SUMÁRIO: RESUMO. INTRODUÇÃO. 1 Contextualização da autodeterminação indígena e o meio ambiente equilibrado. 2 Análise da evolução jurídica dos direitos dos indígenas no Estado brasileiro, como caminho para se atingir o direito à autodeterminação. 2.1 Período atual e suas perspectivas nos cenários nacional e internacional. 3 Importância da participação indígena na discussão dos seus direitos. BIBLIOGRAFIA.
RESUMO: O meio ambiente ecologicamente equilibrado pressupõe a preservação de seus componentes naturais e culturais, dentre estes últimos destaca-se a harmonia das relações com os indígenas e a proteção dos seus direitos, onde destaca-se, na atualidade, à busca pela sua autodeterminação. Para melhor compreender esse aspecto, pressupõe-se realizar um estudo da evolução histórica das legislações coloniais, imperiais, normas internacionais até chegar à atual ordem jurídica e compreender como políticas como o assimilacionismo e plurietnicidade, influenciaram na definição de institutos como a capacidade e a tutela indígena, pressupostos ao direito dos índios de regerem as suas vidas. Assim, com vistas a sanar injustiças do passado e a não repeti-las, visa-se construir novas realidades para afirmar o direito à participação indígena nas políticas públicas e projetos econômicos que lhes digam respeito.
Palavras-chave. Direitos indígenas. Evolução histórica. Tutela. Autodeterminação. Participação.
Um ambiente humano aproximar-se-á cada vez mais do equilíbrio, dentre outros fatores, quanto mais se busque a harmonia entre seus integrantes, o respeito às diferenças e a busca pela opinião dos seus membros para construção do futuro em comum. [1]
Neste sentido, é importante que se reflita e busque as origens do atual contexto social em que a participação nos destinos tem estado predominantemente entregue aos grupos hegemônicos, mas que, aos poucos, tem se destacado a luta dos movimentos sociais para efetivar o direito de se insurgir e influenciar nas decisões políticas.
Assim, é bem verdade que, desde a época da colonização brasileira por Portugal, sempre houve um aparato legislativo dedicado aos povos indígenas [2], principalmente destinado à regulação de suas terras. Contudo, a tão-só existência destas normas não foi suficiente para garantir a devida proteção a esses povos. Foi patente a inexistência da consideração da humanidade[3] dos índios, da proteção de suas tradições e da sua capacidade jurídica, bem como do seu tratamento como cidadãos com direito de participação.
Portanto, necessário se faz um estudo detalhado sobre a autodeterminação indígena no Brasil, desde os tempos coloniais até o presente para se conseguir melhor entender questões que ainda hoje conturbam a realidade indígena.
Em consonância com os objetivos propostos, este trabalho irá promover um estudo histórico e crítico sobre as legislações acerca de temas relacionados à concepção legal de índio, sua capacidade jurídica e à sua autodeterminação, desde a época da colonização brasileira, passando por todas as suas Constituições. Objetiva-se com isso, a análise dos caminhos pelos quais passaram os índios do Brasil até atingir o direito à participação. Para isso, a presente pesquisa partirá de uma visão interdisciplinar do tema, onde embora predomine uma visão jurídica, haverá enfoques antropológico e sociológico sobre os temas indígena e participação.
Uma vez realizado este panorama histórico-legal, pretender-se-á demonstrar a importância da participação indígena na condução das políticas públicas e nos projetos econômicos que lhes afetem, de maneira que o resultado final possa auxiliar no alcance de um equilíbrio no seu ambiente físico cultural.
A relevância do estudo da participação indígena nas políticas públicas do Estado brasileiro fica evidente quando se considera a riqueza do seu patrimônio fundiário[4] e cultural[5], aliado à visão especulativa do setor empresarial em dominar seus territórios, resultando disso, um processo de acentuada diminuição do seu contingente populacional[6] e do comprometimento de suas tradições culturais.
Destaca-se, ainda, o problema da forte conotação etnocêntrica[7] que permeou por muito tempo a disciplina jurídica das questões indígenas, que visava, em última análise, assimilar os índios à cultura do restante da sociedade brasileira. Por essa via, poder-se-ia presumir que, desconsideravam-se a capacidade indígena de se autodeterminar, mas uma vez integrados, perderiam o status de índio e com ele a garantia de alguns direitos especiais, dentre os quais, a posse das terras por eles possuídas.
Essas dificuldades foram percebidas por esse subscritor, principalmente a partir da sua colaboração laboral com a promoção dos direitos indígenas no Brasil. A rotina de trabalho informa que os índios na maioria das vezes não tem exercido uma cidadania ativa quanto às decisões que afetem as suas vidas. De um lado, o Legislativo não tem aprovado uma norma que dê maior impositividade às decisões indígenas em suas áreas. Por outro lado, o Poder Executivo, quando realiza qualquer tipo de consulta[8] aos indígenas, nem sempre leva em consideração as suas opções, talvez influenciado por uma crença de incapacidade dos índios para reger seus interesses. Os não-índios, a seu turno, cada vez mais ávidos por se apoderarem do patrimônio indígena, tem interesse em ultrapassar a vontade dos índios pela preservação de suas terras, contrapondo a este ideal, a busca pelo crescimento econômico. Já, o Judiciário, por sua vez, quando provocado, nem sempre, vem garantindo a preservação dos direitos indígenas, mesmo que patentes o seu desacato e o prejuízo aos interesses desses povos.
A inconformação em face da reiterada insensibilidade e ignorância propositada na componente participação para a condução das políticas públicas[9] sobre os indígenas, motivou a construção deste trabalho, haja vista que muitas são as alternativas legislativas e doutrinárias destinadas desta previsão, mas que esbarram em certa inércia administrativa e resistência judicial. Assim, para a melhor proteção desse direito, necessário se faz um estudo que aponte os erros do passado e norteie o futuro com soluções contextualizadas com a atual Constituição Federal e as normas internacionais pertinentes.
O desenvolvimento do tema calcou-se, eminentemente, em pesquisa bibliográfica. Foi realizada pesquisa da legislação pátria e estrangeira, das normas constitucionais e ordinárias, abrangendo os dispositivos de entendimento mais genérico e confrontando-os com as regras legais próprias da população indígena.
Dessa forma, foi explorada a perspectiva do direito comparado e da evolução histórica da lei. Ainda houve a coleta de dados em bases oficiais e, finalmente, foi apresentada a compreensão da doutrina pátria e estrangeira acerca de temas constitucionais, civis e indigenistas, bem como a posição dos Tribunais, com citações da jurisprudência dominante que demonstra como a questão está realmente sendo aplicada contemporaneamente no país.
Diante desse panorama, esse estudo visa contribuir para otimizar a aplicabilidade dos direitos indígenas nos conflitos da atualidade. Daí, ressalta-se a necessidade de uma aplicação atualizada e constitucional dos institutos jurídicos e com isso, implementar a previsão dos direitos dos índios à participação, em prol do alcance de sua autodeterminação.
No estudo sobre a autodeterminação dos povos indígenas é importante destacar que, quando se protege o direito dos índios à participação sobre os destinos políticos e econômicos das suas terras, se corrobora, ainda que reflexamente, para a preservação de um meio ambiente equilibrado.
Assim, o direito de acesso à informação ambiental e o direito de participação pública em procedimentos ambientais relevantes, podem ser considerados como uma das dimensões ecológicas dos direitos humanos, na perspectiva dos direitos ambientais procedimentais. Trata-se de direitos ligados ao ideal democrático, pré-requisitos para um melhor processo de decisão ambiental. (ARAGÃO, 2008, p. 175)
Neste contexto, o direito à participação insere-se mais numa perspectiva de estudo da justiça ambiental[10], que visa a composição dos conflitos interpessoais por causa do ambiente ou seja, a realização de justiça entre os homens relativamente aos elementos ambientais, com o fim de construir um direito socialmente justo. (ARAGÃO, 2006, p. 27 e 29)
Ademais, na contextualização da proteção indígena com o meio ambiente, entende-se que o conceito de meio ambiente alcança, para além da ideia de meio ambiente natural, também o meio ambiente cultural. (SILVA, 2002, p. 20)
O meio ambiente natural e o cultural vêm a ser interesses constitucionalmente protegidos na realidade brasileira, quais sejam, este no art. 216[11] da Constituição Federal brasileira de 1988 (CF) e aquele no art. 225[12], CF.
Ora, o conteúdo de meio ambiente há de ser mais globalizante, abrangente de todos elementos ambientais naturais, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e ecológico.
