O fundamento primeiro e último justificador do voto secreto não é outra coisa senão o “voto consciente”, indene de pressões externas que possam implicar algum vício da vontade. Assim, o representante popular desempenharia seu munus público de forma livre; é o purismo psíquico do sujeito cognoscente que garantiria a qualidade do voto e, por conseguinte, da representação. Nota-se, pois, que esse modelo político de representação pressupõe um outro, atinente à teoria do conhecimento, também comumente chamada de epistemologia. Contudo, este modelo político-epistemológico congressual não está atualizado com a filosofia da pós-modernidade. Com efeito, ele ainda está preso e arraigado ao esquema “sujeito-objeto”, sem qualquer preocupação, portanto, com a virada linguística (linguistc turn) que se vê na contemporaneidade.
Neste despretensioso artigo, abstrai-se de considerações positivo-dogmáticas do Direito, bem como não se servirá das várias teorias da democracia, não obstante sejam tais abordagens importantes. Tentar-se-á, aqui, desconstruir a concepção solipsista do legislador privilegiando uma análise filosófica, dentro de um contexto ontognoseológico ou epistêmico. Isso porque acredita-se que o mito do legislador infalível, que vota (secretamente) dentro de sua consciência psicologista, deve ceder lugar a uma concepção de legislador deliberativo, comunicante. É que a experiência tem demonstrado que, não raro, suas deliberações têm surtido resultados aberrantes, não só no caso de inconstitucionalidades, mas também em situações sócio-políticas nas quais tanto o senso-comum inserido na comunidade representada, como a comunidade qualificada, anseiam por uma solução parlamentar pontual e, não obstante, o legislador, aberrantemente, adota uma outra que se lhe opõe. Tal foi o caso recente da não cassação do mandado do Deputado Federal Natan Donadon.
O sujeito assujeitado: o paradigma da ontologia
Sem embargo de haver reflexões precedentes no contexto da filosofia grega ática, finque-se como ponto de partida a epistemologia de Platão, que distinguia as coisas sensíveis (apreendidas pelos sentidos, pelo corpo material) das coisas inteligíveis (as “Ideias”, formas perfeitas, apreensíveis pelo intelecto, pela alma; a realidade permanente e imutável “fora-da-caverna”). Quando se lê o “Timeu”, vê-se que o intelecto, que tem como objeto as formas inteligíveis, é oposto à opinião comum, que tem como objeto as coisas sensíveis percebidas pelo corpo. Tal oposição epistemológica ainda reflete outra, de natureza sociológica: na opinião comum todos os homens participam, enquanto que na intelecção são os deuses que participam e, entre os homens, uma pequena classe somente (para Platão, esta classe é a dos filósofos) (PRADEAU, 2011).
Assim, em Platão, o papel secundário da linguagem fica claro, quando ele diz que o real só é conhecido verdadeiramente em si (aneu ton onomaton) sem palavras, ou seja, sem mediação linguística. A linguagem não é, portanto, constitutiva da experiência humana do real. É um instrumento posterior, tendo uma função meramente designativa: designar com sons o intelectualmente percebido sem ela (OLIVEIRA, 1996). Em suma, Platão confia no pensamento em si mesmo, pretendendo superar o poder das palavras, retirando, dessarte, a possibilidade “demoníaca” da arte da argumentação dos sofistas (STRECK, 2009).
Também em Aristóteles o papel concebido à linguagem é posto a segundo plano. A palavra é apenas símbolo, e sua relação com a coisa não é por semelhança ou correspondência, mas somente por significação. A questão está na adequatio, ou seja, na conformidade entre a linguagem e o ser. Pressupõe, pois, uma ontologia, porque o estagirita pensava que as palavras só possuíam um sentido definido porque as coisas tinham uma essência. Haveria, assim, uma unidade objetiva que fundamenta a unidade de significação das palavras que recebe de Aristóteles o nome de essência ou aquilo que é. Em suma: é porque as coisas têm uma essência que as palavras têm um sentido (STRECK, 2009).
