Introdução
A doação de bens móveis e imóveis é um dos contratos administrativos que se celebra no dia-a-dia da Administração Pública para consecução das finalidades atribuídas a cada órgão público. Esse tipo de contrato serve à realização de variados interesses da Administração, que vão, por exemplo, desde o simples desfazimento de bens móveis inservíveis até a realização de projetos sociais de habitação.
Ocorre que a Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições – LE) estabelece, dentre outras normas voltadas para a realização de eleições, condutas vedadas aos agentes públicos quando da realização desses eventos. Dentre essas condutas está a distribuição gratuita de bens ou, em termos jurídicos mais precisos, as doações administrativas.
O objetivo deste estudo é analisar o sentido e alcance dessa vedação segundo o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a fim de orientar os agentes públicos sobre a forma de proceder nos anos de eleição, que, em nosso País, ocorrem a cada dois anos. Portanto, a cada dois anos o gestor público tem que lidar com uma série de restrições, administrando os órgãos e entidades com mais cautela do que aquela ordinariamente exigível.
As doações públicas e as eleições
As doações públicas são espécies de alienação e, como tal, sujeitam-se aos procedimentos de licitação ou sua dispensa aplicáveis a todo e qualquer contrato administrativo (art. 37, XXI, da Constituição Federal – CF). Esse tipo de contrato foi tratado, dentre outras normas, pela Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos – LLC), que a propósito veicula um rol bastante extenso de casos de licitação dispensada (art. 17).
Trata-se de espécie de contrato bastante comum, utilizado pela Administração para realizar diversos tipos de política pública, como regularização fundiária de interesse social (art. 17, I, h, LLC), auxiliar a realização de atividades de outro ente público (art. 17, I, b, LLC), dentre outras atividades de interesse público reconhecidas pela Administração.
Quando da realização de eleições, no entanto, o controle sobre os atos e contratos administrativos realizados aumenta, com vistas a preservar a igualdade entre os candidatos. Essas restrições e controles visam evitar que o atual governante utilize-se do poder político que detém em prejuízo de outro candidato, com finalidade eleitoreira.
O tema das condutas vedadas em período de eleições insere-se nesse contexto. O poder de livre administração do gestor fica limitado pelo que dispõe o art. 73 da LE, que na sua cabeça assim preceitua: “Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: [...]” (sublinhamos). Em oito incisos e treze parágrafos, a referida Lei traça a espinha dorsal do tema referente às condutas vedadas, definindo o que entende por agente público (§1º), delimitando o âmbito de aplicação de algumas condutas vedadas (§§2º e 3º) e especificando outras questões.
Dentre essas condutas vedadas está a distribuição gratuita de bens, prevista no §10, in verbis:
§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)
Não há dúvida de que a doação é uma das formas de “distribuição gratuita de bens” a que se refere a vedação. Sendo assim, os contratos administrativos de doação submetem-se à citada restrição eleitoral, mas é preciso saber como interpretá-la: seria aplicável a toda e qualquer doação, inclusive entre entes públicos? Somente estariam vedadas aquelas doações capazes de influenciar o pleito? A vedação atingiria a doação com encargo?
Para esclarecer essas questões é imprescindível recorrer à jurisprudência do TSE sobre o assunto, pois, como já reconheceu o próprio Supremo Tribunal Federal (STF):
Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos.
(Trecho da Ementa do RE 637485, Relator Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-095 DIVULG 20-05-2013 PUBLIC 21-05-2013 – destaques no original)
O entendimento da doutrina e do TSE sobre a vedação do §10 do art. 73 da LE
A doutrina entende como abuso de poder simples aquelas condutas cujas sanções são aplicáveis independentemente do potencial de afetar a normalidade do pleito; quando se faz necessária a apuração acerca do real poder de influenciar o pleito, fala-se então em abuso de poder político ou de autoridade, cujas sanções são mais graves (Castro, 2008: 347-356), como será visto mais adiante.
Se a conduta vedada objeto deste estudo for entendida como abuso de poder simples, tem-se por vedada independente de potencialidade de causar anormalidade no pleito. Assim, mesmo a doação de um ente público a outro, por exemplo, estaria proibida.
