 23 dez 2024.
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