Resumo: O presente texto aborda as distinções entre hermenêutica e interpretação, trazendo algumas das mais clássicas definições dos termos na doutrina pátria, ressaltando a nota característica da hermenêutica jurídica: a decidibilidade. Além disso, expõe de forma sistemática os principais métodos de interpretação da Hermenêutica Clássica, bem como as classificações das espécies de interpretação. Aqui, importa destacar que o texto se limita às perspectivas da Hermenêutica Jurídica Dogmática, pois não abordará as críticas introduzidas pela filosofia da linguagem, no contexto do pós giro-hermenêutico, uma vez que o texto pretende ser um facilitador do primeiro contato do aluno de direito com a hermenêutica jurídica, tendo sido redigido durante as atividades de docência da autora junto à Faculdade Estácio Atual. Os escritos possuem, pois, linguagem simples e objetiva, o que os tornam úteis não apenas aos graduandos em direito, mas também aos candidatos a Concursos Públicos, nos quais se exijam o conhecimento de noções de hermenêutica jurídica.
Palavras chaves: Hermenêutica; Interpretação; Métodos.
Introdução
No atual contexto de protagonismo judicial vivenciado pelo Brasil, apresenta-se de suma importância o estudo da Hermenêutica Jurídica. Contudo, a complexidade dos textos que tratam do tema termina por dificultar o estudo e compreensão dos seus fundamentos mais básicos.
Nesse contexto, o objetivo desse artigo é o de ser um facilitador dos primeiros estudos acerca da Hermenêutica Jurídica Clássica, esclarecendo as distinções terminológicas entre hermenêutica e interpretação, colacionando, para tanto, algumas das mais clássicas definições dos termos na doutrina pátria. Ainda, ressaltar-se-á a nota característica da hermenêutica jurídica, segundo a doutrina de Tercio Sampaio Ferraz Júnior, qual seja: a decidibilidade.
Por fim, o texto apresentará, de forma objetiva e sistemática, os principais métodos de interpretação da hermenêutica jurídica clássica, quais sejam: métodos gramatical, lógico, sistemático, histórico, sociológico, teleológico e axiológico. Também será abordada as classificações das espécies de interpretação.
Importa ressaltar que o texto se limita às perspectivas da Hermenêutica Jurídica Clássica, não abordando os complexos aspectos da Hermenêutica Contemporânea, pós giro-linguístico ou giro-hermenêutico, a qual provoca verdadeira revolução da forma de pensar a interpretação no direito, desconstruindo diversos dos principais dogmas da hermenêutica clássica.
Tal opção se justifica por se pressupor que para descontruir conceitos, antes é preciso construí-los. Dito de outra forma, não é possível compreender as inovações introduzidas pelo giro-hermenêutico, antes que se compreenda os fundamentos básicos da hermenêutica clássica. O presente texto, portanto, não se pretende crítico, muito embora saibamos da relevância de todas as críticas apontadas ao paradigma hermenêutico clássico-formal, com as quais coadunamos. Contudo, como já afirmado, o presente texto se pretende introdutório e conceitual, não havendo espaço para o levantamento das críticas introduzidas pela filosofia da linguagem.
A palavra “hermenêutica” vem do grego hermeneia, que remete à mitologia antiga, evidenciando os caracteres conferidos ao Deus-alado Hermes, responsável pela mediação entre deuses e homens (FREIRE, 2009, p. 73). Hermes, filho de Zeus, atuava como mensageiro, como tradutor das mensagens vindas da esfera divina para a civilização humana, já que a linguagem dos deuses não seria compreensível aos mortais. Nesse sentido, a palavra hermenêutica sugere o processo de tornar compreensível.
A palavra “interpretação”, por sua vez, provém do termo latino interpretare (inter-penetrare), significando penetrar mais para dentro, fazendo referência à pratica de feiticeiros antigos, que introduziam suas mãos nas entranhas de animais mortos, a fim de prever o futuro e obter respostas para os problemas humanos (FREIRE, 2009, p. 73-74). Nesse contexto, a palavra interpretação sugere a extração do sentido que está entranhado na norma.
Apesar da origem distinta, é usual o emprego dos termos “interpretação” e “hermenêutica” como sinônimos, mas a rigor o conceito de interpretação não se confunde com o conceito de hermenêutica, vejamos como alguns teóricos diferenciam os dois termos.