No que toca ao meio ambiente cultural, sua importância decorre do resguardo ao patrimônio cultural brasileiro e do direito ao multiculturalismo. Nesses termos, meio ambiente cultural inclui todas as atividades humanas portadoras de referência à memória, à identidade, à ação dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (MILARÉ, 2004, p. 73-274).
Assim, um ambiente culturalmente harmonioso pressupõe a preservação dos componentes culturais indígenas e a proteção dos seus direitos, quais sejam a forma especial de posse tradicional em suas terras, a manutenção de seus costumes, os seus modos de ser, fazer e viver, a garantia da sua interação ecológica e dos meios próprios à sua subsistência, bem como a autodeterminação para participar dos seus destinos. (DALLARI, 1980, p. 103)
Verifica-se, assim, no art. 231, CF[13], que disciplina a posse indígena, que há igualmente a preocupação constitucional de respeitar o meio ambiente natural e cultural dos índios. Ambos os elementos são igualmente importantes para a manutenção de uma vida digna e saudável para a comunidade indígena. Pois, com a preservação do habitat indígena, se protege, por via de consequência, o ambiente necessário para sua reprodução cultural e os seus demais direitos como as formas tradicionais de saúde, educação, crenças, alimentação e moradia, o que favorece para a consecução de um maior equilíbrio ambiental.
Igualmente, importa ao interesse nacional ver preservada a história brasileira, através da conservação da memória dos seus primeiros grupos. Assim, quando se protege a posse de terras indígenas, está também zelando pelo interesse difuso de toda a coletividade nacional, quiçá, por um direito ambiental cultural global[14].
Assim, destaque-se que as políticas governamentais ou empreendimentos particulares realizados em terras indígenas podem atingir o índio, na posse sobre seus quinhões tradicionais, o que afetaria o meio ambiente cultural das populações nativas, posto que compromete a reprodução física e cultural desses povos (URQUIDI, 2011). Portanto, é mister que se garanta um desenvolvimento sustentável e o direito à opinião dos afetados em tais projetos.
Nesse diapasão, destaca-se que na definição de políticas públicas há que se considerar o princípio da sustentabilidade, como elemento indispensável. Assim, a sustentabilidade ecológica é um pré-requisito do desenvolvimento e não um mermo aspecto dele. Só o desenvolvimento ambientalmente sadio é que pode, de alguma forma, satisfazer as necessidades das gerações futuras e atuais. Portanto, é importante ter a consciência de que a proteção ambiental é condição de prosperidade econômica a longo prazo. (ARAGÃO, 2008, p. 173-176).[15]
Logo, entende o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão da cúpula do Judiciário brasileiro, em decisão emblemática para a realidade indígena nacional, que o desenvolvimento econômico[16] não pode ser usado como desculpa para ignorar a preservação da riqueza cultural das minorias.
Portanto, a preservação de um grupo étnico equivale à própria salvaguarda do patrimônio humano nacional, sem o qual restaria comprometida a própria memória do país (STRAUSS, 1952, p. 69).
Logo, há que se pensar se os povos indígenas devem continuar à margem dos projetos dentro de suas próprias áreas, quiçá serem tratados como obstáculo ao desenvolvimento nacional, pois nenhum progresso se justifica se é obtido por meio do descaso aos direitos fundamentais. Isso seria considerado um retrocesso (SIEDER, 2002, p.81).
Dessa forma, a importância de se proteger o direito à participação dos índios sobre a posse das terras indígenas, refere-se a um importante direito ambiental procedimental, bem como ao de se preservar a cultura dos índios. Além disso, com a participação, se protege mediatamente à memoria nacional, criando um ambiente sadio e propício à proliferação da vida, com bem-estar, e dos costumes, crenças e tradições, para as gerações atuais e futuras.
Antes de se pensar na necessidade da autodeterminação indígena como forma de participação nos seus destinos e buscar uma emancipação social (SOUSA, 2008, p. 88), é importante empreender a seguinte pergunta: “Quem são os índios no Brasil?” Quais os contornos que a evolução dos instrumentos legais deram à sua autodeterminação? Qual a importância de suas conquistas e lutas sociais para que os indígenas alcancem o direito à participação nas políticas públicas e projetos econômicos em suas terras?
Na tentativa de alcançar uma resposta teórica contextualizada com a realidade jurídica, procurar-se-á precisar os elementos extraídos da evolução jurídica nacional.
Assim, haverá a investigação sobre as mudanças de conotações das normas jurídicas brasileiras acerca da formação do conceito de índio, desde a fase da política etnocêntrica e integracionista, presente nas primeiras legislações até à atual Constituição Federal de 1988, com o reconhecimento da sociodiversidade e da pluralidade étnica do povo brasileiro.
A proteção jurídica aos índios brasileiros nem sempre foi conferida de maneira adequada pela legislação e instituições nacionais, pois havia um tratamento pouco antropológico do tema, de forma a não se compreender toda a sua essência. Assim , somente com a Constituição Federal de 1988 (CF), a diversidade étnica foi assegurada, ainda que formalmente. Da mesma sorte, a política indigenista presente nas constituições anteriores era basicamente etnocêntrica e integracionista[17]. (MENEZES, 1995, p. 39)
Portanto, o exame dos principais dispositivos de lei relativos à matéria, a partir das normas coloniais e do advento da primeira Constituição Imperial, de 1824, não permitirá encontrar o tratamento satisfatório, do ponto de vista antropológico, mas servirá como referencial para compreender a disciplina dada à sua autodeterminação.[18]
A Constituição Imperial de 1824, a primeira do Brasil, nada dispôs sobre a matéria, mas a essa época já havia documentos legislativos anteriores dispondo sobre as terras indígenas. De acordo com Manuela Carneiro da Cunha (1985, p. 63), destacam-se: a) as Cartas Régias, promulgadas por Filipe III em 30 de julho de 1609 e 10 de setembro de 1611, que afirmam o pleno domínio dos índios sobre seus territórios e sobre as terras alocadas nos aldeamentos; b) o Alvará de 1o. de abril de 1680, que declara que as sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa não poderiam afetar os direitos territoriais originários dos índios sobre as suas terras; c) a Carta Régia de 9 de março de 1718 que explicitamente declara que os índios estavam isentos da jurisdição da Coroa Portuguesa, não podendo ser coagidos a saírem de suas terras; d) a Lei pombalina de 6 de julho de 1755, sustentando o inteiro domínio dos índios sobre as suas terras, ratificando as disposições do Alvará de 1° de abril de 1680; e) a Carta Régia de 1819, afirmando que as terras indígenas são inalienáveis e nulas as concessões de sesmarias que pudessem ter sido feitas nessas terras, as quais não poderiam ser consideradas devolutas.[19]
Contudo, era titubeante o reconhecimento da humanidade dos índios, sem conceder-lhes direitos em igualdade de condições, foram-lhes retiradas as terras, não raro adotando práticas de colonização que punham em risco a própria vida dos índios. Posteriormente, a lei pombalina trazia concepções que, de certa forma, ameaçavam a diversidade étnica indígena, impondo os costumes dos colonizadores e privando a prática da língua nativa. (MENEZES, 1995, p. 55)
A legislação imperial, por sua vez, tentou organizar uma política indigenista oficial mais estável, estabelecendo um tratamento de cunho paternalista aos indígenas brasileiros. Neste período, adota-se uma política de integração forçada, que ainda vigora por longo tempo da fase republicana (até 1987). Era época da homogeneização. (MENEZES, 1995, p. 45)
Assim, embora existisse um razoável número de diplomas legais sobre os indígenas, a Constituição Republicana de 1891 ignorou a matéria. Somente a partir de 1934, a questão indígena mereceu tratamento constitucional. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1934 (Constituição Federal de 1934) regulamentou o direito dos índios em dois pontos básicos: restringindo exclusivamente à União a competência para legislar sobre a incorporação dos índios à comunhão nacional (art. 5°, inciso XIX, alínea “m”) e garantir o respeito à posse da terra ocupada por indígenas (art. 129). As posteriores Constituições de 1937, 1946, 1967 e a Emenda Constitucional de 1969 mantiveram basicamente a mesma redação e a política integracionista das anteriores.[20]
Durante esse período, entretanto, houve algumas normas infraconstitucionais que influenciaram na concepção e tratamento do indígena brasileiro.