Contudo, e com Habermas, “apesar de todas as diferenças entre Platão e Aristóteles, a totalidade do pensamento metafísico obedece a Parmênides e toma como ponto de partida a questão do ser do ente – o que o torna ontológico” (1990, p. 22). Noutros termos, e agora com Márcio Tavares D’Amaral, tanto o idealismo platônico como o essencialismo realista aristotélico, embora discordantes entre muitos aspectos, convergem num ponto considerado por Platão e Aristóteles como fundamental: seja qual for a sua sede ou lugar de origem, a verdade está enquanto tal preservada para todo o sempre. O absoluto comanda o esforço filosófico da metafísica, do século IV a.C. ao século XIX da nossa era (D’AMARAL apud STRECK, 2009).
Daí em diante, no transcurso da história da filosofia, é possível afirmar que “a concepção central do pensamento metafísico ocidental pressupõe um conhecimento visto como um processo de adequação do olhar ao objeto, buscando a similitude entre pensamento e coisa, desvendando as essências próprias das coisas” (STRECK, 2009, p. 127).
O sujeito assujeitador: a filosofia da consciência
Grosso modo, portanto, na metafísica clássica os sentidos residiam nas coisas em si, que guardavam uma essência e por isso tinham um sentido. Ou seja: o sujeito estava assujeitado. Contudo, sabe-se que a subjetividade é uma construção moderna, e com ela superou-se o paradigma clássico-ontológico sobredito. E é com Guilherme de Ockam, com sua filosofia nominalista, que ele vem a enfatizar o sujeito em si, aduzindo, por exemplo, que a essência da lei está na decisão voluntária: o próprio sujeito, o indivíduo, torna-se legislador. Vê-se, então, o triunfo da vontade humana, que repercutirá no contrato social hobbesiano, em “O Leviatã”, no qual a vontade dos homens é vitoriosa sobre a barbárie. Tal abordagem será fundamental para a evolução da filosofia do direito. Agora não há mais essências e tampouco “essência geral do justo”. Ockam inaugura então uma abordagem partindo da subjetividade, um poder natural do indivíduo (STRECK, 2009).
Nada obstante, o esquema fundamental “sujeito-objeto” só vem a sofrer uma reviravolta decisiva com o cogito ergo sum de Descartes. Com efeito, foi com este filósofo que houve uma virada em direção à superação do essencialismo, passando pela ruptura com o realismo tradicional. Agora, surge a subjetividade assujeitadora das coisas, com o nascimento do sujeito que dominará a modernidade, atravessando o século XX e chegando no século XXI ainda forte e com repercussões – como na reserva de consciência traduzida no voto secreto parlamentar –, mormente nos confins do Direito (STRECK, 2009). Os sentidos não estão mais nas coisas em si, mas na mente; vem agora a “filosofia da consciência”. Assim é que, com Abbagnano, “o cogito ergo sum é a auto-evidência existencial do pensamento, a garantia que o pensamento (como Consciência) tem de sua própria existência” (ABBAGNANO, 2007, p. 219). E com Streck, “é o princípio epocal cartesiano, denominado cogito; e, na sequência, o eu transcendental kantiano, o absoluto hegeliano e o ápice da metafísica moderna: a vontade de poder (Wille Zur Macht) de Nietzsche, onde o traço fundamental da realidade é a vontade do poder. E toda correção deve ser ajustada em relação à vontade do poder”(STRECK, 2009, p. 136).