Para Limongi França, o termo “hermenêutica” se refere à “parte da ciência jurídica que tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos, que devem ser utilizados para que a interpretação se realize, de modo que o seu escopo seja alcançado da melhor maneira” (FRANÇA, 2009, p. 19). Já “interpretação” consistiria em “aplicar as regras, que a hermenêutica perquire e ordena, para o bom entendimento dos textos legais” (FRANÇA, 2009, p. 19).
Quando Limongi França faz referência aos “textos legais”, não quer dizer apenas “lei”, em sentindo estrito, uma vez que reconhece suas limitações para exprimir o direito. Desse modo, tanto a hermenêutica, quanto a interpretação, devem ser endereçadas ao “direito que a lei exprime”, “num esforço de alcançar aquilo que, por vezes, não logra o legislador manifestar com a necessária clareza e segurança” (FRANÇA, 2009, p. 19).
André Franco Montoro , por sua vez, afirma que interpretar “é fixar o verdadeiro sentido e alcance de uma norma jurídica” (MONTORO, 2000, p. 369). Já a hermenêutica seria “a teoria científica da interpretação” (MONTORO, 2000, p. 369).
Vê-se que o conceito de interpretação de André Franco Montoro é composto por três elementos: i. Fixação de sentido; ii. Alcance; iii. Norma jurídica.
A norma jurídica é produto social e cultural, sendo assim, é imprescindível que ao interpretar se busque o real significado, sentido ou finalidade da norma para a vida real, competindo ao interprete buscar, dentro dos pensamentos possíveis, o mais apropriado, correto e jurídico, ou seja, cabe ao interprete fixar o sentido da norma (MONTORO, 2000, p. 370).
Também é tarefa do interprete determinar o alcance do preceito normativo, ou seja, determinar sua extensão. É comum que haja normas com o mesmo sentido, mas com extensões diferentes (MONTORO, 2000, p. 370).
Por último, é imprescindível ao conceito de interpretação a noção de norma jurídica. Muitos autores preferem falar em “lei”, tal termo, segundo Montoro, é por demais restrito, pois não só as leis precisam de interpretação, mas também os tratados, convenções, portarias, decretos, testamentos etc. Sendo assim, o autor sugere que se fale em “norma jurídica”, expressão que “abrange, em sua acepção ampla, desde as normas constitucionais até as normas contratuais ou testamentárias, de caráter individual” (MONTORO, 2000, p. 370-371).
Para Montoro não há razão de ser o brocardo latino in claris legis cessat interpretatio (a interpretação cessa quando a lei é clara), uma vez que SEMPRE é necessário determinar o sentido e o alcance da norma jurídica. Isto porque a clareza de um texto é relativa, ou seja, o que é claro para um, pode não o ser para outro. Ou, ainda, uma palavra pode ser clara em seu uso vulgar, mas pode ter outro sentido técnico-jurídico (MONTORO, 2000, p. 371).
Por fim, para Carlos Maximiliano, a hermenêutica tem por objeto “o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito”. Dito de forma mais simples: “Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar” (MAXIMILIANO, 2003, p. 1).
Interpretar, por sua vez, significaria buscar a relação entre o texto abstrato, já que as leis positivas são formuladas em termos gerais, e o caso concreto, para tanto, seria necessário “descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão”. Sendo assim, interpretar significaria “determinar o sentido e o alcance das expressões do direito” (MAXIMILIANO, 2003, p. 1).
A hermenêutica se aproveita das conclusões da filosofia jurídica, criando novos processos de interpretação e organizando-os de forma sistemática. A interpretação é a aplicação da hermenêutica. A hermenêutica descobre e fixa os princípios que regem a interpretação (MAXIMILIANO, 2003, p. 1).
Com isso, percebe-se que o termo “hermenêutica” refere-se à ciência da interpretação, enquanto “interpretação” significaria determinar o sentido e o alcance da norma jurídica.
A interpretação permeia toda vida social, pois cotidianamente as pessoas interpretam livros, filmes, obras de arte, música, poemas, textos religiosos, dentre tantos outros. Nesse contexto, o que distinguiria a interpretação e, por sua vez, a hermenêutica jurídica, das demais formas de hermenêutica?
Para Tercio Sampaio Ferraz Júnior, as normas jurídicas se utilizam de palavras para disciplinar a conduta humana e, muitas vezes, o legislador usa vocábulos que tira da linguagem cotidiana, mas lhes atribui um sentido técnico, diferente do comumente usado, o que gera uma tensão quando da aplicação da norma jurídica. Assim, a hermenêutica dogmática teria por função prática a “determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos” (FERRAZ JR., 2001, p. 251-252).
