1. A posição hierárquica dos tratados internacionais sobre direitos humanos.
No Brasil, ao longo do processo de redemocratização sedimentado na Constituição de 1988, passou-se a adotar importantes medidas em prol da incorporação de instrumentos internacionais voltados à proteção dos direitos humanos, inserindo-se o Estado mais ativamente no contexto do chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos. Nessa vereda, a Carta de 1988 proclama ineditamente em seu Art. 1º, II que o Brasil se rege nas suas relações internacionais pelo principio da prevalência dos direitos humanos.
Mais à frente, ao insculpir o rol dos direitos e garantias fundamentais, prescreve o diploma superior no Art. 5º, II que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
O dispositivo, conquanto constitua um notável avanço no âmbito da proteção dos direitos humanos, não logrou pôr fim à discussão acerca da posição hierárquica do tratado internacional de direitos humanos no sistema de direito positivo nacional.
Posteriormente, a EC n. 45/2004 reascendeu a polêmica ao inserir um §3º ao Art. 5º da Carta, proclamando que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Diante disso, formou-se, na atualidade, basicamente duas principais correntes sobre a questão.
Com efeito, para uma primeira corrente, capitaneada fervorosamente por Flávia Piovesan[1] a Constituição brasileira de 1988, em seu Art. 5º, §1º, acolhe a sistemática da incorporação automática dos tratados dessa espécie, o que refletiria a adoção da concepção monista no particular[2]. Observa a autora, outrossim, que a incorporação automática tem sido a tendência de algumas Cartas contemporâneas, tais como a Constituição Portuguesa de 1976 e a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, além das atuais Cartas francesa, suíça, espanhola e holandesa.
De acordo com a sua tese, a Emenda Constitucional n. 45/2004, que acrescentou um § 3º ao Art. 5º da Constituição Federal, instituindo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais, nada mais fez que fortalecer o entendimento em prol da incorporação automática dos tratados de direitos humanos à Carta, compondo o bloco de constitucionalidade.
Dessa forma, a única diferença entre os tratados formalmente constitucionais (aprovados pelo quórum específico) e os materialmente constitucionais é que apenas estes são suscetíveis de simples renuncia pelo Executivo, devendo os outros submeter-se ao processo de alteração constitucional[3]. Também defende essa corrente, com bastante lucidez, os juristas Antônio Augusto Cançado Trindade (“Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos”, vol. 1/513, item n. 13, 2ª ed. 2003, Fabris), Celso Lafer (“A internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, racismo e relações internacionais”, p. 16/18, 2005, Manole) e Valerio de Oliveira Mazzuoli (“Curso de Direito Internacional Público”, p. 682/702, item n. 8, 2. ed., 2007, RT), dentre outros eminentes autores.
Já para uma segunda corrente, os tratados internacionais de direitos humanos, desde que não incorporados formalmente à Constituição Federal na conformidade do § 3º ao Art. 5º, tem status infraconstitucional, entendimento este que vigorou no âmbito do STF[4] até antes da decisão tomada no recurso extraordinário 466.343[5], em que se discutiu a legitimidade da prisão civil do depositário infiel em face do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Com efeito, no referido julgado, a posição que restou majoritária, capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, atribuiu aos tratados internacionais de direito humanos um status normativo supralegal. Ou seja, o tratado internacional versante sobre direitos humanos estaria numa posição intermediária entre a lei e a Constituição.
O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, observou que a tese da supralegalidade “pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.
2. O controle de convencionalidade.
A primeira corrente citada, acerca da posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos, é também a adotada por Valério de Oliveira Mazzuoli, que critica a posição adotada pelo STF, forte na premissa que a supralegalidade diria respeito aos tratados comuns, não versantes sobre direitos humanos, verbis:
“Ocorre que mesmo essa posição de vanguarda do STF, expressa no voto-vista do Min. Gilmar Mendes acima comentado, ainda é, a nosso ver, insuficiente. No nosso entender, os tratados internacionais comuns ratificados pelo Estado brasileiro é que se situam num nível hierárquico intermediário, estando abaixo da Constituição, mas acima da legislação infraconstitucional, não podendo ser revogados por lei posterior (por não se encontrarem em situação de paridade normativa com as demais leis nacionais). Quanto aos tratados de direitos humanos, entendemos que estes ostentam o status de norma constitucional, independentemente do seu eventual quórum qualificado de aprovação. A um resultado similar se pode chegar aplicando o princípio - hoje cada vez mais difundido na jurisprudência interna de outros países, e consagrado em sua plenitude pelas instâncias internacionais - da supremacia do direito internacional e da prevalência de suas normas em relação a toda normatividade interna, seja ela anterior ou posterior[6]”
Diante de sua teoria, conclui o professor Mazzuoli:
“(...) doravante, todas as normas infraconstitucionais que vierem a ser produzidas no país devem, para a análise de sua compatibilidade com o sistema do atual Estado Constitucional e Humanista de Direito, passar por dois níveis de aprovação: (1) a Constituição e os tratados de direitos humanos (material ou formalmente constitucionais) ratificados pelo Estado; e (2) os tratados internacionais comuns também ratificados e em vigor no país. No primeiro caso, tem-se o controle de convencionalidade das leis; e no segundo, o seu controle de legalidade[7]”.
Em face das suas convicções jurídicas, introduz o autor o chamado controle de convencionalidade, tendo por finalidade compatibilizar verticalmente as normas domésticas com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado e em vigor no território nacional.