Essa concepção consciencialista – “filosofia da consciência” – repercutiu em vários campos do saber, e também no direito. A título de exemplo, não é arriscado falar do intenso ativismo judicial que se vê em terrae brasilis, onde, não raro, o “decido-conforme-minha-própria-consciência” é sustentado declaradamente como retórica performativa, inclusive em Ementas jurisprudenciais.[1]
Contudo, explique-se que a filosofia da consciência já entrou em franco declínio, como um dos sinais mais evidentes de uma nova colocação do problema do homem. Objetivamente, esse declínio da noção de filosofia da consciência na filosofia contemporânea deve-se às seguintes condições: (a) formação, em vários campos de pesquisa, de técnica de verificação e controle, às quais, mais do que ao testemunho íntimo, são confiadas as instâncias negativas e limitativas da crítica; (b) consequente desconfiança de certezas que se pretendem infalíveis e diretas, mas que são pessoais e incomunicáveis e muitas vezes apresentam oposições mútuas; (c) abandono definitivo do ideal de isolamento do homem em relação ao mundo, e da crença na estrutura solitária da realidade humana; portanto, abandono da compreensão do homem em seus modos de ser e em seus comportamentos efetivos abstraindo suas relações com as coisas naturais e com os outros homens e considerando-o fechado em si mesmo pelo círculo intransponível da consciência (ABBAGNANO, 2007).
A ideia de consciência como dado primário e irredutível do ser, juntamente com a da identificação moderna entre sujeito e consciência, já foram questionadas pelos mestres da suspeita, i.e., pelos pensadores – como Marx e Freud – que refutaram a centralidade explicativa de tal noção, vislumbrando na consciência o reflexo secundário e deformado de um conjunto de forças extraconscienciais. Assim é que, para Marx, a consciência é uma “superestrutura” da base econômico-social (materialismo histórico); para Freud, é a “fração” de uma realidade psíquica predominantemente inconsciente (ABBAGNANO, 2007).
De outro lado, a filosofia da consciência também sofreu severos ataques do behaviorismo, segundo o qual a única realidade psíquica passível de descrição objetiva (portanto, “científica”) é o comportamento publicamente observável dos indivíduos. E assim é que, para Skinner, os filósofos que especularam sobre a consciência teriam substancialmente “perdido tempo” (ABBAGNANO, 2007).
Mas não é só. Pensadores da corrente estruturalista também encamparam na invalidação epistemológica da filosofia da consciência[2], tendo como alguns nomes importantes os de Ferdinand de Saussure, Lévi-Strauss, Foucault, Lacan e Derrida.[3]
O sujeito como um “ser-aí-no-mundo”: a filosofia da linguagem
Como já é intuitivo por tudo quanto dito, no paradigma da filosofia da consciência a concepção vigente é a de que a linguagem é um mero e simples instrumento para a designação de entidades independentes ou para a transmissão de pensamentos pré-linguísticos, concebidos sem a intervenção da linguagem. Assim é que, somente depois de superar tal paradigma, reconhecendo-se que a linguagem assume um papel substancialmente constitutivo da relação do sujeito pensante com o mundo, é que é possível falar em uma mudança paradigmática, representado pelo rompimento com a filosofia da consciência pela filosofia da linguagem (STRECK, 2009).
Esse rompimento tem sido designado como viragem linguística, giro linguístico, guinada linguística, ou, ainda, reviravolta linguística.[4] Esse giro, liberta a filosofia do fundamentum que, na modernidade, passara da essência para a consciência, como visto acima. Nele, descobre-se que, para além do elemento lógico-analítico, pressupõe-se sempre uma dimensão de caráter prático-pragmático.
Correndo-se o risco de simplificar, pode-se afirmar com Streck que, no linguistic turn, a invasão que a linguagem promove no campo da filosofia transfere o próprio conhecimento para o âmbito da linguagem, onde o mundo se descortina. É na linguagem que se dá a ação, que se dá o sentido, e não mais na consciência de si do pensamento pensante. O sujeito surge na e pela linguagem, donde se pode dizer que o que morre é a subjetividade assujeitadora, e não o sujeito da relação de objetos (STRECK, 2013).