O propósito básico do jurista é, pois, determinar a força e o alcance do texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou seja, “a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo para o comportamento” (FERRAZ JR., 2001, p. 252).
Assim, por exemplo, o jurista tem que determinar o sentido e o alcance da expressão “cidadão” para aplicar a norma constitucional que garante a todos os cidadãos a liberdade e a igualdade no exercício do trabalho. Num primeiro momento pode-se pensar que cidadão são todos os que nascem no país ou são filhos de pais que lá nasceram: nacionalidade da cidadania. No entanto, também podemos expandir o alcance do texto, de modo de venha a abarcar os estrangeiros, desde que vivam no país. Viver no país também pode significar uma passagem permanente ou temporária. Há, ainda, os que possuem dois domicílios, dentre tantas outras particularidades, que torna difícil a determinação de um sentido básico para uma norma jurídica, tornando imprescindível que se encontrem regras para a determinação das palavras ou signos linguísticos (FERRAZ JR., 2001, p. 252-253).
Conforme já afirmado, para Tercio Sampaio Ferraz Jr., os métodos de interpretação são regras técnicas que visam à obtenção de um resultado, buscando orientar o interprete para os problemas de decidibilidade dos conflitos, sobretudo os problemas sintáticos, semânticos e pragmáticos (FERRAZ JR., 2001, p. 282).
Os problemas sintáticos se referem tanto à conexão das palavras nas sentenças (questões léxicas), quanto à conexão de uma expressão com outras dentro de um contexto (questões lógicas), além da conexão das sentenças num todo orgânico (questões sistemáticas).
Quando se enfrenta uma questão léxica, falamos em interpretação gramatical, que parte “do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma” (FERRAZ JR., 2001, p. 283). Exemplo: “A investigação de um delito que ocorreu no estrangeiro não deve levar-se em consideração pelo juiz brasileiro”, o “que” se reporta a “investigação” ou a “delito”?
A interpretação gramatical também é chamada de interpretação filológica ou literal, uma vez que visa estabelecer o sentido jurídico (compreender) da norma com base nas próprias palavras que a expressam. Objetiva, portanto, estabelecer a coerência entre o sentido da lei e os usos lingüísticos, que muitas vezes se modificam com o decurso do tempo (COELHO, 1981).
A coerência entre o sentido da lei e o significado das palavras, segundo a concepção clássica, poderia ser buscada tendo em vista a vontade do legislador (mens legislatoris), ou seja, levando-se em consideração a época em que a lei foi elaborada (passado); ou a vontade da lei (mens legis), procurando atualizar o significado linguístico (presente).
A interpretação gramatical teve seu apogeu na Escola de Bolonha, no século XI, com o trabalho dos glosadores e pós-glosadores, que emitam comentários interpretativos sobre textos do direito romano. Esses comentários, nos quais prevalecia o sentido filológico, literal, eram postos em notas marginais ou apostas entre linhas, denominadas glosas. A partir do século XVI tais textos comentados passaram a serem denominados de corpus júris civilis (COELHO, 1981).
Os pós-glosadores, em razão da necessidade de aplicar na prática os preceitos interpretados pelos glosadores, formaram o jus commune, composto pela síntese do direito romano, canônico e costumeiro. Contudo, com o desenvolvimento da jurisprudência ocidental, o método filológico foi perdendo sua importância, pois a letra da norma é apenas o ponto de partida da atividade de interpretação, mas não pode ser o único método hermenêutico utilizado pelo interprete (FERRAZ JR., 2001, p. 284-285).
A hermenêutica jurídica atual, portanto, atribui à interpretação gramatical importância relativa, considerando que outros elementos de natureza histórica, sociológica, ideológica e filosófica, devem complementar o sentido aparente que a interpretação literal de início revela (COELHO, 1981).
A interpretação lógica também é utilizada para solucionar problemas sintáticos com os quais se depara o interprete da norma jurídica, procurando descobrir o sentido da lei mediante a aplicação dos princípios científicos da lógica, enfrentando, portanto, questões lógicas da interpretação.
No contexto da hermenêutica clássica, a aplicação da interpretação lógica pode ocorrer no plano da lógica formal e da lógica material. Vejamos.