Somente com a Lei n°. 601 de 18 de setembro de 1850 (“Lei de Terras”), as terras destinadas à colonização dos indígenas passaram ao usufruto exclusivo dos índios, tornando-se inalienáveis até que o Governo Imperial lhes concedesse o pleno gozo delas, quando assim permitisse o seu “estado de civilização”. (MENEZES, 1995, p. 57)
A Proclamação da República (1889) e a elaboração da Constituição de 1891 nada dispuseram em relação aos direitos indígenas. Os índios só mereceram a atenção legislativa da República em 1910, quando, com o Dec. n°. 8.072, foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais e aprovado o seu regulamento. É certo que, ainda nessa fase, os governantes, os juristas e os legisladores, a exemplo da sociedade como um todo, eram adeptos de uma forte visão integracionista que só permitia a compreensão de bem-estar dos indígenas mediante a sua integração à comunhão nacional. [21]
Nesse contexto, foi editado o Dec. n°. 9.214/1911(Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais), que surgiu como uma das primeiras manifestações da República em regulamentar exaustivamente a relação do Estado com os índios. Esse Decreto embora não apresente uma definição explícita de “índio”, fez uma classificação que distingue três categorias distintas - índios aldeados, índios em estado nômade e índios promiscuamente reunidos com os civilizados, garantindo a todos a mesma assistência indiscriminadamente. (MENEZES, 1995, p. 65)
O antigo Código Civil Brasileiro (Lei n°. 3.071, de 01/01/1916) somente se ocupou dos índios no art. 6o caput e parágrafo único, quando os equiparou aos relativamente incapazes e os submeteu ao regime de tutela. Foi deixada a regulamentação mais extensiva sobre a matéria a cargo de leis especiais, que deveriam ser editadas posteriormente.
Embora emancipados da tutela a que estavam submetidos, o patrocínio dos seus interesses ficou a cargo do Serviço de Proteção aos Índios, permanecendo restrita a sua capacidade civil. (MENEZES, 1995, p. 75)
Por sua vez, o Estatuto do Índio, promulgado pela lei n°. 6.001 de 1973, constituiu uma tentativa de codificação das normas de direito indígena esparsas em diversos diplomas.
Nada obstante, o atual Estatuto de 1973 deve ser todo reinterpretado, porque está baseado na tutela dos povos indígenas e na ideia de assimilacionismo, ou seja, protegê-los, mas sabendo que aquele é um estágio inferior do desenvolvimento humano e que, em algum momento, ele deverá vir a adotar a cultura da civilização dominante. (MENEZES, 1995, p. 75)
Importante citar que o Parecer nº. 04/PFE/PGF/FUNAI/07, expedido pela Procuradoria-Geral Federal (PGF),[22] responsável pela defesa das causas jurídicas indígenas brasileiras, em que consolida o entendimento de que não há distinção entre índios integrados, em vias de integração e isolados, para fins de atuação de todos os seus órgãos, acerca de questões indígenas.[23]
Assim, quanto à tutela da FUNAI[24] sobre o índio, entende-se que a CF, há tempos, já regulou a matéria. Observa-se que a CF, em seu art. 232[25], previu que os índios, suas comunidades e organizações tinham capacidade processual para atuar em causa própria, ou seja, a possibilidade de ser parte legítima para ingressar em juízo na defesa de seus direitos e interesses. Por via de consequência, se quem pode o mais pode o menos, e para se ter capacidade processual é necessário capacidade civil, entende-se que a CF também reconheceu capacidade civil aos índios.
Para Fernando Dantas (2008, p. 103), como decorrência inteligente do reconhecimento dos direitos diferenciados relativos às pessoas e sociedades indígenas, a Constituição garantiu o processo de efetivação ao reconhecer legitimidade e capacidade dos índios individualmente, e de suas sociedades e organizações de atuar em juízo ou em outras instâncias na defesa dos seus direitos. Esse reconhecimento representa, no panorama histórico dos direitos dos povos indígenas brasileiros, caracterizado pela negação, uma mudança radical de paradigma no que concerne à relação dos povos indígenas com o Estado e com a sociedade nacional. Em primeiro lugar porque sepulta de vez a ideia de incapacidade, fundada no desenvolvimento mental, que gerou a figura da pessoa em transição estampada na classificação do antigo Código Civil de 1916.
Assim, se os índios têm capacidade processual conferida pela CF e a capacidade civil é pressuposto da capacidade processual, conclui-se que a CF também quis conferir capacidade civil aos índios, de forma implícita.
Nota-se que a CF 88, em nenhum momento, fala de tutela dos índios pela União. Ao reverso, altera o enfoque do tratamento do Estado, modificando a visão da tutela de pessoas para a da proteção de direitos.
Portanto, é necessário não continuar confundindo tutela enquanto ‘incapacidade jurídica’ e tutela enquanto ‘proteção’. Defende-se aqui que a ‘tutela-incapacidade’ não foi recepcionada, porquanto a CF/88 abandonou o ‘paradigma da integração’ (cujo pressuposto era exclusivamente a ‘incapacidade’), substituindo-o pelo ‘paradigma da interação’ (cujo fundamento é precisamente a ‘diferença’). Logo a CF/88 reconhece o índio como diferente, sem que essa diferença possa ser confundida com incapacidade, prova disso é que reconhece a capacidade do índio para ingressar em juízo na defesa de seus direitos, sem depender de intermediação. Então, alterou-se substancialmente a natureza do regime tutelar indígena: primeiro, esse regime passou a ter natureza exclusivamente protetiva[26]; segundo, passou a ter estatura constitucional. (BARRETO, 2006, p. 42-43)
Esse posicionamento, igualmente, foi adotado pela Presidência da República, no ato “Sociedades Indígenas e a Ação de Governo”, onde consta que as regras do Estatuto do Índio só são válidas se estiverem de acordo com a Constituição e que a tutela das pessoas foi substituída pela tutela de direitos.[27]
Ora, a tutela sobre os índios foi extinta pela CF quando conferiu capacidade processual para os índios atuarem em causa própria. Logo, hoje, mesmo que ainda não seja o sistema ideal, a tutela que ainda existe da FUNAI é sobre a realização de alguns “direitos”[28] indígenas e não sobre o índio. Nesses termos, a FUNAI promoverá o direito de demarcação das terras indígenas, proteção dessas terras etc.
Desta feita, anota-se que o art. 4° da Lei 6001/73, que classifica os índios em “não-integrados”, “em vias de integração” e “integrados” não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois contraria a ideia de respeito ao pluralismo étnico e cultural. Logo, todos os dispositivos da legislação ordinária que visem à incorporação dos índios à comunhão nacional restaram derrogados, v.g., os arts. 4º, 7º, 8º, 9º, 10 e 11 do Estatuto do Índio. A ideia central nos dias atuais é que os índios tenham autonomia para viver em sociedade e decidir sobre seus destinos, embora deva o Estado cuidar para a preservação da sua diversidade[29].
Importante também frisar o entendimento da Convenção n°169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989 sobre a questão indígena. A Convenção 169 da OIT, atualmente, é um dos principais instrumentos jurídicos sobre direitos indígenas a nível internacional. Foi ratificado por 20 (vinte) países, dentre eles o Brasil, que o fez em 25/07/2003, onde foi aprovado pelo Decreto n°. 5.051 de 19 de abril de 2004. É obrigatório para todos os Estados que o ratificaram.
A Convenção de n°.169 oferece uma definição mais condizente com os propósitos da Constituição Federal de 1988, quando dispõe, no art.1°, item 2, que a consciência da identidade étnica deve ser um critério fundamental na determinação dos grupos indígenas.[30]
Com essa Convenção, vê-se o predomínio do critério antropológico da autoidentificação orientando a conceituação de índio e de comunidade indígena, posto que cada pessoa poderá optar por manifestar a cultura de seus ancestrais, bem como identificar-se como pertencente à dada etnia.
Dentre os diplomas internacionais acerca da questão indígena, ainda ressalta-se a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 13 de setembro de 2007. Contudo, por um critério de sequência temporal, optou-se por discuti-la adiante, por se tratar de um documento que reflete as tendências mais contemporâneas do indigenismo.
No que tange ao âmbito indígena, destaca-se um novo paradigma, qual seja, o multiculturalismo[31], que reconhece a necessidade de proteção da cultura das diferentes etnias, em pacífica convivência (COMPARATO, 2001, p. 89). Logo, a cultura do grupo predominante não deve ser imposta aos demais.
Para isso, os instrumentos legais que asseguram os direitos dos índios foram cada vez mais detalhados e fortalecidos, no afã de que seja assegurada a continuidade desse grupo étnico e seus elementos culturais.