Na tradição metafísica, como sobredito, “houve uma sucessão de conceitos centrais não-empíricos como ideia em Platão, ousía em Aristóteles, esse em Santo Tomás de Aquino, cogito ergo sum em Descartes, sujeito transcendental em Kant, o logos em Hegel, a vontade de poder em Nietzsche. O papel deles era garantir algum tipo de fundamento para a inteligibilidade do real” (PECORARO et al., 2008, p. 291). Heidegger criticou esses modos de fundamentação como sendo modos de entificação do ser das diversas épocas da metafísica e os denominou de “princípios epocais”. Então, Heidegger a eles opõe um novo modo de fundação: o ser-em, ser-no-mundo e ser-aí. E assim o conceito de mundo deveria tomar o lugar de nôus, anima, spiritus, ratio, consciência, representação (PECORARO, 2008).
Com esse novo modo de abordar a condição de possibilidade do conhecimento a partir do mundo, Heidegger introduziu um modo finito de fundar na filosofia. É um modo finito de fundar a razão, que é o fundamento da tradição filosófica. Ao lado do ser, do ser do ente de Aristóteles, Heidegger introduz um novo nível, o Dasein, o ser-aí. Destarde, a analítica existencial introduz um modo não-clássico de transcendental, de condição de possibilidade. Os dois existenciais do ser-aí: afecção (sentimento de situação) e compreensão são introduzidos pela fenomenologia hermenêutica como aquilo que antecipa a sensibilidade e a inteligibilidade da tradição. E, assim, o conhecimento humano pressupõe o ser-em, o ser-no-mundo, as estruturas existenciais do ser-aí (PECORARO, 2008).
Citando Carlos Nieto Blanco, Lênio Streck (2009) aponta algumas premissas sobre as quais a viragem linguística se assenta:
a) o conhecimento ocorre na linguagem: qualquer discurso científico possui em comum com os demais a sua natureza linguística;
b) é na linguagem que há a surgência do mundo: é nela que o mundo se desvela; pela linguagem o mundo nos aparece e se dá enquanto mundo. Este mundo que encontramos na linguagem nos distancia das inconsistências de uma filosofia da consciência;
c) é na linguagem que o sujeito surge-aparece-ocorre: como sujeito que fala, como sujeito da enunciação, e como sujeito que entende a linguagem dos demais;
d) é na linguagem que ocorre a ação: além da vocação representativa, declarativa ou constatativa, a linguagem também tem vocação realizativa, que a conecta com a prática, assim como as práticas e os interesses com a linguagem;
e) é na linguagem que se dá o sentido: o sentido do que há. A uma, porque a linguagem tem necessariamente um componente significativo para uma comunidade de usuários e sem ela não funciona; a duas, porque a linguagem pode criar novos mundos na medida em que abre novos caminhos ao sentido. Nomear, adjetivar é, de certa forma, criar.
Ainda com Blanco, referendado por Streck (2009), o giro linguístico, em última instância, acaba constituindo o resultado de uma quádrupla redução:
1) redução linguística da mente: filosofia analítica no início do século XX. De onde anteriormente só se falava em operações mentais ou representações conceituais, fala-se da natureza linguística;
2) redução linguística da consciência: a linguagem abre o mundo para o homem, ela abre a história como história da cultura, cuja textura é linguística;
3) redução linguística do ser: partir de Gadamer, o ser é linguístico;
4) redução linguística da razão: ao aceitar os pressupostos de uma concepção de linguagem orientada ao entendimento, a razão converte-se em razão dialógica, em razão comunicativa, em razão linguística plena.
Modo geral, com a filosofia da linguagem o sentido não está nem no ente em si (filosofia ontológica) e não mais na consciência (filosofia mentalista), mas na linguagem, como algo que produzimos e que é condição de nossa possibilidade de estarmos no mundo. Não há mais um sujeito solitário, assujeitador das coisas; agora há um mundo, uma comunidade que antecipa qualquer constituição de sujeito e de sentido.
A linguagem tem seu verdadeiro ser apenas no diálogo, ou seja, no exercício do entendimento; linguagem, homem e mundo se co-pertencem: o caráter humano originário da linguagem significa a linguisticidade originária do humano ser-no-mundo; a linguagem é o verdadeiro traço de nossa finitude; somos sempre já antecipados, em todo nosso pensar e conhecer, pela interpretação linguística do mundo, e crescer nela significa crescer no mundo; não estamos fechados no nosso mundo linguístico: porque constituído linguisticamente, cada um desses mundos é aberto para qualquer possível ampliação da sua própria concepção do mundo, e consequentemente também acessível aos outros (GADAMER apud ABBAGNANO, 2007).