No que diz respeito à lógica formal, alguns são os princípios que podem ser utilizados para interpretar uma norma jurídica, dentre os quais:
(i) Princípio da identidade – segundo o qual “o que é, é, o que não é, não é”. Isto significa que uma coisa é idêntica a si mesma e não ao seu contrário;
(ii) Princípio da contradição – formulado a contrario sensu do princípio anterior, enuncia que “o contrario do que é verdadeiro é falso”; “a mesma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo”;
(iii) Princípio do terceiro excluído – também formulado a partir do princípio da identidade, pode ser chamado de princípio da exclusão do meio, enunciando: “duas coisas contraditórias: uma deve ser verdadeira, a outra falsa”. De acordo com esse princípio lógico formal, “não há outra opção entre a verdadeira e a falsa”;
(iv) Princípio da razão suficiente – segundo a qual “nada ocorre sem que haja uma causa determinante, isto é, tudo o que é tem sua razão de ser, todo o real é racional”. Este princípio, por sua vez, fundamenta os princípios da metodologia científica: (a) princípio da causalidade, segundo o qual toda mudança pressupõe uma causa; (b) princípio do determinismo natural, enunciando que sob idênticas circunstancias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos; (c) princípio da finalidade, que pressupõe que toda atividade se dirige a um fim;
(v) Princípio do silogismo ou da tríplice identidade – incluído na lógica formal por Lalande, em substituição ao princípio da razão suficiente. Aplicando o princípio do silogismo temos que: “se A é B e B é C, então C é A. Neste contexto temos uma premissa maior, uma premissa menor e a solução do silogismo.
Tais princípios lógicos formais constroem a base da interpretação realizada por meio dos seguintes argumentos:
(i) A fortiori ratione (com maior razão) – argumento baseado nos princípios da identidade e da contradição. Pode ser empregado de dois modos: (1) a maiori ad minus (quem pode mais pode menos) – que autorizada interpretar norma jurídica, que tem abrangência sobre coisas menos importantes, no sentido de que ela se refere àquelas coisas que o interprete reputa como menos importantes que estão implícitas. Segundo esse argumento, quem pode doar, pode vender; quem pode vender, pode hipotecar; (2) a minori ad maius – segundo o qual se a lei proíbe uma conduta, estão implícitas nesta proibição as condutas menos importantes que a que foi expressamente proibida. Este argumento, contudo, encontra limites no princípio da legalidade, que exige a tipificação das condutas ilícitas. Em outras palavras: “não há crime sem lei anterior que o defina”;
(ii) A contrario sensu – “tudo o que não está expressamente proibido pelo direito está juridicamente permitido”. Este argumento deriva da suposição de que há uma plenitude hermética no ordenamento jurídico, também podendo expressar que “a inclusão de um no texto da lei implica a exclusão dos demais”. Como por exemplo: Lei do divórcio, art. 36, parágrafo único: “A contestação SÓ pode fundar-se em: - falta do decurso de 1 (um) ano da separação judicial; II - descumprimento das obrigações assumidas pelo requerente na separação”. A utilização da partícula “só” exclui do rol qualquer outra razão alegada.
(iii) A simili – refere-se ao raciocínio analógico, pelo qual se aplica a lei a situações não previstas, tendo em vista a semelhança delas com as situações expressamente previstas.
Além dos argumentos derivados da lógica formal, o interprete também faz uso de procedimentos argumentativos paralógicos, que não possuem o caráter inquestionável dos argumentos lógicos, dentre os quais destacamos:
(i) A rubrica – através do qual se utiliza o título ou súmula de norma para investigar o sentido da lei;
(ii) Ab auctoritate – aqui o interprete faz referência à doutrina, à decisões de juízes e Tribunais, para enfatizar o significado que se atribui à norma interpretada;
(iii) Pro subjecta materia – tem estreita correlação com a interpretação sistemática, uma vez que consiste em enfatizar qual seria a vontade do legislador, investigada nos trabalhos preparatórios à elaboração da norma. Sendo também utilizado para revelar o sentido oculto da lei no contexto da lei maior em que se insere ou do sistema como um todo;
(iv) Ratio legis stricta – que significa: “em razão exclusiva da lei”, enfatiza o princípio segundo o qual, na clareza da lei, não haveria necessidade de interpretação;
(v) A generali sensu – é um argumento que amplia a extensão da lei, possibilitando uma interpretação extensiva desta.