Algumas das condutas vedadas são temporais, ficando proibidas apenas em certo e determinado período (art. 73, V e VI, por exemplo); outras são restritas a determinado espaço, vigorando em relação a certo âmbito territorial ou administrativo (art. 73, V e VIII, e §3º). A conduta vedada prevista no §10 deve ser lida de forma autônoma, não se vinculando a nenhuma outra, dada a previsão em dispositivo apartado. Dessa forma, estende-se por todo o “ano em que se realizar eleição”, no caso, todo o ano civil, não apenas entre os meses que começam as campanhas e a realização do segundo turno; além disso, não se limita à circunscrição do pleito ou à esfera administrativa em que ocorrem as eleições, porque o dispositivo não fez essa limitação.
Outro ponto a ser investigado consiste em saber se a prática do ilícito ocorre só quando haja potencialidade de influenciar o pleito (abuso de poder político, de autoridade ou econômico) ou se a simples realização da conduta vedada (abuso de poder simples) já induz aplicação de penalidade. Nesse aspecto, cabe registrar uma mudança no entendimento do TSE ocorrida em 2010, o qual vem sendo mantido até então.
Inicialmente, a visão do TSE era de que a punição pela prática de conduta vedada prevista na LE, a exemplo da distribuição gratuita de bens, desafiava a comprovação de que teria havido influência no pleito, a ponto de beneficiar um candidato em detrimento de outro. Essa posição pode ser resumida na seguinte ementa:
RECURSO. ESPECIAL. REEXAME DE PROVAS. INVIABILIDADE. SÚMULA 279 DO STF. SE O TRIBUNAL REGIONAL CONCLUIU PELA INEXISTÊNCIA DE PROVAS DA AUTORIA E INOCORRÊNCIA DE PROPAGANDA INSTITUCIONAL, SERIA INDISPENSÁVEL REAPRECIAR A MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA PARA SE CONCLUIR DE MODO DIVERSO, COISA INVIÁVEL EM RECURSO ESPECIAL. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA. CASSAÇÃO DE REGISTRO OU DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. MULTA. POTENCIALIDADE DE A CONDUTA INTERFERIR NO RESULTADO DO PLEITO. IMPRESCINDIBILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO. HOJE É FIRME O ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL NO SENTIDO DE QUE A EXISTÊNCIA DE POTENCIALIDADE PARA DESEQUILIBRAR O RESULTADO DO PLEITO É REQUISITO INDISPENSÁVEL PARA RECONHECIMENTO DA PRÁTICA DE CONDUTA VEDADA.
(AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 25075, Acórdão de 27/11/2007, Relator(a) Min. ANTONIO CEZAR PELUSO, Publicação: DJ - Diário de justiça, Volume 1, Data 12/12/2007, Página 192 – sublinhamos)
A mudança de entendimento fica clara no seguinte julgado, que separa dois momentos distintos quando da apuração da conduta vedada: primeiro, seria verificada de forma objetiva a prática do ilícito e só isso bastaria para aplicação de sanção; só no segundo momento deveria ser apurada a eventual potencialidade de influenciar no pleito, sendo essa potencialidade mero parâmetro para aplicação da pena:
ELEIÇÕES 2010. CONDUTA VEDADA. USO DE BENS E SERVIÇOS. MULTA.
1. O exame das condutas vedadas previstas no art. 73 da Lei das Eleições deve ser feito em dois momentos. Primeiro, verifica-se se o fato se enquadra nas hipóteses previstas, que, por definição legal, são "tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais". Nesse momento, não cabe indagar sobre a potencialidade do fato.
2. Caracterizada a infração às hipóteses do art. 73 da Lei 9.504/97, é necessário verificar, de acordo com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, qual a sanção que deve ser aplicada. Nesse exame, cabe ao Judiciário dosar a multa prevista no § 4º do mencionado art. 73, de acordo com a capacidade econômica do infrator, a gravidade da conduta e a repercussão que o fato atingiu. Em caso extremo, a sanção pode alcançar o registro ou o diploma do candidato beneficiado, na forma do § 5º do referido artigo.
3. Representação julgada procedente.
(Representação nº 295986, Acórdão de 21/10/2010, Relator(a) Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 220, Data 17/11/2010, Página 15 - destacamos)
Esse entendimento é mantido até hoje, como se constata de recente julgado, a saber:
REPRESENTAÇÃO. PREFEITO E VICE-PREFEITO. PRETENSA OCORRÊNCIA DE CONDUTA VEDADA A AGENTE PÚBLICO. [...]. ART. 73, INCISO V, DA LEI Nº 9.504/97. CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES NO PERÍODO DE TRÊS MESES QUE ANTECEDE O PLEITO ELEITORAL. CONFIGURAÇÃO. MERA PRÁTICA DA CONDUTA. DESNECESSÁRIO INDAGAR A POTENCIALIDADE LESIVA. FIXAÇÃO DA REPRIMENDA. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
[...]