O legislador solipsista e seu voto secreto: ainda há lugar para ele no atual contexto de linguistic turn?
A reserva de consciência, fundante do voto secreto parlamentar, deita raízes gnoseológicas diretas na teoria contratualista de matriz hobbesiana. Por via oblíqua, como esta última centrou seus fundamentos na vontade do sujeito, formadora do contrato social e, conseguintemente, integradora da vontade do Estado, tal teoria deita raízes mais profundas na filosofia da consciência, de inegável importância para o surgimento do Estado Moderno.[5] Logo, a reserva de consciência parlamentar constitui reminiscência na filosofia da consciência.
O voto secreto parlamentar só pode justificar-se no mito de infalibilidade do legislador, cuja ratio reside na crença de qualidade do voto a partir da pureza subjetiva do sujeito. Em regimes democrático-representativos, soa no mínimo estranho que o representante da comunidade assim se situe, porque o seu solipsismo, antes de qualificar o seu papel representativo, na verdade o soçobra, porque abre um abismo entre representante e representado, rompendo com qualquer dialética dialógica e construção linguisticamente intersubjetiva de sentidos.
O solipsismo legiferante sustenta um insulamento do sujeito parlamentar que, sob o olhar da filosofia da linguagem, não se sustenta. O parlamentar não pode ser tido mais como um ser-pensante-por-si-mesmo. O voto secreto nas deliberações parlamentares cria um déficit substancial num contexto de democracia discursivamente (ou linguisticamente) deliberativa. Ao invés de garantir qualidade ao processo decisório parlamentar, o insulamento subjetivo, concretizado na praxis parlamentar pelo voto secreto, na verdade a desvirtua, porque implica o rompimento com o diálogo, seja entre os integrantes parlamentares entre si, seja entre estes e a comunidade (representada).
Ora, à luz da hermenêutica filosófica gadameriana, que é uma das abordagens da filosofia da linguagem, pode-se dizer que o diálogo, enquanto jogo dialético aberto, mais que uma disputa estéril e abstrata sobre conceitos, compromete aqueles que nele tomam parte. O diálogo hermenêutico leva seus participantes a se comprometerem uns com os outros à medida que quem pergunta se revela, se descobre e tem de disponibilizar-se a escutar aquilo que o outro tem a lhe dizer. Por parte de quem é perguntado, o diálogo exige um compromisso de atenção e sensibilidade, seja para com quem lhe pergunta, seja em relação ao “espírito dos tempos”, seja com a “coisa” sobre a qual se dialoga. Escutar o que o outro tem a dizer é condição do acontecer do diálogo hermenêutico (PECORARO, 2009).
É somente mediante uma dialética dialógica, através da linguagem aberta intersubjetiva, que se torna possível um intercâmbio de expectativas e aspirações. Quando o sujeito legiferante se fecha em sua consciência solipsista, rompe-se com qualquer condição de possibilidade de intercâmbio, de troca. Além de não constituir uma garantia de qualidade do voto, i.e., de maximização de um acerto ou melhora dos resultados decisórios, seu “segredo procedural” ainda desvela o grave prejuízo de déficit republicano de representatividade contínua durante o exercício do mandato.
O legislador é um sujeito político situado num mundo vivido já definido e carregado de significado (linguagem!), e por isso ele também é um ser-aí, um ser-em, um ser-no-mundo. Como tal, seus atos de fala (voto) deveriam abrir-se (re)publica(na)mente, expondo-se à crítica, às expectativas e frustrações de todos os envolvidos no mesmo mundo compartilhado de significados.