Com a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988[32], a proteção jurídica especial se fundamentou no reconhecimento da condição étnica diferenciada dos índios. Supera os momentos (históricos –metodológicos) anteriores e rompe o paradigma da invisibilização, do evolucionismo, da criação de não-índios. Portanto, rompe-se a política de apreciar o direito tradicional indígena como um não ser e um não existir. A partir de então, os seus direitos passaram a ser dispostos em respeito às estruturas de sua organização social.
Portanto, a CF de 1988 trouxe o reconhecimento das diferenças étnicas e dos direitos diferenciados, do reconhecimento dos sujeitos e direitos coletivos, em perspectiva com os direitos humanos, do multiculturalismo e da participação (BARROSO, 1993, p. 56). Contudo, muito embora tenha sido significativa para transformação da realidade nacional e de outros países, ainda precisa de maiores avanços, já experimentados nos países vizinhos da América Latina, a partir de um “novo constitucionalismo”. (FAJARDO, 2011, p. 12)
Seguindo o paradigma constitucional, o Novo Código Civil (Código Civil de 2002) trata a respeito dos índios no art. 4º, parágrafo único. Esse diploma inova, em relação ao Código Civil de 1916, quanto à sua capacidade civil, pois não mais incluiu os indígenas no rol dos relativamente incapazes[33]. Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 288): aduz que o novo Código, segundo o princípio indicado no Projeto de 1965, deixa exclusivamente à legislação especial a tutela dos índios (art. 4°, parágrafo único).
Assim, nada obstante o parágrafo único do art. 4º determinar que a capacidade civil dos indígenas seria regulada por lei especial, ainda não foi editada uma nova lei especial que regule a matéria. Portanto, a lei que atualmente versa sobre o assunto é o Estatuto do Índio, que foi editado em 1973. Dessa feita, mesmo considerando a importância desse diploma jurídico, deve-se ficar atento que foi editado em período anterior à CF 88 e ao novo Código Civil, logo, como é de se esperar, a classificação da capacidade civil dos indígenas oferecida pelo Estatuto do Índio, como outrora analisado, não foi recepcionado pela atual Constituiçã de 1988.
Logo, um novo estatuto do índio é que deveria disciplinar o tema. Contudo, o projeto de lei que virá a substituir o estatuto do índio, ou Substitutivo ao Estatuto do Índio[34], não faz referência direta quanto à regulamentação da capacidade; apenas fala que os negócios serão nulos quando forem estabelecidos entre índios e não–índio, desde que, prejudiciais às tradições e às terras indígenas (arts. 28 e 29).
Destarte, não se nega a necessidade de maior proteção aos índios que, no caso concreto, venham a não possuir o devido conhecimento para a prática dos atos jurídicos. Nesses casos excepcionais, será necessário o acompanhamento da FUNAI. Entretanto, essa não deve ser a regra geral em tema de capacidade civil indígena. Posição que já vem sendo adotada por parte da doutrina brasileira (GAGLIANO, 2006, p.100), lastreada na interpretação da Constituição Federal, dos atuais diplomas internacionais e projetos de lei em andamento no Brasil.
Portanto, pode-se conjugar as disposições constitucionais e do Novo Substitutivo (penais e civis) para inferir o tema sobre capacidade do índio[35]. Primeiramente, observa-se o mandamento constitucional que conferiu, implicitamente, a capacidade civil aos índios, quando expressamente garantiu a capacidade processual. Por outro lado, observe-se que o Novo Substitutivo não fez nenhuma alusão expressa à capacidade dos índios, sequer fez distinção entre integrados, isolados e em fase de integração. Antes, limitou-se apenas a elencar as exceções a essa capacidade, quais sejam, nos negócios com prejuízo aos costumes, à terra e entabulados com entes estrangeiros, o que leva a intuir que o Novo Substitutivo estabeleceu, como regra geral, a capacidade plena do índio. Por fim, cita-se a previsão penal que exige perícia antropológica para aferir a imputabilidade caso a caso, independente de o índio ser aldeado ou não. Tal norma pode ser analogicamente transposta para a seara civil para apoiar a interpretação de que, em casos excepcionais, será possível fazer perícia antropológica para verificar a capacidade e limitar no caso concreto a capacidade daquele índio investigado[36]. Portanto, deduz-se que a nova ideologia legal abandonou a antiga concepção de que os índios são prévia e invariavelmente catalogados como relativamente incapazes, a partir de seu nível de integração à sociedade civil.
Em continuidade à evolução normativa quanto aos direitos indígenas aplicáveis no Brasil, destaca-se a “Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas”, aprovado em 13 de setembro de 2007. Trata-se de importante Declaração de Direitos, que reflete o pensamento pluriétnico dos países signatários acerca dos povos indígenas, compatível com as demandas indígenas atuais, posto concretizar o avanço do posicionamento jurídico e da moderna literatura a respeito do tema.
Essa Declaração contou com a adesão de muitos países que possuem população indígena, tais como o México, Bolívia, Venezuela, Brasil etc. Insta, entretanto, anotar a não adesão dos Estados Unidos e da Colômbia. (URQUIDI, 2009).
A própria Declaração destaca a necessidade de os países cumprirem o acertado nos acordos internacionais, alertando para a necessidade de um tratamento condizente com as diferenças regionais, históricas e culturais de cada povo indígena. O desafio mundial hoje é a efetivação dos direitos contidos nesse importante instrumento de direitos humanos para os povos indígenas, e transformar este “law in book” em “law in action”.
No que pertine aos direitos insertos na Declaração, cumpre ressaltar a proclamação da diversidade de etnias, da não superioridade de uma etnia sobre outra ou admissão de qualquer ato discriminatório sobre os índios. Visa, assim, à promoção dos direitos, das liberdades, do bem-estar e do desenvolvimento integral, tudo isso com espírito de solidariedade e respeito mútuo.
Interessa saber, igualmente, que essa Declaração não estabelece nenhuma diferenciação entre o índio aldeado ou não, bem como não faz discriminação quanto à sua capacidade civil, fato observável, regra geral, nos documentos internacionais ou projetos de lei da atualidade, que se mostra como um aspecto positivo, haja vista a não exigência daqueles elementos para conferir a proteção aos índios, e ao fato de não se conceber a incapacidade civil a priori.
Além disso, destaca a preocupação com a educação indígena especializada e com uma saúde diferenciada à sua realidade.
Igualmente, essa Declaração parte do reconhecimento dos atentados do passado à etnia indígena para proteger, além dos direitos individuais, os direitos coletivos dos índios. Neste diapasão, destaca-se a necessidade dos índios acompanharem, efetivamente, a defesa de suas terras, a partir do direito de informação e participação.
Para isso, a Declaração da ONU de 2007 tem emanado efeitos emancipatórios para buscar proteger sua cultura, suas tradições e sua organização social, máxime com a introdução de postulados de autodeterminação dos povos indígenas, fomentando a sua participação em políticas públicas.
No que pertine ao cenário brasileiro, essa Declaração tem gerado efeitos, especificamente nas influências presentes na proposta de lei, com emenda final apresentada, no dia 05 de junho de 2009, para criar o Novo Substitutivo ao Estatuto dos Povos Indígenas[37], a que a pouco foi referido.
Destaca-se, a importância dada à participação indígena para a elaboração desta Emenda. Assim, houve reuniões com as comunidades indígenas em várias regiões do Brasil, para possibilitar a participação de cada grupo indígena sobre as especificidades de sua realidade. Ao fim, foi realizado um seminário nacional em que foram compiladas as impressões de todos os seminários anteriores, com vistas à elaboração da proposta final da Emenda ao Substitutivo.[38]
Trata-se de projeto de lei que retrata a atual concepção cidadã da Constituição de 1988, com grande abrangência de matérias. Aborda desde a questão cultural até à econômica. Assim, regulamenta o uso econômico das terras indígenas previstos na CF, tais como, recursos hídricos e minerais, sem se descuidar do respeito à diversidade étnica e cultural dos povos indígenas, a partir do reconhecimento de seus usos, costumes e suas tradições.
Ressalta-se a previsão do direito de participação dos índios em todas as políticas indigenistas, denotando o abandono ao víeis etnocêntrico.
Esse Novo Substitutivo utiliza o termo “Povos Indígenas” para designar aqueles que são ligados com os habitantes originários do país, antes mesmo da fixação das fronteiras do Estado brasileiro e que, independentemente de sua situação jurídica e territorial, ainda conservam as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. As “Comunidades Indígenas” seriam, assim, parcela de um povo indígena, distribuída pelo território nacional, dotadas de características organizacionais próprias.