Diferentemente da lógica formal, que se baseia em princípios tidos por universais, a lógica material preocupa-se com o conteúdo da norma, utilizando-se de um processo científico para buscar meios extra-lógicos, como por exemplo, o sentido social e humano do direito (COELHO, 1981).
Quero dizer com isso que o procedimento lógico material vai além do texto que se quer interpretar, investigando a ratio legis (razão que fundamenta e justifica o preceito normativo), a vis legis (a virtude normativa do preceito), bem como o occasio legis (particular circunstancia do momento histórico que determinou a criação do preceito) (COELHO, 1981).
Como perceberemos no decorrer dos nossos estudos, prevalece na hermenêutica tradicional a utilização da lógica formal, com objetivos mais retóricos de demonstrar a validade formal da argumentação. Já na hermenêutica crítica prevalece a lógica material, enfatizando-se a busca do sentido social da norma.
Aliada às interpretações gramatical e lógica, a interpretação sistemática, segundo Tercio Sampaio Ferraz Jr., possibilita ao interprete enfrentar os problemas sintáticos, no que se refere às questões sistemáticas, com as quais se depara o interprete da norma jurídica.
Neste contexto, a interpretação sistemática consiste em considerar o preceito jurídico interpretando como parte do sistema normativo mais amplo que o envolve. É assim que para compreender um determinado dispositivo do Código Civil de 2002, temos que considerá-lo dentro do sistema geral do código, ou mesmo em relação aos princípios gerais do direito civil ou do direito privado como um todo, além de sua compatibilidade de a Constituição Federal.
Com a interpretação sistemática também podemos fazer uso da utilização do direito comparado, procurando interpretar o dispositivo de acordo com a sistemática do moderno direito internacional
Tal forma de interpretação parte do pressuposto de que o ordenamento jurídico é um todo hermético (plenitude hermética), ou seja, da noção de que a ordem jurídica deve ser entendida como um sistema fundado na hierarquia das normas, como na Teoria Pura do Direito de Kelsen, que teremos oportunidade de estudar mais adiante. Por isso muitos autores consideram este procedimento uma derivação do processo lógico de interpretação, denominando-o de interpretação lógico-sistemática.
A teoria hermenêutica crítica, contudo, não encara a interpretação sistemática apenas pelo seu viés lógico, entendendo-a como uma ordem real, caracterizada por estruturas de poder. Sistema, portanto, passa a ser entendido como interdisciplinaridade, envolvendo o continente histórico, exigindo conhecimentos básicos de sociologia, economia, política e filosofia (COELHO, 1981).
No que se refere aos problemas semânticos, que dizem respeito ao significado das palavras ou das sentenças, fazendo surgir problemas de ambiguidade e vagueza, o interprete deve fazer uso da interpretação histórica, sociológica e evolutiva.
Na prática a interpretação histórica e a sociológica se confundem, uma vez que ao se buscar o sentido efetivo na circunstância atual ou no momento de criação da norma mostra que ambos se interpenetram, ou seja, “é preciso ver as condições específicas do tempo em que a norma incide, mas não podemos desconhecer as condições em que ocorreu sua gênese” (FERRAZ JR., 2001, p. 286).
Isto significa que a interpretação histórica objetiva esclarecer o sentido da lei por um trabalho de reconstituição do seu conteúdo original, tomando por base os documentos relacionados com a elaboração da lei e procura reconstituir as circunstâncias históricas que o ensejaram (COELHO, 1981).
Para o levantamento das condições históricas, Tercio Sampaio Ferraz Jr. Recomenda ao interprete que recorra tanto aos precedentes normativos, ou seja, as normas que antecederam à nova disciplina, entendendo, assim, os motivos condicionantes de sua origem, quanto aos precedentes preparatórios (discussões parlamentares, emendas, votação etc), para que se chegue ao occasio legis, isto é, “o conjunto de circunstâncias que marcaram efetivamente a gênese da norma” (FERRAZ JR., 2001, p. 286).
Fernando Coelho (1981) traz nomenclatura diferente, afirmando que a interpretação histórica trata de descobrir a mens legislatoris, ou seja, a intenção real do legislador na época em que a lei foi elaborada. Não devendo, contudo, restringir-se ao exame dos documentos históricos, atribuindo a importância devia às circunstâncias histórico-sociais, que redundaram na norma, levando em consideração:
(i) As fontes próximas – que precederam a elaboração da lei de forma imediata, como por exemplo: anteprojetos e projetos de lei, declarações de motivo, levantamentos estatísticos, planos de governo, etc. Ou seja, Fernando Coelho chama de fontes próximas, o que Tércio Ferraz denomina de precedentes preparatórios;
(ii) As fontes remotas - que abrangem as circunstâncias mais longinquamente relacionadas com o preceito, inclusive os elementos filosóficos, éticos, religiosos e sociológicos que vieram repercutir na vontade do legislador.