6. A configuração das condutas vedadas prescritas no art. 73 da Lei nº 9.504/97 se dá com a mera prática de atos, desde que esses se subsumam às hipóteses ali elencadas, porque tais condutas, por presunção legal, são tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre os candidatos no pleito eleitoral, sendo desnecessário comprovar-lhes a potencialidade lesiva.
7. Nos termos da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, caracterizada a infringência ao art. 73 da Lei das Eleições, é preciso fixar, com base na observação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, a reprimenda adequada a ser aplicada ao caso concreto.
[...].
(Recurso Especial Eleitoral nº 45060, Acórdão de 26/09/2013, Relator(a) Min. LAURITA HILÁRIO VAZ, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 203, Data 22/10/2013, Página 55/56 - destacamos)
Especificamente em relação à conduta vedada objeto do presente estudo, o TSE não excepciona o entendimento adotado, a saber:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CONDUTA VEDADA. DISTRIBUIÇÃO DE BENS, VALORES E BENEFÍCIOS EM PERÍODO VEDADO. RESSALVA DO ART. 73, § 10, DA LEI Nº 9.504/97. AUTORIZAÇÃO EM LEI E EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA NO EXERCÍCIO ANTERIOR. REQUISITOS. MULTA. RAZOABILIDADE. AGRAVOS PARCIALMENTE PROVIDOS.
1. A instituição de programa social mediante decreto, ou por meio de lei, mas sem execução orçamentária no ano anterior ao ano eleitoral não atende à ressalva prevista no art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/97.
2. Para a configuração da conduta vedada do art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/97 não é preciso demonstrar caráter eleitoreiro ou promoção pessoal do agente público, bastando a prática do ato ilícito. Precedente.
[...]
(Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 36026, Acórdão de 31/03/2011, Relator(a) Min. ALDIR GUIMARÃES PASSARINHO JUNIOR, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 84, Data 05/05/2011, Página 47 - destacamos)
Parece claro que, para o TSE, não importa se a doação tem a potencialidade de influenciar o pleito, bastando a prática da distribuição gratuita de bem para a aplicação da sanção. Para o Tribunal, também “é desnecessária a verificação de intuito eleitoreiro” (Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 71990, Acórdão de 04/08/2011, Relator(a) Min. MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 22/08/2011, Página 18), não cabendo ao agente público alegar eventual finalidade social, pública ou qualquer outra, pois independente da finalidade (pessoal, política, eleitoreira ou social), haverá prática de ato ilícito.
A eventual influência no pleito será objeto de avaliação quando da aplicação de penalidade, impondo-se uma sanção mais grave quando a conduta praticada tenha influenciado no resultado das eleições: “somente se exige a potencialidade do fato naqueles casos mais graves, em que se cogita da cassação do registro ou do diploma” (Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 12165, Acórdão de 19/08/2010, Relator(a) Min. ARNALDO VERSIANI LEITE SOARES, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 01/10/2010, Página 32-33).
Para não restar dúvida, colaciona-se excerto bastante claro no que toca à distribuição gratuita de bens em ano eleitoral e a prática de conduta vedada: “[...] 4. Mesmo que a distribuição de bens não tenha caráter eleitoreiro, incide o § 10 do art. 73 da Lei das Eleições, visto que ficou provada a distribuição gratuita de bens sem que se pudesse enquadrar tal entrega de benesses na exceção prevista no dispositivo legal” (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 35590, Acórdão de 29/04/2010, Relator(a) Min. ARNALDO VERSIANI LEITE SOARES, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 24/05/2010, Página 57/58 – destacamos).
No grau de penalidades previstas na LE, arrola-se desde a suspensão da conduta vedada até a cassação do registro ou diploma, passando pela aplicação de multa (art. 73, §§4º e 5º). À parte o ilícito eleitoral, a Lei arrola ainda a possibilidade de configuração de ato de improbidade administrativa (art. 73, §7º), denominando como passíveis de sofrer as sanções os “agentes públicos responsáveis pelas condutas vedadas e aos partidos, coligações e candidatos que delas se beneficiarem” (art. 73, §8º - sublinhamos).