“Indígena” seria aquele que se autoidentifica como tal, ou seja, enxerga-se como pertencente a uma comunidade indígena, distinta do restante da sociedade civil, com seus próprios costumes, mantendo certas tradições e por ela sendo aceito. Anota-se que não basta o autorreconhecimento para que uma pessoa tenha a sua inclusão na etnia indígena. A lei exige a chancela da própria comunidade indígena, como requisito indispensável, sem o qual não terá as prerrogativas previstas pela lei para a etnia.
O termo “Organização Indígena” importa nas associações formadas por “comunidades indígenas”. Isso porque o Novo Substitutivo ressalta o movimento participativo dos índios, fortalecendo o associativismo. Não impede, contudo, o direito dos índios de, individualmente, unirem-se em associações, como os demais cidadãos.
Inova, ainda, o referido Substitutivo, quando vem esclarecer o real significado e alcance do termo “indígena”, para fins de concessão de direitos. Assim, esse novo Estatuto, no parágrafo único do art. 6º, esclarece que quando se fala de “indígena” não se faz discriminação entre os índios que vivem isolados nas aldeias e aqueles que estão integrados ou têm contato com a civilização civil, para fins do alcance das regras previstas nesse Estatuto[39].
Assim, os índios urbanos farão jus, no que lhes couber, aos direitos diferenciados previstos pela CF e legislação ordinária específica, pois eles estão, apenas circunstancialmente, em meio urbano, mas mantêm uma relação com a comunidade. Dessa forma, há uma mera extensão da vida da aldeia em outros meios. Logo, o Brasil está constituído em um Estado plural em que todos podem afirmar a que grupo pertencem, independente do meio físico que ocupem temporariamente.
É possível situar a proteção dos índios urbanos no capítulo constitucional atinente à cultura (Capítulo VI, Seção II, CF). Destarte, a CF, no (art. 215)[40] diz que todos têm direito a afirmar sua identidade e traçar para si um projeto para sua vida. Logo, não poderia sofrer discriminação alguém que mantivesse uma determinada cultura, mas que residisse em local onde predominam outras condutas sociais.
Portanto, essa é a concepção moderna sobre direitos indígenas e sua capacidade, muito embora este Projeto de lei, ainda esteja em fase de tramitação no Congresso Nacional brasileiro.
Contudo, embora o atual Código Civil e Estatuto do índio em vigor não contenham as concepções mais atuais dos direitos indígenas[41], previstas nos diplomas internacionais e projetos de lei. Entende-se que os índios no Brasil estão sujeitos ao Estatuto Constitucional, previsto no art. 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, que consagra a sua capacidade civil plena e não discrimina o fato de viverem isolados ou não da sociedade civil, posição esta, inclusive expressamente consagrada pelo Supremo Tribunal Federal.[42]
Consoante o Supremo, não é obrigatório que o índio viva isolado do convívio da sociedade para ter os seus direitos especiais protegidos. Outrossim, poderão ser consideradas indígenas, para fins de salvaguarda constitucional, aquelas pessoas índias que estão em contato com o restante da sociedade[43]. O que resulta a ideia de que não há diferença entre o direito dos índios isolados e o dos índios em contato com o resto da sociedade.
Portanto, o Supremo Tribunal Federal comprovou a sua adesão à concepção multiculturalista da CF 88. Conforme já esboçado no Capítulo 1, trata-se, em linhas gerais, de uma ideia de promoção de todos os grupos étnicos. Aqui não prevalece a adoção do pensamento de uma só casta cultural, mas uma salvaguarda de todos.[44]
Portanto, no Brasil, notadamente após o advento da Constituição Federal de 1988, a teoria pluriétnica passou a ganhar espaço. Nesse modelo, defende-se a coexistência dos grupos e o respeito às suas culturas originárias. Já não mais se busca uma uniformização dos elementos humanos presentes num só espaço, antes se tenta assegurar a sua pacífica convivência. Para Bobbio (1992, p. 48), uma forma de conseguir essa igualdade material entre povos com passado e condições tão diversas, é dedicar uma maior proteção legal aos grupos hipossuficientes, sócio-intelecto-economicamente. Assim, será possível que os mais espoliados historicamente venham a possuir no presente, meios de sobrevida e dignidade.
Nesses termos, uma política pública que considere a opinião dos índios na tomada de decisões nos assuntos que lhes digam respeito, é fundamental para instrumentalizar uma mudança de postura governamental e ética, pois se demonstrará a importância da opinião dos índios para as ações em assuntos que lhes afetem.
Uma vez tendo sido feita uma breve abordagem sobre a formação da atual concepção nacional sobre os índios no Brasil, a partir da análise da evolução de suas normas jurídicas constitucionais, infraconstitucionais e internacionais, em temas atinentes à sua capacidade e autodeterminação, resta agora empreender uma reflexão sobre a necessidade da efetivação da participação indígena nas políticas públicas estatais e projetos econômicos em suas terras.
A despeito das políticas públicas sobre interesses indígenas, tem-se discutido, cada vez mais, a imperiosidade da participação dos indígenas na implementação de projetos que lhes digam respeito e afetem às suas vidas. Assim, os projetos que afetem as terras indígenas devem contar com um maior debate público de toda a comunidade indígena, para discutir a melhor forma de desenvolvimento ambientalmente equilibrado.[45] (SOUZA FILHO, 2006, p. 48)
A participação indígena não se trata de um direito novo. Deste modo, a própria Convenção 169 da OIT, art. 4º, há muito já previa tal prerrogativa. Destarte, parece ser uma das formas de se buscar a democratização da sociedade brasileira e da implementação de maior grau de cidadania aos indígenas.
Assim, quanto mais a população indígena for forte para influenciar a agenda política maiores conquistas sociais se alcançarão em prol de sua “emancipação”[46]. (SANTOS, 2009, p. 389).
Ora, atualmente, a realização de projetos nas áreas indígenas depende da autorização do Congresso nacional (art. 231, V, CF). Há aí a impressão de que os índios não têm capacidade, ou que a eles não pertence a decisão sobre seu território e seus destinos (DANTAS, 2008, p. 21).
Além disso, é possível identificar determinadas políticas públicas que tendem a desrespeitar a posse indígena, sobrepondo outros interesses ao direito dos índios sobre suas terras. Entre aqueles interesses, destacam-se projetos de desenvolvimento nacional, quer seja por iniciativa pública ou privada (SANTILLI, 2010 p. 23).
Nessa conjuntura, cita-se o “Programa de Aceleração do Crescimento” do atual governo federal brasileiro, que inclui construção de hidrelétricas, gasodutos, termelétricas, portos, rodovias, linhas de transmissão de energia e projetos de irrigação, dentre outros, em áreas que abrigam comunidades indígenas, suas memórias arqueológicas e culturais (BRASIL, 2011B, p. 36). Essas ações têm potencialidade de colocar em risco a manutenção das comunidades indígenas em seu habitat e sua reprodução física e cultural. É mister averiguar a necessidade de acrescer aspectos antropológicos nos estudos de impacto ambiental para a autorização desses empreendimentos, bem como a realização do direito de participação prévio das comunidades indígenas.
Observa-se que, em muitos casos, as terras indígenas abrigam potenciais energéticos, minerais e turísticos, dentre outros (FUNAI, 2011), o que aguça os interesses do setor privado da economia (WOLKMER, 1994, p. 08). Esses não-índios pretendem justificar a sua permanência em áreas indígenas, a partir da ideia de que contribuem para o fortalecimento da economia, elevação do número de postos de trabalho e melhoria das condições de vida da comunidade local[47] (BERCOVICI, 2005, p. 127-145). Contudo, podem esconder outros desígnios, quais sejam, usurpar as terras indígenas para seu domínio a baixos valores, por meio de violência física ou moral.
Assim, é mister a mudança desses paradigmas e adotar o pressuposto de que os índios têm capacidade para pensar a vida e para escolher a melhor forma de se conceber o desenvolvimento em suas áreas.
Esta participação deverá procurar abranger toda a comunidade indígena, pois há que se respeitar a ideia de pessoa coletiva[48] dos índios na definição de processos democráticos de política (GOMES, 2010, p. 28). Malgrado, o que se constata é a indução de um processo de centralização a partir das lideranças indígenas, para que se facilite a relação entre o Estado e os índios. Entretanto, não é da natureza dos índios brasileiros a figura do cacique[49], sendo essa uma imposição exterior nas suas formas de organização (DANTAS, 2008, p. 15). Portanto, as relações entre os índios e o Estado poderiam ser entabuladas diretamente com os povos, sem necessidade de intermediários, quer sejam estes, lideranças ou órgãos públicos, tais como a FUNAI.
