Resumo: O texto aborda o papel do voto secreto nas democracias modernas, à luz do decidido na ADI 4543, em que o Supremo declarou a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei nº 12.034/2009, que criara o voto impresso com aplicação a partir das eleições de 2014.
Palavras-chave: Constituição; democracia; voto secreto; liberdade.
O Supremo Tribunal Federal, numa demonstração de que o regime democrático está umbilicalmente ligado à Constituição que o instaurou, reafirmou a importância de sua missão enquanto instituição republicana com competência para realizar o controle da conformidade da produção ordinária do Legislativo com a Lei máxima da nação. Ao declarar a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei 12.034/2009, que instituíra o voto impresso a partir das eleições de 2014, a Corte assegurou aos cidadãos brasileiros uma das mais caras conquistas legadas pela modernidade e, quiçá, aquela com maior efetividade na prática do jogo democrático na atualidade.
A relatora da ADI 4543, Min. Carmem Lúcia, ao votar pela procedência da ação, reavivou os fundamentos em que o Tribunal se baseara para em sede de liminar suspender os efeitos do dispositivo legal combatido.[i]
De acordo com a relatora, “[O] segredo do voto foi conquista impossível de retroação" e a “quebra desse direito fundamental – posto no sistema constitucional a partir da liberdade de escolha feita pelo cidadão, a partir do artigo 14 – configura afronta à Constituição, e a impressão do voto fere, exatamente, esse direito”. A ministra ainda lembrou que o voto direto, secreto, universal e periódico, tal como previsto no inciso II do parágrafo 4º do artigo 60 da CF, consubstancia-se em cláusula pétrea que não pode ser abolida sequer por proposta de emenda constitucional.[ii]
A magistrada ressaltou também o aspecto do direito de liberdade relacionado ao voto secreto. Segundo ela, “[N]ão é livre para votar quem pode ser chamado a prestar contas do seu voto, e o cidadão não deve nada a ninguém, a não ser à sua própria consciência”.[iii]
A importância da decisão do STF se revela num cenário em que milhões de cidadãos brasileiros parecem sequer terem se apercebido do potencial danoso do dispositivo legal fulminado. Nas recentes manifestações que ganharam as ruas do país, não se ouvia a insurgência contra o voto impresso. A sensação é que grande parte da população não consegue compreender o papel do voto na democracia moderna.
De fato, não é tarefa das mais fáceis, talvez nem mesmo seja possível, definir o significado de democracia. É algo dinâmico, que não pode ser apropriado e cujos conceitos relacionados necessitam ser constantemente rediscutidos, como defendem STRECK e MORAIS, citando lição de Marilena Chauí, segundo a qual “A democracia é invenção porque, longe de ser a mera conservação de direitos, é a criação ininterrupta de novos direitos, a subversão contínua dos estabelecidos, a reinstituição permanente do social e do político” (STRECK; MORAIS: 2012, p. 109).
É possível, contudo, apontar alguns conceitos que estão associados ao regime democrático, em que tem lugar primordial a ideia de governo do povo, feito pelo povo e para o povo.
Mas mesmo esse ideal do “governo de todos” nunca ultrapassou os domínios da teoria. Nem mesmo na antiguidade, quando os cidadãos gregos se reuniam nas praças públicas para, diretamente, deliberarem sobre os negócios da Pólis[iv], não se podia falar em uma participação da totalidade do povo nos negócios do Estado, pois o corpo eleitoral era formado por uma minoria da população que preenchia os requisitos necessários à qualificação de cidadão[v].
Na era moderna, após longos séculos de regimes monárquicos absolutistas[vi], o ideal de Democracia teve que ser reinventado:
Quando os revolucionários franceses de 1789 substituíram o direito divino dos reis pela soberania popular e quiseram, entre a impossibilidade da democracia direta e o horror ao absolutismo monárquico, criar um governo livre, lançaram natural e espontaneamente as bases constitucionais do regime representativo. (AZAMBUJA: 2008, p. 293)
Assim é que, no mundo moderno, democracia está associada ao conceito de sistema representativo, que segundo MALUF[vii] reúne três elementos: o mandato, o mandante e o mandatário. A questão é que a figura do mandante, que pode ser personificada no povo ou na nação, conforme a teoria adotada, não corresponde à totalidade da população do Estado, mas apenas a uma parcela que possui os denominados direitos políticos, de forma semelhante ao que ocorria na Grécia antiga.
A distinção entre a democracia da antiguidade e o modelo atual, no que tange aos aspectos da forma e da eleição, é trazida por CASTRO e FALCÃO (2004, p. 197), citando a lição de Norberto Bobbio:
A democracia dos antigos era direta, podendo ocasionalmente haver eleição para algumas magistraturas. A democracia de hoje é representativa, às vezes com alguma participação popular direta. Antigamente, a participação era a regra e a eleição, a exceção. Hoje ocorre o inverso: a eleição é a regra, apenas excepcionalmente ocorrendo a participação direta.