Do contexto, observa-se que a pena mais leve (suspensão da conduta) afigura-se talvez a mais temerária para o donatário (aquele que recebe o bem). Suspensa a doação, fica o donatário, ainda que de boa-fé, sem poder exercer os plenos poderes inerentes à propriedade, quiçá até prejudicando o cumprimento finalidade pretendida com a doação.
Por fim, se considerado que a conduta vedada prevista no inciso IV do art. 73 da LE (fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público) está diretamente ligada ao ato de doação e afigura-se umas das mais severamente punidas pela Lei, pode-se afirmar que o ato de receber o bem doado só não é mais grave do que o praticado pelo doador ou pela coligação/partido/candidato que tirarem proveito eleitoral da doação.
Vale registrar que o donatário não pratica a conduta vedada, mas apenas participa dela. Explique-se: a conduta é “distribuir gratuitamente bens”, desse modo, quem recebe não pratica a conduta vedada, mas permite que ela aconteça.
A doação entre órgãos públicos e o entendimento do TSE como conduta vedada
Pelo entendimento do TSE e pela abrangência da aplicação de penalidades, constata-se que até mesmo numa transferência interadministrativa (Moreira & Guimarães, 2012: 362-363), ou seja, na doação de bens de um órgão público para outro, haveria prática de conduta vedada. Nesse caso, a despeito de não haver intuito eleitoreiro nem capacidade de influenciar no pleito, entende-se simplesmente que é uma distribuição gratuita de bens e que não figura nas exceções do §10 do art. 73 da LE.
Esse entendimento ficou consignado em caso paradigmático, em resposta a consulta do Instituto Brasileiro do Meio-Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Questionou-se o Tribunal se a doação de bens apreendidos, ato decorrente de comando legal (art. 25, Lei nº 9.605/98), seja para órgãos públicos ou privados, estaria vedada. Não obstante mencionada a importância dessas doações, o mandamento legal para fazê-lo e tudo o mais, o TSE foi peremptório: mesmo nesses casos, não constatada nenhuma das ressalvas do §10 do art. 73 da LE, a vedação incidiria e o IBAMA não poderia realizar as doações, ainda que fossem os bens perecíveis:
DOAÇÃO DE BENS - PODER PÚBLICO. A teor do § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/1997, é proibida a doação de bens em época de eleições, não cabendo distinção quando envolvidos perecíveis.
(Petição nº 100080, Acórdão de 20/09/2011, Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 214, Data 11/11/2011, Página 54)
A tendência da composição atual do TSE é de tal modo restritiva que entendeu ser vedada inclusive a proposição de lei com vistas a conceder benefício fiscal:
DÍVIDA ATIVA DO MUNICÍPIO - BENEFÍCIOS FISCAIS - ANO DAS ELEIÇÕES. A norma do § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/1997 é obstáculo a ter-se, no ano das eleições, o implemento de benefício fiscal referente à dívida ativa do Município bem como o encaminhamento à Câmara de Vereadores de projeto de lei, no aludido período, objetivando a previsão normativa voltada a favorecer inadimplentes.
(Consulta nº 153169, Acórdão de 20/09/2011, Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 207, Data 28/10/2011, Página 81)
A doação de bens entre órgãos públicos no ano eleitoral (transferência de propriedade gratuita interadministrativa), portanto, poderá dar ensejo à aplicação de penalidades (suspensão do ato, multa, cassação do registro ou do diploma). Essas penalidades, vale destacar, serão passíveis de imputação não só à coligação, partido ou candidato, mas também a particulares que tenham participado do ato (Ramayana, 2011: 528-529 e Cândido, 2008: 626).
A única forma de doação que se entende possível para não incidir na conduta vedada seria a doação modal (ou com encargo), caso em que subsiste uma obrigação a ser cumprida pelo donatário. Em razão disso, afastando-se a alegação de que a distribuição seria gratuita.
Não se desconhece a divergência doutrinária sobre a classificação do contrato de doação com encargo (modal) como gratuito ou oneroso (Fiuza, 2003: 406-407). No caso da doação com encargo por parte de órgão público, há certa tendência à onerosidade da doação, a teor do que dispõe o §4º do art. 17 da LLC:
§ 4º A doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente os encargos, o prazo de seu cumprimento e cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, sendo dispensada a licitação no caso de interesse público devidamente justificado; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
A propósito, confira-se a opinião de Justen Filho acerca do tema:
Uma hipótese peculiar, objeto de tratamento específico no §4º, é a doação com encargo. A opção por essa alternativa dependerá da relevância do encargo para consecução dos interesses coletivos e supraindividuais. Em determinadas hipóteses, a doação com encargo apresentará regime jurídico próprio, inclusive com a obrigatoriedade de licitação.