Ademais, para além de consulta às bases comunitárias, seria útil que o aparato institucional do Estado brasileiro conte com integrantes advindos de movimentos sociais e étnicos. Nesta conjuntura, os indígenas precisam assumir algumas posições chaves nos órgãos de decisão, notadamente naqueles que tratam sobre política indígena, para procurar negociar com mais paridade seus interesses. Aqui não se fala apenas em militantes indígenas, mas em indígenas que integram o centro das decisões estatais.
Igualmente, denuncie-se a inexistência de representantes indígenas no Poder Legislativo a nível federal, que é a instância que possui competência para legislar sobre direito indígena. Tal fato leva a pensar numa certa deficiência da participação indígena na formação da política nacional (DANTAS, 2008, p. 17). Por conseguinte, há que se alcançar um lugar para efetivar ainda mais a cidadania[50].
Destarte, os imperativos da cidadania devem abrir espaço para a participação em experiências políticas mais amplas, refletindo outros saberes e experiências. O direito à cultura como um espaço de auto-determinação, reemerge como um momento de afirmação democrática multicultural, que permite o alargamento da participação indígena nos assuntos políticos que afetam suas vidas. (MENESES, 2010, p. 230)
Contudo, a questão da participação não é algo tão simples que se resolva com o tão só estabelecimento de consentimento prévio para as obras de desenvolvimento em suas áreas, bem como, com posterior repartição de benefícios com a comunidade indígena. Tudo isso, bastaria se se limitasse ao paradigma metodológico do individualismo, do contratualismo, ou seja, do direito moderno ocidental. Surgem questões como, v.g., o acesso do conteúdo genético de uma tribo que não sabe se expressar na mesma língua, ou que não está ciente de todas as consequências desta decisão para seu futuro. Portanto, há ainda uma insuficiência conceitual e logística do sistema jurídico para alcançar a dimensão e a delicadeza de toda a questão indígena (SOUZA FILHO, 2006, p. 34).
Igualmente, é controversa a definição de como vem a ser composta essa comunidade apta à participação. Seria ela autodefinida ou seu elenco seria estabelecido administrativamente? Seria o conjunto de todas as comunidades indígenas do país ou só aquela a que será imediatamente afetada pela decisão?
Aderindo a uma linha do pensamento internacional, para participação da população civil, este trabalho perfilha, analogamente, o entendimento da legislação portuguesa, de que a participação aponta para um círculo amplo: não apenas os índios habitantes, mas os portadores de direitos econômicos e cidadãos preocupados com a área onde habitem.[51](CORREIA, 2010B, p. 391)
Nos dias atuais já discute-se inclusive o dever de informar com a antecedência suficiente, a realização de uma consulta futura, no afã de que as pessoas se informem e se prepararem devidamente.
Isto porque esta análise ética e política do democrático deve generalizar a todos o direito à informação veraz, adequada e livre das influências políticas e do mercado. Bem como, que a proposta inicial venha acompanhada ou possibilite a construção de alternativas.
Ademais, é importante se pensar na existência de um controle, após a primeira participação e aprovação do projeto. Ou seja, deve haver a possibilidade de rever o projeto, ou seja, monitorização dos projetos durante o seu curso, para rever novas formas de minimização dos impactos
Há também que se indagar até que ponto será levado em conta o resultado da participação dos indígenas em determinada concessão. Será que esta participação estaria limitada a um simples emitir de opinião, ou exige-se a implementação de suas decisões. Ou seja, o Estado tem o dever de ponderar (avaliar) as sugestões dos índios ou está vinculado ao seu cumprimento? Poderia o Judiciário intervir para obrigar o Estado a cumprir o voto dos índios?
Esse não é um tema pacífico, mas a guisa da legislação portuguesa, entende-se que o Estado, embora não esteja vinculado ao cumprimento da escolha popular, tem o dever de avaliar as opiniões e motivar a sua escolha, quando contrária ao indicado pelo povo. (CORREIA, 2010B, p. 311). Neste sentido o Judiciário poderia intervir para impor a realização de consulta, quando previsto legalmente, corrigir vícios na convocação e procedimento e de exigir a motivação da decisão discricionária administrativa, se oposta à popular. (ANDRADE, 2009, p. 30)
Questionamentos a parte, o certo é que estes não podem servir como bloqueio para paralisar os avanços na busca pela participação indígena nos rumos sociais.
CONCLUSÃO
A Constituição Federal Brasileira de 1988, influenciada pela principiologia dos direitos humanos, encerrou a política integracionista defendida pelas Constituições anteriores. Logo, é possível observar que, depois de quase quinhentos anos de integração forçada, os índios brasileiros vêm adquirindo o direito de continuarem a ser índios e pouco a pouco, resgatando a sua capacidade de autodeterminar os seus destinos.
Consoante a ideologia etnocêntrica, o índio era um sujeito incapaz de direitos, sendo apenas objeto de políticas públicas de assimilação ao contexto nacional. Nesse cenário, sua participação nos rumos do seu território era nula, restando apenas aguardar que fosse definitivamente integrado ao seio da sociedade não-índia. Nesse momento, cessaria seu tratamento jurídico excepcional, perdendo inclusive a proteção da posse sobre suas terras.
Contudo, com o avançar da história e da consciência política e jurídica, mas principalmente da insurgência dos movimentos indígenas, o pensamento pluriétnico passa a ganhar espaço. Logo, há uma crescente tendência de proteção à essa minoria, a partir da preservação da sua identidade, dos seus costumes, bem como do direito de participação nas políticas públicas e projetos de desenvolvimento econômico que influenciem às suas vidas.
Neste contexto, denunciam-se os interesses de conglomerados econômicos que visam se apropriar das terras indígenas, via de regra, constituídas de potenciais energéticos, minerais e turísticos. Essa questão ganha maior relevo, quando se tem em conta que a condução de um projeto que afete negativamente as terras indígenas, pode gerar desencadear efeitos comprometedores nos seus demais direitos básicos, tais quais, saúde, moradia, segurança, reprodução física e cultural e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Nada obstante, contemporaneamente a terra não é o valor único que demanda a participação dos povos indígenas. Surgem novos desafios para o Estado brasileiro na proteção dos direitos dos índios. Nessa conjuntura, o debate acerca da questão indígena ganhará novos ares, dentre eles, a convivência de tantas culturas diferentes em um mesmo território, a proteção de seus bens imateriais, a preservação do patrimônio genético e o combate à pirataria sobre os conhecimentos tradicionais.
Outro ponto, será o tratamento das terras indígenas em face do desenvolvimento nacional, o que demandará respeito ao meio ambiente e à cultura indígena. Nesse contexto, o Estado brasileiro deve atentar-se para a exploração dos minérios, das águas e das terras indígenas, feita por particulares. Hão, ainda, de ser feitos projetos de autosustentabilidade, pois não basta demarcar as terras se os índios não conseguirem sobreviver dignamente.
Um dos caminhos para melhor conduzir a política de proteção indígena, seria a introdução de uma avaliação estratégica, a nível do que ocorre com a política ambiental, mas em relação aos planos ou programas que possam afetar os direitos indígenas. Desta forma haveria uma forma mais completa de analisar os projetos e as suas consequências, periodicamente.
Portanto, repare que, para além da terra, muitos são os outros direitos que ainda se devem salvaguardar para a plena efetivação da dignidade humana da pessoa indígena, meta de difícil consecução, mas decorrente de inafastável compromisso constitucional.
Para isso, indispensável será a o mecanismo da participação dos indígenas na condução das políticas públicas e projetos de desenvolvimento econômico que afetem os seus destinos. A princípio, como um instrumento que materializa a luta histórica pelo direito de exercício de uma cidadania ativa, depois para conseguir reverter o quadro de espoliações que sofreu no passado e reescrever sua história na posição de sujeitos de direitos e não objetos de políticas públicas. Para isso, é imperioso que avancem os movimentos sociais indígenas, como forças essenciais pela luta pela sua autodeterminação, pelo direito de participação e pela conquista dos novos direitos que marcam o Século XXI.
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[1] Os conceitos e dados citados nesta Introdução serão melhor detalhados, bem como terão as suas fontes indicadas, mais a frente, no desenvolvimento deste trabalho.