Neste sentido, a interpretação histórica teria por meta questionar a occasio legis na busca do sentido original do preceito que, “após as transformações da história, deverá ser adaptada às condições sociais cambiantes” a mens legislatoris, ou seja, a intenção real do legislador na época em que a lei foi elaborada. Não devendo, contudo, restringir-se ao exame dos documentos históricos, atribuindo a importância devia às circunstâncias histórico-sociais, que redundaram na norma (COELHO, 1981, p. 217).
Fernando Coelho (1981) ressalta, ainda, que a teoria crítica adota a interdisciplinaridade como fundamental na interpretação histórica, uma vez que a história do direito não é simples crônica do passado, mas uma construção ou reconstrução dos sistemas jurídicos históricos, adaptando a experiência do passado à experiência do presente, uma vez que aquela só tem sentido como reveladora da ideologia que condiciona o presente.
Por fim, as questões pragmáticas de interpretação reportam-se à carga emocional dos símbolos, aos valores atribuídos às expressões, podendo ser solucionadas através da interpretação teleológica e axiológica. A regra básica do método teleológico é a de que sempre é possível atribuir um propósito às normas, mas nem sempre essa finalidade é clara. Neste sentido é o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, ao dispor que: “Na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Assim, uma típica interpretação teleológica e axiológica postula fins e valoriza situações (FERRAZ JR., 2001, p. 288).
O método teleológico teve Ihering como seu principal precursor, como melhor detalharemos ao estudar os principais sistemas interpretativos da modernidade. Segundo a teoria do fim do direito de Ihering, o método teleológico afirma que no campo do direito o conceito de fim substitui o de valor. Dessa forma, a interpretação finalística ou teleológica aspira compreender o direito do seu ponto de vista funcional, ou seja, a norma jurídica cumpre uma finalidade, que justifica sua existência (WARAT, 1994, p. 82).
O método teleológico torna explícita, neste contexto, a exigência de que a interpretação sobre um texto legal se norteie pelas consequências sociais que procurada ou pelos fins que orientam a norma, ou seja, pelas consequências sociais antecipadamente previstas (WARAT, 1994, p. 82).
Como se depreende do exposto, também o método teleológico pressupõe que a lógica formal não é suficiente para solucionar os problemas do direito, devendo o interprete levar em consideração a realidade concreta, os interesses vitais e os fatos sociais que constituem as fontes da produção jurídica (WARAT, 1994, p. 83).
A dificuldade deste método repousa em encontrar uma forma de determinar o que seria esse interesse social, esse fim social, que mereça ser protegido. Isto porque vivemos numa sociedade plural, na qual cada seguimento identifica suas prioridades, gerando um conflito entre os mais diversos fins possíveis de serem imputados à norma. Na prática, tal problema é resolvido pela imposição do poder político com que conta cada setor, “que o permite a erigir em interesse social seu próprio interesse, muitas vezes disputado com aquele” (WARAT, 1994, p. 84).
Sobre os métodos de interpretação que determinam o alcance da norma, chamados por Tercio Ferraz Jr. de “tipos de interpretação”, podemos ter: a interpretação especificadora (declarativa), a interpretação restritiva e a interpretação extensiva. Vejamos cada uma delas.
Uma interpretação declarativa especificadora parte do “pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra de seu enunciado”, ou seja, segundo a teoria dogmática “na interpretação especificadora, a letra da lei está em harmonia com a mens legis ou o espírito da lei, cabendo ao interprete apenas constatar a coincidência” (FERRAZ JR., 2001, p. 290).
Para se chegar a uma interpretação declarativa, o interprete deve buscar a vontade do legislador (mens legislatoris), o que faz com que seus efeitos coincidam com o sentido aparente que as suas expressões denotam (COELHO, 1981).
Já a interpretação restritiva ocorre toda vez que se limita o sentido da norma, mesmo havendo amplitude da sua expressão literal, através do uso de considerações teleológicas e axiológicas. A interpretação restritiva, portanto, leva em consideração o critério da mens legis (vontade da lei), levando em consideração a norma jurídica como algo independente da vontade do legislador, assumindo significado próprio, uma vez expressado (COELHO, 1981).