Assim, por exemplo, poderá ser do interesse estatal a construção de um certo edifício em determinada área. Poderá surgir como solução a doação de imóvel com encargo para o donatário promover a edificação. Essa é uma hipótese em que a doação deverá ser antecedida de licitação, sob pena de infringência do princípio da isonomia. Em outras hipóteses, porém, o encargo assumirá relevância de outra natureza. A doação poderá ter em vista a situação do donatário ou sua atividade de interesse social. Nesse caso, não caberá licitação. Assim, por exemplo, uma entidade assistencial poderá receber doação de bens gravada com determinados encargos. A situação se subsumiria à alínea “a” do inc. II, mesmo existindo o encargo. (2010: 242)
Percebe-se, assim, que a LLC trata a doação com encargo como negócio aparentemente oneroso, obrigando inclusive a realização de licitação para melhor escolher o donatário em função da execução do encargo.
Há um precedente nesse sentido do TRE/SP (Acórdão nº 164756, no Recurso Eleitoral nº 29718, proferido em 11 de novembro de 2008), em que se analisou a configuração da conduta vedada descrita no §10 do art. 73 da Lei das Eleições, em face da permissão de uso de bem público. Aduziu o Juiz-Relator que
[...] malgrado a permissão de uso, “in casu”, ser graciosa, há ônus para a permissionária, pois além a exigência de preencher determinados requisitos temporais, determinam a reversão do imóvel ao Município, acarretam também a perda de todas as benfeitorias, sem direito à indenização [...]. Acresça-se que a permissionária obtém o bem a título precário, não se podendo, por tais motivos, caracterizar-se como simples distribuição gratuita de bens como determina o Art. 73, §10, da Lei 9.504/97.
Assim, em relação às doações com encargo, resguardada a devida discrição para não incidir na conduta vedada do inciso IV do art. 73 da Lei LE (exploração ou uso políticos do ato de doação), haveria respaldo para esse tipo de transferência interadministrativa mesmo nos anos eleitorais.
Conclusão
Por tudo o que foi dito, verifica-se que a prática das condutas vedadas previstas no art. 73 da LE independe da potencialidade de afetar as eleições ou mesmo da finalidade eleitoreira. Basta que se pratique ou se participe da prática das condutas vedadas para os agentes, públicos ou privados, sofrerem as sanções. O eventual prejuízo à igualdade e lisura das eleições ou a finalidade eleitoreira servirão de baliza para aplicação da pena, mas a só prática do ato implicará a aplicação de sanção.
Segundo o TSE, mesmo nas doações entre órgãos públicos (transferências interadministrativas) subsiste a prática de ato ilícito, pois as únicas exceções admitidas são aquelas expressamente arroladas no §10 do art. 73 da LE. Esse entendimento ficou bastante claro em resposta a consulta realizada pelo IBAMA sobre a destinação de bens apreendidos pela Autarquia Ambiental na sua atividade fiscalizatória. Noutros precedentes, constata-se a forma ampla como TSE interpreta a expressão “distribuição gratuita de bens”, tendo considerado inclusive a renúncia de receitas tributárias em ano eleitoral como conduta vedada.
De acordo com o contexto, pode-se concluir que a realização de doações com encargo, por não serem gratuitas, não configuram conduta vedada. Assim, a Administração Pública poderá, ainda que no ano eleitoral, celebrar livremente contratos de doação com encargo, seja com entes públicos ou com entes privados.
REFERÊNCIAS
CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro. 14 ed. Bauru: Edipro, 2008.
CASTRO, Edson de Resende. Teoria e prática do direito eleitoral. 4 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.
FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14 ed. São Paulo: Dialética, 2010.
MOREIRA, Egon Bockman, e GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: a Lei Geral de Licitações/LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. São Paulo: Malheiros, 2012.
RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 12 ed. Niterói: Impetus, 2011.
Procurador Federal. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DINIZ, Braulio Gomes Mendes. Restrições à doação administrativa em ano eleitoral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2013, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37373/restricoes-a-doacao-administrativa-em-ano-eleitoral. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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