[2] Optou-se, neste estudo, pela adoção dos termos indígena ou índio, para designar os habitantes pré-cabralianos do território brasileiro, haja vista a sua adoção pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 e pelos diplomas legislativos nacionais. Ainda que se vá estudar mais a frente, com mais profundidade o conceito de “indígena”, a título propedêutico, pode-se assim considerar todo aquele que se autoidentifica como tal, ou seja, enxerga-se como pertencente a uma comunidade indígena, distinta do restante da sociedade civil, com seus próprios costumes, mantendo certas tradições e por ela sendo aceito. Anota-se que não basta o autorreconhecimento para que uma pessoa tenha a sua inclusão na etnia indígena. A lei exige a chancela da própria comunidade indígena, e um estudo antropológico que comprove a continuidade com os povos nativos do país, como requisito indispensável, sem o qual não terá as prerrogativas previstas pela lei para a proteção institucional pelo governo federal.
[3] Não se reconheciam nos índios as mesmas características conhecidas na humanidade de então, a despeito dos índios vestirem-se de forma diferente dos colonizadores, de alimentarem-se de maneira própria e de não se comunicar em língua de tradição européia etc., o que resultava aos índios, um tratamento destoante da condição humana, como se ainda tivesse que atingir um certo caminho para se alcançar o estágio de civilização. (DANTAS, 2008, p. 39)
[4] Existem 653 (seiscentos e cinquenta e três) áreas oficialmente reconhecidas como “tradicionalmente ocupadas” pelos indígenas (que se difere de reservas e parques indígenas), compreendendo 12,5% (doze e meio por cento) do território nacional, o que equivale a 106.359.281 ha (cento e seis milhões, trezentos e cinquenta e nove mil e duzentos e oitenta e um hectares) de terras indígenas no Brasil. (ABRAMOVAY, 2011)
[5] Os índios brasileiros distribuem-se em 220 (duzentas e vinte) comunidades, que falam uma média de 170 (cento e setenta) línguas distintas. (ABRAMOVAY, 2011)
[6] Contemporaneamente, a população indígena no Brasil tem cerca de 730.000 (setecentos e trinta mil) pessoas, vivendo em aldeias, o que corresponde a 0,4 % (quatro décimos por cento) do povo brasileiro. Esse total atual, ainda que considerável, é pequeno se comparado à população indígena na época do descobrimento, que margeava os 5.000.000 (cinco milhões) de habitantes. (BRASIL, IBGE, 2000, p. 500)
[7] O etnocentrismo visava transformar o outro no eu, ou seja, subjugar a cultura que lhe era alheia, pois a tendência humana é achar que a cultura do grupo dominante seja sempre melhor. Dessa forma, havia um falso pensamento de hierarquia quando se constatavam diferenças culturais. (LEVI-STRAUSS, 1952, p. 87)
[8] Há diversas formas de se promover o direito à participação, sendo a “consulta” uma das suas formas mais simples.
[9] Trata-se de políticas públicas desenvolvidas por um grande número de órgãos públicos federais e estaduais, brasileiros.
[10] A despeito do tema, importante destacar a distinção realizada por Alexandra Aragão (2006, p. 31), entre Direito ecológico e Direito ambiental: o direito ambiental é o conjunto de normas e princípios jurídicos que regulam as relações jurídicas ambientalmente mediatizadas, isto é, as relações jurídicas que, tendo como sujeito as pessoas humanas, têm, como objeto ou como causa, componentes ambientais. (...) Já o Direito ecológico é um conjunto de normas e princípios jurídicos que regem os comportamentos relevantes dos homens na perspectiva da continuidade ou sustentabilidade ecológica. (...) Este direito não regula as relações intersubjetivas, mas regula antes, determinadas condutas humanas cujas consequências ecológicas justificam a sua orientação, guiados pela ideia de perpetuação ambiental.
[11] CF, “art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; [...]; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, panteológico, ecológico e científico.”
[12] CF, “art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
[13] CF, “art. 231, §1°- São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”
[14] Além disso, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial , Cultural e Natural, de 1972, da UNESCO estabelece que: “ o patrimônio natural e cultural faz parte dos bens inestimáveis e insubstituíveis não só de cada país, mas de toda a humanidade. A perda, por degradação ou desaparecimento, de qualquer desses bens eminentemente preciosos constitui um empobrecimento do patrimônio de todos o povos do mundo”.
[15] Ao Poder Público de todas as dimensões federativas, o que incumbe não é subestimar e, muito menos, hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de 'desenvolvimento nacional' tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena. (Grifado) (BRASIL, 2009, p.04)
[16] Klaus Bosselmann (2008, p. 142) assevera sobre o conceito de desenvolvimento ecologicamente sustentável que “não pode haver prosperidade econômica sem justiça social; não pode haver justiça social sem prosperidade econômica e ambas dentro dos limites da sustentabilidade ecológica”, pois defende “a obrigação de desenvolver a prosperidade econômica duradoura e a justiça social dentro dos limites da sustentabilidade ecológica”
[17] A ideologia etnocêntrica discriminava as demais culturas a partir dos valores da etnia predominante. O seu objetivo seria impor os valores da cultura majoritária às demais etnias, de forma a “integrar” os pequenos grupos e os seus costumes à sociedade brasileira derivada da civilização europeia[17]. (CUNHA , 1985, p. 50-91)
[18] A análise da concepção de índio na legislação imperial apoiar-se-á em estudos já realizados por alguns autores, destacadamente Manuel Miranda, Allípio Bandeira (1995, p. 29), Oliveira Sobrinho (1997, p. 93) e Clóvis Beviláqua (1992, p. 77).
[19] É farta a legislação colonial ratificando os direitos originários dos índios sobre as suas terras. Mesmo assim, muitos outros meios foram empregados na tentativa de violar o direito desses povos. (MENDES JÚNIOR, 1912, p. 74)
[20] Porém, mesmo depois de passado o auge do colonialismo político europeu, com a imposição do seu modelo de modernidade, ainda se observava a existência de um colonialismo interno. Logo, apesar da independência política, é reconhecível a realização de práticas coloniais exercidas pelo próprio Estado, dentro de seu território e sobre a sua população nativa. O período colonial moderno, praticado endogenamente, caracteriza-se, assim, pelos comportamentos de inferiorização de outros sistemas tradicionais de conhecimento, notadamente o da população indígena. Dentre as tradições negligenciadas pelo Direito formal, destacam-se as formas de regulação social indígenas. (WOLKMER, 1994, p. 61)
[21] O pronunciamento do jurista Clóvis Beviláqua (1921, p. 184) sobre o Dec.n°.8.072/1910 é emblemático dessa corrente de opinião: “Sou dos que, mais cordialmente, aplaudem a preoccupação philanthropica do Governo actual, por iniciativa do preclaro Sr. Rodolpho Miranda, de velar pela sorte dos nossos aborígenes, encaminhando a sua effectiva incorporação na sociedade brasileira, do qual são parte integrante, mas de cujo convívio, não obstante, se acham afastados, por circunstâncias, que é ocioso agora recordar”.
[22] Órgão integrante da Advocacia-Geral da União (função essencial da Justiça, conforme a Constituição Federal de 1988), que possui, dentre suas atribuições legais de representação jurídica do Estado e do Poder Executivo, a defesa dos interesses indígenas, coletivos, difusos e individuais indisponíveis ou homogêneos.
[23] Trata-se de uma interpretação que vê no Estatuto do índio, alguns artigos não recepcionados pela atual Constituição Federal de 1988, consoante se observa ipsis literis do parecer da PGF: “Nesse sentido, deve-se esquecer a classificação ultrapassada e não recepcionada de índios integrados e em vias de integração, pois a Constituição garante direitos a todos os índios, independentemente de fatores como ser alfabetizado em português, votar, ter relações com o resto da sociedade etc.” (FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO, 2011)
[24] A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) é uma pessoa jurídica de direito público interno, caracterizada como fundação autárquica, ligada ao Ministério da Justiça do Governo Federal brasileiro e que tem como função a promoção dos interesses indígenas no território brasileiro. (FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO, 2011)
[25] “Art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”
[26] Nada obstante esse progresso de pensamento quando ao significado da “tutela” em relação aos índios, para além da “proteção” ao indígena, deve-se partir para uma ideia de reconhecimento que os índios tem voz e assim, tem direito a decidirem sobre o seu destino, para que não se confunda com uma postura meramente paternalista. Pois, assim como há o “endangered space act”, pretende-se criar o “endangered people act”. Ora, proteger já pressupõe uma alusão a alguém em estado superior a ajudar alguém que ainda vai chegar ao mesmo nível, o que não é correto de se pensar. Portanto, fazendo uma analogia, com grupos sociais que se emanciparam, v.g., mulheres, não podem ser os homens a decidir o que é melhor para elas, ou protegê-las. Assim, também os índios devem ser aqueles que devem decidir o que é melhor para si próprios. Mas, não se pode obrigar que essa defesa de direitos pelos índios se faça pelos tribunais, pois isso é impor as soluções ocidentais, estranhas ao modo de regulação indígena. A decisão deve ser , preferencialmente, conforme suas próprias regras e métodos.