Distinguir-se-iam, ainda, para o Autor duas novas formas de controle de validade das normas, para além dos já consagrados controle de legalidade e de constitucionalidade: o controle de convencionalidade concentrado e difuso. No primeiro (concentrado), o paradigma de confronto seriam os tratados de direitos humanos chancelados conforme o quórum previsto no art. 5º, § 3º, da CF; por sua vez, os tratados de direitos humanos que não passaram por esse crivo qualificado não poderiam dar vazão ao controle concentrado de convencionalidade, conquanto possam servir de paradigma no chamado controle difuso de convencionalidade, aberto a todo e qualquer magistrado, e não somente ao Pretório Excelso.
Além disso, haveria o controle de supralegalidade - o que se operaria no contraste entre normas infraconstitucionais (internas) e tratados internacionais comuns incorporados ao nosso ordenamento jurídico, não relacionados aos direitos humanos; é dizer, tais tratados ocupariam a mesma posição das normais infraconstitucionais, estando um patamar acima.
3. A aplicabilidade da teoria no Brasil, diante da posição do STF.
Como se observa, a teoria de Mazuolli não encontra ainda eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, haja vista que o pretório não reconhece o caráter materialmente constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos não aprovados pelo quórum de emenda constitucional.
Dessa forma, enquanto a primeira hipótese de controle de convencionalidade (concentrado) em nada se diferencia do controle concentrado já tradicional no Direito pátrio, considerando que a norma convencional fora formalmente inserida na Constituição, a segunda (difuso), ao menos por ora, não tem aplicabilidade, porquanto segundo o STF não se pode equiparar o parâmetro convencional ao constitucional.
Cabe aqui o registro, entretanto, que o atual entendimento da corte não é objeto de unanimidade no âmbito do sodalício. No próprio HC 466.343, onde se consagrou a posição da corte pela supralegalidade, divergiu o Ministro Celso de Mello por entender que as convenções internacionais em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil antes do advento da emenda constitucional 45/2004, como ocorre com o Pacto de San José da Costa Rica, revestem-se de caráter materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva, a noção conceitual de bloco de constitucionalidade.
Aliás, em um passado não tão distante, o Ministro Moreira Alves já sinalizava nesse sentido ao afirmar que “com relação a esse § 2° do artigo 5º da Constituição, parece-me que se pretendia com ele constitucionalizar os tratados internacionais a respeito anteriores à promulgação da Carta Magna, uma vez que os posteriores a ela não podem ser equiparados a emenda constitucional[8]”.
Soma-se a isso o fato de a composição da corte ter sido renovada desde o emblemático Habeas Corpus sobre a prisão civil do depositário infiel, com a chegada dos ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso.
Curioso ainda observar, como adverte Marinoni, que há quem sustente a supraconstitucionalidade da Convenção, ou seja, a invalidade da norma constitucional que contraria a Convenção. Consoante aponta o autor, nesse sentido Néstor Pedro Sagués sustenta que, se o Estado deve cumprir a Convenção e não pode invocar a sua Constituição para descumprir os tratados internacionais de direitos humanos, isto significa, como resultado concreto final, que o tratado está juridicamente acima da Constituição[9]. Demonstra, ainda, Marinoni que essa é a orientação adotada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos[10]. Nota-se que esse entendimento vai ainda além da proposição proposta pela primeira corrente citada acima.
Dessarte, pode-se concluir que, malgrado ainda não tenha efeito prático no âmbito da jurisprudência interna, a tese do controle de convencionalidade encontra amparo na posição doutrinária de substanciosa parcela de juristas, sendo provável que encontre ressonância no STF em um futuro próximo.
[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. – 10ª Ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 83-93
[2] Vigoram duas teorias a respeito da relação entre direito internacional e o interno. Pela teoria dualista, o direito internacional e o direito interno são ordenamentos jurídicos distintos, com fontes distintas e com destinatários também distintos. Não haveria, dessarte, a possibilidade de conflito entre eles. Já as teorias monistas rejeitam a existência de duas ordens jurídicas distintas. Esta última se subdivide em monismo nacionalista, que sustenta a prevalência do direito interno em caso de conflito, e monismo internacionalista que defende primado da ordem internacional. Cf. RESEK, Francisco. Direito Internacional Público.12ª ed. São Paulo : Editora Saraiva, 2010.
[3] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 78
[4] A esse respeito, vale conferir: STF: RHC 79.785-7/RJ, Relator Min. Sepúlveda Pertence, julg. 29.03.2000, DJU de 19.09.2003. Nesse julgamento, restou consignado na ementa: “Prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos (...)”.
[5] RE 466.343, Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 05.06.09.
[6] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista de informação legislativa, v.46, nº 181, jan./mar. de 2009, p. 121.
[7] Idem, p. 114.
[8] RHC 79.785-7/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julg. 29.03.2000, in DJU de 19.09.2003.
[9] MARINONI, Luis Guilherme. Controle de convencionalidade (na perspectiva do direito brasileiro). Disponível ewm http://marinoni.adv.br/artigos.php. Acesso em 07.02.2014, p. 11.
[10] Idem, p. 12-21.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da Uniao. Pos-graduado em Direito Publico pela Anhanguera/UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAZ, Samuel Mota de Aquino. Aplicabilidade do controle de convencionalidade à luz da jurisprudência do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 fev 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38291/aplicabilidade-do-controle-de-convencionalidade-a-luz-da-jurisprudencia-do-stf. Acesso em: 27 dez 2024.
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