O direito penal, em razão do princípio nullum crimen sine lege (não há crime sem lei anterior que o preveja), deve ser interpretado de forma restritiva, não admitindo também analogia in mala parte. Da mesma forma, o direito tributário não permite interpretação extensiva de seus preceitos, devendo ser interpretado restritivamente.
Em síntese, recomenda-se que toda norma que restrinja os direitos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitucionalmente deva ser interpretada restritivamente. Também uma exceção deve sofrer uma interpretação restritiva (FERRAZ JR., 2001, p. 291).
A interpretação extensiva, por sua vez, também leva em consideração a mens legis, ampliando o sentido da norma para além do contido em sua letra, demonstrando que a extensão do sentido está contida no espírito da lei, considerando que a norma diz menos do que queria dizer (FERRAZ JR., 2001, p. 290-292).
Determinados ramos do direito tem como regra geral a interpretação extensiva, como as normas dispositivas do direito civil, que por razões históricas funciona como norma supletiva no contexto do direito privado. Da mesma forma, o direito trabalhista pode ser utilizado de forma supletiva às lacunas do direito administrativo no tocante ao funcionalismo público.
No que se refere às formas de classificação das espécies de interpretação, não há um consenso entre os teóricos, existindo diversos critérios e formas de classificação. Vejamos algumas delas:
Segundo Hermes Lima, distinguem-se na interpretação três espécies: a) doutrinária - que assume caráter de atividade científica, ajudando a própria lei a evoluir; b) autêntica – praticada pelo próprio poder que legisla, impondo-se como lei nova, que reproduz ou explica a lei anterior, ou seja, declara de maneira formal e obrigatória como deve ser compreendida a lei anterior; c) judicial – realizada pelo judiciário quando da aplicação da lei (LIMA, 2002, p. 153-154).
O mesmo autor também nos fala sobre os métodos de interpretação, sendo eles: a) literal – “limitado ao valor das palavras, ao exame da linguagem dos textos, à consideração do significado técnico dos termos”, sendo inegável sua importância, uma vez que o texto é o ponto de partida para qualquer esforço interpretativo; b) lógico ou racional – “em que há a considerar a ratio iuris a que se filia a disposição”, sendo conveniente distinguir entre a ratio legis e a occasio legis, esta se referindo à circunstância histórica que de que proveio o impulso exterior para elaboração da lei, e aquela se referindo ao fundamento racional objetivo da norma; c) sistemático – considera o direito positivo um todo coerente, enquadrando o dispositivo ao sistema; d) histórico – parte do pressuposto de que o conhecimento do direito e das legislações anteriores são esclarecedores da lei do presente (LIMA, 2002, p. 154- 155).
No que se refere aos resultados da interpretação, Hermes Lima faz a distinção entre interpretação declarativa, em que se procura fixar o sentido da lei, podendo ser restritiva ou extensiva, existindo, ainda, a interpretação ab-rogante, “que nega sentido e valor a disposições de lei, por verificar que a mesma é contrária e incompatível com outra norma principal” (LIMA, 2002, p. 155-156).
André Franco Montoro, por sua vez, classifica as espécies de interpretação de acordo com três critérios distintos:
· 1º critério - Quanto à origem ou fonte de que emana, a interpretação pode ser: a) judicial, judiciária ou usual – realizada pelos juízes ao sentenciar, tendo força obrigatória para as partes, mas podendo firmar jurisprudência, passando a ser aplicada aos casos análogos; b) legal ou autêntica – quando é dada pelo próprio legislador, através de outra lei, chamada “lei interpretativa”, que se considera como tendo entrado em vigor na mesma data que a lei interpretada, não sendo considerada como uma autêntica interpretação por muitos teóricos, uma vez que é uma nova norma jurídica; c) doutrinária ou científica – é a que realizam os juristas em seus pareceres e obras, analisando os textos à luz de princípios filosóficos e científicos do direito e da realidade social; d) administrativa – realizada pelos órgãos da administração pública, mediante portarias, despachos, instruções normativas etc (MONTORO, 2000, p. 372-373).