[27] Reproduzindo o trecho do documento da Presidência da República, temos que : “Os dispositivos atuais do Estatuto permanecem vigentes naquilo que não confrontem a Constituição. Por isso, sua leitura deve ser feita com a cautela de singularizar os aspectos que requerem adaptação ao novo texto constitucional. O aspecto mais importante é que a ótica da tutela de pessoas foi substituída pela da tutela de direitos”. (BRASIL, Planalto, 2011)
[28] A título de exemplo sobre alguns direitos dos índios tutelados pelo Estado, cite-se o direito de demarcação das terras indígenas, realizado pela FUNAI.
[29] Ainda que não seja objeto deste estudo, por demandar uma investigação mais aprofundada, é importante levantar aqui a questão da possibilidade de o Estado impor limites à atuação indígena, em sua área, levando-se em conta normas de ordem pública, como a proteção do ambiente, v.g., defesa da fauna e flora local. De outro lado, normas constitucionais que preveem o usufruto exclusivo dos índios e a preservação dos seus costumes podem ser levantados para justificar a sua forma tradicional de ocupar a terra e lidar com o ecossistema.
[30] A seguir, o art.1°, alínea “b”, item 2 da referida Convenção:
Artigo 1o. A presente Convenção aplica-se:
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for a sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2 A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção. (grifo proposital).
[31] O multiculturalismo é a expressão da afirmação e da luta pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouço institucional do Estado Democrático de Direito, mediante o reconhecimento dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e o reconhecimento das necessidades particulares dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos. (TRINDADE, 2003, p. 94)
[32] Preferiu-se, neste capítulo, demonstrar os diplomas normativos sobre direitos indígenas, por ordem cronológica, ao invés do critério hierárquico, porquanto, pretende-se dar uma visão de como se desenvolveu as normas para aferir a existência de uma evolução da autodeterminação indígena.
[33] “O Código Civil de 1916 considerava os índios relativamente incapazes, sujeitando-os, para protegê-los, ao regime tutelar estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessaria à medida que se fossem adaptando à civilização do país (art. 6°).” (GONÇALVES, 2003, p. 99). Ainda consoante Clóvis Beviláqua (1921, p. 28): “São nulos os atos praticados pelos índios e indivíduos civilizados, sem a intervenção do inspetor competente ou seu representante”.
[34] Projeto de Lei que ainda tramita no Congresso Nacional brasileiro para a substituição do Estatuto do Índio.
[35] Ademais, atente-se que uma vez que a Constituição Federal não exclui os índios da qualidade de cidadãos brasileiros, e todos estes, via de regra, tem capacidade civil, logo pelo simples fato de pertencerem a esta classificação, não se poderia por em dúvida a capacidade dos índios. Contudo, por questões históricas, e de disposições infraconstitucionais anteriores que punham em dúvida a capacidade civil indígena, recorre-se ao máximo de argumentos e dispositivos legais para se tirar qualquer obscuridade sobre a sua capacidade de exercer direitos.
[36] Via de regra, esse recurso ao exame antropológico para aferir a incapacidade indígena, deve ser invocado a seu benefício, nos casos em que a não compreensão dos atos e das leis sociais, possam resultar na sua imputação penal e na perda de seus interesses civis e patrimoniais. Esse fato não deve ser encarado como um atentado a sua dignidade, uma vez que para além da proteção individual do índio, se protege o patrimônio nacional, representado pelas terras indígenas e pela salvaguarda de um povo que tem o direito de não se prejudicar pelo desconhecimento de normas de conduta que não fazem parte de sua cultura.
[37] Este projeto de emenda para criação do novo Estatuto do Índio, poderá ser chamado por esse trabalho de “Novo Substitutivo” ou resumidamente de “Substitutivo”, haja vista, ser este último, o seu tratamento coloquial no Ministério da Justiça, FUNAI e Congresso Nacional.
[38] Os seminários regionais contavam com a presença dos índios e com alguns agentes técnicos, tais como antropólogos, professores e servidores públicos da FUNAI, CNPI e Procuradoria Federal (Advocacia-Geral da União - AGU), que auxiliavam aos índios, quando assim requeridos por estes. Nesses termos, este subscritor, foi indicado como representante da Procuradoria Federal nos seminários regionais de Fortaleza-CE, Recife-PE, Ilhéus-BA, Campo Grande-MS e Rio Branco-AC, tendo prestado colaboração jurídica a respeito dos temas ora discutidos.
[39] “Parágrafo único. A política disposta no caput deste artigo se aplica a todos os indígenas, indistintamente, independente da localidade em que se encontrem.”
[40] “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”
[41] Refere-se a que, nestes estatutos, ainda há dispositivos discriminatórios e sente-se falta de normas pluralistas ou estabelecedoras do direito de participação.
[42] “O substantivo 'índios' é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intraétnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva”. (BRASIL, 2009, p. 02)
[43] É importante anotar, contudo, que, consoante a Convenção 169 da OIT, art. 3º, os índios devem possuir uma ascendência pré-colombiana, manutenção de uma cultura peculiar, reconheçam-se como índios e sejam chancelados pela comunidade indígena, como tal.
[44] Segue o trecho do acórdão do STF sobre o caso Raposa Serra do Sol: “Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica”. (BRASIL, 2009, p. 04)
[45] Não se pode entregar a tomada de decisões apenas aos especialistas (nem do Direito, nem da Política, nem da Economia). Deve haver uma discussão que permita dizer o ponto de vista de cada profissional, em conjunto com a visão do senso comum. E é esse diálogo e interculturalidade que contribuem para o crescimento dos profissionais, da ciência e das soluções apresentadas `a sociedade. Portanto, os diversos conhecimentos e atores sociais devem ser convocados para a participação sobre o rumo da sociedade. (Santos, 2001, p.303)
[46] Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 298), quando fala em emancipação, não se refere ao instituto jurídico civil de conquista de capacidade civil, mas de uma condição humana mais cidadã, inclusiva e digna da pessoa perante a sociedade.
[47] Observe-se que nem sempre o desenvolvimento econômico ou turístico das áreas indígenas será o meio mais adequado para alcançar o fim da melhoria das condições de vida das comunidades locais, pois há que se atentar para os valores de cada comunidade e nas consequências dessas atividades para o futuro deste povos.
[48] A cultura ocidental pensa a pessoa no singular, como se fosse individual. Nesta linha de pensamento, o indivíduo seria a ideia de natureza humana, sobre o qual se funda a ciência e a concepção do Direito. Mas há outras formas de concebê-la. Assim, traz-se a ideia de que pessoa é um lugar plural, composto de relações que as produzem. A pessoa não se pensa por ela mesmo, mas por um feixe de relações que vem de fora. A pessoa individual é o locus de muitos outros “eus” que une vários indivíduos. A ideia de self é distribuída. As pessoas nem sempre são unitárias, delimitadas, mas pensadas como divisíveis. Há participação das pessoas uma nas outras e não só nas relações sociais. Assim, quase todos os direito dos índios recebe influencia do coletivo e neste reflete de volta. (GOMES, 2010, p. 29)
[49] Para Fernando Dantas (2008, p. 17), o sistema organizativo das tribos brasileiras, originalmente, não continha a figura de um líder que representasse toda a comunidade indígena, pois faz parte da tradição local que todos os índios manifestem-se e participem da decisão. Assim, a figura do cacique foi importada da cultura de outros países e tentada impor ao contexto brasileiro como forma de facilitar as negociações.
[50] Entenda-se cidadania como o direito das pessoas participarem dos destinos de seu país, quer seja através do voto direto (democracia direta), quer seja por outras formas de democracia indireta, como o referendo (realizado a posteriori) e a consulta popular ( realizada previamente) (SILVA, 2010, p. 83). No presente contexto, pretende-se destacar o direito de participação nas políticas públicas governamentais.
[51] É importante que a participação dos indígenas seja acompanhada de mecanismos essenciais, como direito de informação sobre detalhes do projeto.
Procurador Federal (atualmente Coordenador do Contencioso, Cobrança e Recuperação de Crédito do Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUíS DE FREITAS JúNIOR, . O caminhar dos índios brasileiros rumo à autodeterminação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 ago 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36329/o-caminhar-dos-indios-brasileiros-rumo-a-autodeterminacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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