Um dos problemas centrais da democracia moderna reside na chamada crise de identidade entre mandantes e mandatários, que aflora numa percepção generalizada de que, não raras vezes, os interesses da nação são deixados de lado, ante a sobreposição dos interesses de uma minoria, quando não os dos próprios mandatários.
Chantal Mouffe[viii] nos fala de uma das principais teses de Carl Schmitt acerca do sistema representativo, segundo a qual a associação da democracia com o liberalismo levada a efeito no século XIX teria produzido um regime inviável, uma vez que se constituía na união de dois princípios políticos inconciliáveis. Assim é que a democracia parlamentar concebeu a reunião do princípio da identidade, que refere ao regime democrático propriamente dito, com o princípio da representação, que é típico da monarquia.
Discussões doutrinárias à parte, fato é que na atualidade o voto é uma das mais importantes dentre as parcas ferramentas que o cidadão dispõe para participar e de alguma forma interferir na discussão dos assuntos que ditarão os rumos da nação.
A democracia da atualidade aposta no processo de seleção dos governantes, mediante regras previamente estabelecidas para um jogo que deve contar com a participação ativa dos governados. Cinthia Robert lembra o pensamento de um dos mais importantes teóricos da época pós-revolucionária acerca da democracia representativa:
Alexis de Tocqueville, examinando as instituições, leis, e costumes da América, ao refletir sobre a questão como se pode dizer rigorosamente que nos Estados Unidos é o povo que governa, destaca que:
“Na América, o povo nomeia aquele que faz a lei e aquele que a executa: ele mesmo constitui o júri que pune as infrações à lei. Não apenas as instituições são democráticas em seus princípios, mas também em todos os seus desdobramentos. Assim, o povo nomeia diretamente seus representantes e os escolhe, em geral todos os anos, a fim de mantê-los mais ou menos em sua dependência. É, pois, realmente o povo que dirige e, muito embora a forma do governo seja representativa, é evidente que as opiniões, os preconceitos, os interesses, até as paixões do povo não podem encontrar obstáculos duradouros que os impeçam de produzir-se na direção cotidiana da sociedade.”[ix]
Se o sufrágio universal, em seu significado literal, deveria corresponder ao direito da totalidade da população ao voto, o seu sentido real remete à totalidade dos cidadãos habilitados, ou seja, os que possuem direitos políticos, que por sua vez correspondem ao poder que o “cidadão tem na condução dos destinos de sua coletividade, de uma forma direta ou indireta, vale dizer, sendo eleito ou elegendo representantes próprios junto aos poderes públicos” (BASTOS: 2002, p. 455).
Problemas existem, todos sabemos, mas a verdade é que parece não ter sido inventada ainda outra fórmula que possa substituir o sistema democrático representativo e ao mesmo tempo manter-se operacional. Importa, então, que sejam defendidos os seus institutos, dentre eles o seu mais importante, o voto secreto e universal.
Canotilho indica a liberdade de voto e o voto secreto como princípios materiais do sufrágio. Segundo o ilustre constitucionalista português, liberdade de voto “significa garantir ao eleitor o exercício do direito de voto sem qualquer coacção física ou psicológica de entidades públicas ou de entidades privadas”, e o princípio do voto secreto “significa que o cidadão eleitor guarda para si a sua decisão”, o que pressupõe “não só a pessoalidade do voto (o que excluiria, no seu devido rigor, o voto por procuração ou por correspondência), como a proibição de sinalização do voto (listas diferentes, papel, urnas)” bem como deve impossibilitar “uma reconstrução posterior do sentido da imputabilidade subjectiva do voto” (CANOTILHO: 2003, pp. 303-304).
O voto, que nem sempre foi universal, haja vista, por exemplo, a limitação da prerrogativa às aristocracias camufladas em democracias, bem como a participação feminina que no Brasil veio somente com a Constituição de 1934, precisa ser secreto, de forma a mitigar a interferência do poder econômico e político no eleitorado.
Se não conseguimos ainda implementar as condições sociais da democracia, quais sejam, a mudança da consciência do povo e redução da desigualdade social e econômica, já que a desigualdade não pode prescindir de um sistema partidário não participativo em que não se altere o status quo, conforme lição de STRECK e MORAIS, citando Macpherson[x], resta defender o aspecto procedimental do regime, isto é, primar pela efetividade das normas jurídicas que asseguram a participação dos cidadãos na instauração do governo. “A democracia significa, nessa perspectiva , a montagem de um arcabouço de normas que definem antecipadamente os atores e a forma do jogo, identificando-se, de regra com as questões relativas a quem vota?, onde se vota? E com quais procedimentos? (STRECK; MORAIS: 2012, p. 113)”
O sufrágio secreto impede, em teoria, que o voto de opinião não sucumba frente ao voto de escambo. Afinal, no Brasil ainda há quem se obrigue a votar por qualquer trocado; por um par de sapatos, um saco de farinha. A nossa imensa massa de iletrados[xi].