O caso recente do Deputado Federal Donadon é apenas um caso pontual que evidencia bem a anomalia jurídico-político-funcional que o solipsismo parlamentar é capaz de produzir. Mesmo após ter sido penalmente condenado pelo Pretório Excelso, 131 parlamentares votaram (secretamente, solipsisticamente, assujeitadoramente, “conscientemente” (sic)) pela manutenção de seu mandato. Esse resultado (racional?) certamente não constituía a real expectativa da comunidade (representada), na qual já existia uma realidade concreta de significados relativamente à continuidade do mandato parlamentar, e isto dispensa maiores digressões.
Poder-se-ia objetar dizendo que a decisão dos 131 parlamentares está imbuída de conveniência e oportunidade, elementos constituintes da discricionariedade legiferante. Contudo, lembre-se que a presente análise, puramente filosófica, abstrai-se de premissas positivo-dogmáticas ou de teorias da democracia. Nesse sentido, pode-se devolver a objeção dizendo que a própria decisão parlamentar individual sobre o conveniente e oportuno poderia ser diversa no caso em questão se o solipsismo (voto secreto) não lhe salvaguardasse. Pelo revés, se uma verdadeira filosofia da linguagem, nos termos acima delineados, fundasse a atividade deliberativa congressual, i.e., se houvesse uma efetiva dialética dialógica, aberta e discursiva, atualizada, portanto, pela reviravolta linguístico-pragmática da filosofia e do direito, concretizada pelo sistema deliberativo do voto não-secreto, a razão comunicativa pela linguagem compartilhada (ainda que mediante a canalização pública de um simples “sim” ou um “não” sobre a perda do mandato), o resultado poderia ser diferente, mais consentâneo com os anseios da comunidade-do-mundo-vivido, no qual o parlamentar também se situa.
BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
OLIVEIRA, MAnfredo Araújo. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996.
PECORARO, Rossano (org). Os filósofos – Clássicos da filosofia. Vol. II, Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2008.
____________. Os filósofos – Clássicos da filosofia. Vol. III, Petrópoles, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009.
PRADEAU, Jean-François (org.). História da filosofia. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2011.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
____________. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
[1] Nesse sentido, ver STRECK, Lênio Luis, O que é isto – decido conforme minha consciência?, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, que faz fundada e contundente crítica ao vigente solipsismo judicial brasileiro, em manifesta defasagem no atual contexto filosófico de linguistic turn.
[2] O estruturalismo é a corrente filosófica que se desenvolve na França a partir da segunda metade do século XX, em oposição ao existencialismo, historicismo e ao humanism em geral, reduzindo o homem a mero fruto das estruturas sociais. Trata-se, pois, de uma desumanização do homem, fundada na tentative de conferir rigor científico às ciências sociais, com lastro nos avanços obtidos na psicologia e na linguística. As estruturas (conjunto de leis que definem um âmbito de objetos, estabelecendo as relações entre eles, seu comportamento e desenvolvimento) substituem o homem como sujeito da história, afastando a crença na liberdade humana e destacando o papel do inconsciente no agir (onde residiriam incoadas as estruturas sociais): seriam os condicionamnetos sociais (não existiria mais o “ser”, mas a “relação”; não existiria mais o “sujeito”, mas apenas a “estrutura” (MARTINS FILHO, 2004).
[3] Eventual ausência de um estruturalista notável é fruto mais das limitações do autor deste artigo do que uma deliberada omissão.
[4] Lênio Streck prefere chamar de “giro ontológico-linguístico”, para diferenciá-lo das pretensões analíticas, principalmente do neopositivismo lógico.
[5] Não é por acaso que a obra de ruptura que fundamenta o Estado Moderno tenha sido escrita por Thomas Hobbes, um nominalista, o que faz dele o primeiro positivista da modernidade.
Procurador Federal da AGU - Advocacia Geral da União. Mestrando em Direito. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Administrativo. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Ciências Criminais.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Jorge Andersson Vasconcelos. O legislador solipsista e seu voto secreto: um atraso filosófico? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 set 2013, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36499/o-legislador-solipsista-e-seu-voto-secreto-um-atraso-filosofico. Acesso em: 22 dez 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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