· 2º critério: quanto aos processos ou métodos de que se serve: a) gramatical ou filológica – é a que toma por base o significado das palavras da lei e sua função gramatical, constituindo-se como o primeiro passo para se interpretar, não podendo ser o único método aplicado, pois não considera a unidade que constitui o ordenamento jurídico e sua adequação à realidade social; b) lógico-sistemática – que leva em consideração o sistema em que se insere o texto e procura estabelecer a concatenação entre este e os demais elementos da própria lei, do respectivo ramo do direito ou do ordenamento jurídico geral, supondo a unidade e coerência do sistema jurídico; c) histórica – que se baseia na investigação dos antecedentes da norma, seja do processo legislativo, desde o projeto de lei, justificativa, exposição de motivos, emendas, discussão etc, seja dos antecedentes históricos (leis anteriores) e condições que a precederam, além do estudo da legislação comparada, averiguando se há influência direta ou indireta do direito estrangeiro; d) sociológica – que se baseia na adaptação do sentido da lei às realidades e necessidades sociais (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil – “Na aplicação da lei o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (MONTORO, 2000, p. 373-374).
· 3º critério: quanto aos seus efeitos e resultados, a interpretação pode ser: a) declarativa – que se limita a declarar o pensamento expresso na lei; b) extensiva – que amplia o alcance da norma para além dos seus termos, partindo do pressuposto de que o legislador escreveu menos do que queria dizer (minus scripsit quam voluit); c) restritiva - que parte do pressuposto de que o legislador escreveu mais do que realmente pretendia (plus scripsit quam voluit), diminuindo o alcance da lei (MONTORO, 2000, p. 374-375).
Já para Limongi França são três os critérios para classificar as espécies de interpretação:
· 1º critério – quanto ao agente: a) Pública que é prolatada pelos órgãos do Poder Público, sendo elas: judicial, legal ou autêntica e administrativa, esta dividindo-se em casuística e regulamentar; b) Privada, que é levada a efeito pelos particulares, especialmente pelos técnicos da matéria de que a lei trata, também é denominada de interpretação doutrinária (FRANÇA, 2009, p. 21-22).
· 2º critério: quanto à natureza: a) gramatical– que toma como ponte de partida o exame do significado e alcance de cada uma das palavras do preceito legal; b) lógica – que leva em consideração o sentido das diversas orações e locuções do texto legal, eclarecendo a conexão entre os mesmos; c) histórica – que pode ser remota, dirigida ao origo legis, isto é, às origens da lei ou próxima que se dirige ao occasio legis, sendo necessário fazer uso de outras ciências afins, como a sociologia, a economia e a política, para atingir seu objetivo; d) sistemática – com relação à própria lei a que o dispositivo pertence ou com relação ao sistema geral do direito em vigor, buscando descobrir a mens legislatoris da norma jurídica (FRANÇA, 2009, p. 23-24).
· 3º critério - quanto à extensão: a) declarativa; b) ampliativa; e c) restritiva (FRANÇA, 2009, p. 25-26).
É válido salientar que essas diversas técnicas ou espécies de interpretação não operam isoladamente, na realidade elas se completam, uma vez que não há uma hierarquização segura das múltiplas técnicas de interpretação (SOARES, 2009, p. 90).
Conclusão
Pelo exposto, percebe-se que o termo “hermenêutica” se refere à ciência da interpretação, enquanto “interpretação” significa determinar o sentido e o alcance da norma jurídica. Tais termos, portanto, não podem ser utilizados como sinônimos.
Outrossim, concluímos que a hermenêutica e a interpretação jurídicas se distinguem das demais formas de interpretação realizadas em sociedade pelo fato de que normas jurídicas são interpretadas para decidir conflitos.
O texto descreveu, por fim, os principais métodos da hermenêutica clássica, ressaltando a necessidade de sua aplicação conjunta e sistemática, bem como descreveu a classificação das espécies de interpretação.
Com isso, o objetivo de apresentar um texto introdutório e conceitual sobre a hermenêutica jurídica clássica, utilizando-se de uma linguagem simples, objetiva e didática, foi atingido.
REFERÊNCIAS
COELHO, Luiz Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica jurídica. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
FREIRE, Ricardo Maurício. Curso de introdução ao estudo do direito. Salvador: JusPodivm, 2009.
LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 33 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
SAMPAIO JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2001.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Curso de introdução ao estudo do direito. Salvador: JusPodivm, 2009.
WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. Porto Alegre: 1994.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Chiara Michelle Ramos Moura da. Noções introdutórias de hermenêutica jurídica clássica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39656/nocoes-introdutorias-de-hermeneutica-juridica-classica. Acesso em: 23 dez 2024.
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