REFERÊNCIAS:
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4ª ed. São Paulo: Globo, 2008.
BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CASTRO, Celso Antônio Pinheiro; FALCÃO, Leonor Peçanha. Ciência Política. São Paulo: Atlas, 2004.
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia moderna com e contra Carl Schimitt. Disponível em http://www.almg.gov.br/index.asp?grupo=servicos&diretorio=cadernos escol&arquivo=caernos&caerno=2.
ROBERT, Cinthia. Democracia e Constituição. Campinas: Millennium, 2006.
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América apud ROBERT, Cinthia. Democracia e Constituição. Campinas: Millennium, 2006.
[i] Supremo Tribunal Federal. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo =252858> Acessado em 06 de novembro de 2013.
[ii] Supremo Tribunal Federal. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo =252858> Acessado em 06 de novembro de 2013.
[iii] Supremo Tribunal Federal. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo =252858> Acessado em 06 de novembro de 2013.
[iv] “A idéia de que a soberania é poder do povo vem dos tempos antigos, do início do período histórico, ou seja, do século IX a.C., mais ou menos correspondente à época em que viveu Homero. As cidades gregas nessa época eram regidas por uma monarquia patriarcal, havendo ao lado do rei um Conselho de Anciãos. Nos casos de maior interesse geral convocava-se a assembleia de todos os cidadãos. Mais tarde, por volta do século V a.C., o Conselho dos Anciãos deixou de ser o órgão principal do governo, firmando-se a assembleia popular como autoridade máxima, depois como autoridade única. Nasceu então a Constituição clássica da Cidade helênica, sob a influência de Esparta, que era a Cidade preponderante, e nos moldes as leis fundamentais outorgadas por Sólon.” (MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 225).
[v] “O povo da democracia ateniense não eram todos os indivíduos que viviam de modo permanente sob o governo de Atenas, e sim uma pequena parte deles. Segundo cálculos abalizados, essa população era de 230 a 240 mil pessoas; destas, cerca de 150 mil eram escravas, sem direito algum. Das 90 mil pessoas livres, 60 mil eram mulheres e crianças, também sem direitos políticos, e os habitantes dos arredores da cidade não compareciam geralmente às assembleias políticas; e entre os próprios citadinos alguns deixavam-se ficar sob as árvores que Cimon mandara plantar na ágora, ou no mercado, ou diante dos tribunais. As decisões mais importantes deviam ser tomadas pelo ‘povo inteiro’, segundo as leis. Na verdade, nesses casos, os cidadãos presentes não eram mais de 6 mil.” (AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4ª ed. São Paulo: Globo, 2008, p.)
[vi] Mesmo no período histórico denominado idade média verificam-se sistemas representativos de governo, ainda que sob a forma monárquica. Como nos lembra MALUF, o “marco mais expressivo, na história do sistema representativo, sem dúvida é a Câmara dos 25 Barões, formada na Inglaterra, no século XIII e mantida até hoje. Não obstante o seu caráter de representação aristocrática, surgiu como uma assembleia de súditos, contrapondo-se aos excessos do poder real e impondo a observância de princípios essencialmente democráticos. Exigiram os cavaleiros ingleses, no ano de 1215, que o Rei se abstivesse de lançar e cobrar tributos sobre a propriedade territorial sem prévia anuência dos contribuintes (no taxation without representation). Outros princípios de liberdade civil e religiosa foram consignados no texto da Magna Carta, ficando a cargo da comissão dos 25 Barões a fiscalização do seu cumprimento.” (MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 228).
[vii] MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 230.
[viii] MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia moderna com e contra Carl Schimitt. Disponível em http://www.almg.gov.br/index.asp?grupo=servicos&diretorio=cadernosescol&arquivo=caernos&caerno=2.
[ix] TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América apud ROBERT, Cinthia. Democracia e Constituição. Campinas: Millennium, 2006, p.225
[x] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 112.
[xi] Trecho da canção “Luis Inácio (300 picaretas)”, de Herbert Vianna/Paralamas do Sucesso.
Procurador Federal. Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis<br>Especialista em Direito Público e em Direito Processuaà l Civil. MBA em Gestão Pública.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RORIZ, Rodrigo Matos. O direito ao voto secreto nas democracias modernas: breves reflexões sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4543 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2013, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37545/o-direito-ao-voto-secreto-nas-democracias-modernas-breves-reflexoes-sobre-a-acao-direta-de-inconstitucionalidade-4543. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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