Resumo: A hermenêutica jurídica é a teoria da interpretação do Direito. Inicialmente, a hermenêutica jurídica se conformava em estudar regras de subsunção para uma atividade interpretativa focada na plenitude do ordenamento jurídico. Hoje, a hermenêutica jurídica contemporânea abandona os métodos tradicionais e adota uma proposta de descrever as condições reais do intérprete.
Palavras-chave: hermenêutica jurídica, interpretação constitucional.
Introdução
A hermenêutica jurídica desenvolveu-se com o fim de organizar racionalmente o processo de interpretação e aplicação do Direito.
Neste estudo, pretende-se narrar, do modo mais sintético possível, a hermenêutica jurídica desde sua concepção tradicional até o ponto de vista contemporâneo.
Seguiremos aqui a lição de Carlos MAXIMILIANO (1999, p. 1), lançando mão do termo “hermenêutica” para se referir à teoria da interpretação, e não à interpretação em si.
A disciplina da hermenêutica jurídica é recente, mas oriunda de uma prolongada formação histórica: “a interpretação do direito acompanhou-lhe o desenvolvimento, a evolução, sofrendo na sua longa trilha influência das diversas doutrinas filosóficas, jurídicas, políticas e sociais, até atingir um estado de sistematização, quando passou a trabalhar com um método” (MAGALHÃES, 1989, p. 9).
Ponto determinante do pensamento hermenêutico tradicional é considerar a interpretação e a aplicação do Direito fases distintas, esta posterior àquela: “como se percebe, toda a doutrina tradicional, com o apoio de REALE, está fundada na perfeita separação entre o momento da interpretação do Direito, que corresponderia ao descobrimento do sentido do texto, e o momento de sua aplicação aos casos concretos que se pretende solucionar.” (DRUMOND, 2001, p. 60).
A hermenêutica tradicional ou clássica manifestou-se na França, com a Escola da Exegese, e na Alemanha, com a Escola Dogmática. Vigeu a era da “jurisprudência dos conceitos”, valendo-se os juízes, meros aplicadores do Direito, de processos lógicos para desvelar o sentido da norma (MAGALHÃES, 1989, p. 35-39).
Para afastar a interpretação do Direito do arbítrio do intérprete, a metodologia jurídica desenvolveu critérios orientados à vontade do legislador e ao sentido da norma, como o fez Savigny com seus elementos gramatical, lógico, histórico, sistemático (LARENZ, 1997, p. 449-450).
Fornecia-se ao intérprete uma lente (um dos métodos considerados apropriados ou sua utilização conjunta) para que ele descobrisse, exclusivamente no material observado (plenitude do ordenamento jurídico), aquilo que sempre (pois o sentido seria imutável, indiferente a qualquer variante) foi a verdade jurídica (suposta identificação da vontade do legislador ou do sentido inequívoco da norma).
Pela doutrina tradicional do Direito “haveria, sempre, a subsunção de um concreto estado de coisas a uma lei universal – a plenitude e suficiência do modelo subsuncional de aplicação do direito” (ARANHA, 1999, p. 76).
Os autores da hermenêutica clássica preocupavam-se em formular regras para a atividade interpretativa, ao passo que os pensadores contemporâneos envolveram-se com a filosofia subjacente à atividade de interpretar e concretizar as normas jurídicas (SILVA, 2001, p. 108). A defasagem do pensamento tradicional foi revelada incontestavelmente por sua insuficiência no trato da interpretação constitucional.
Na “Velha Hermenêutica” interpretava-se a lei à exaustão, por meio de operações lógicas. Na “Nova Hermenêutica”, concretiza-se o preceito constitucional, o que significa interpretar com criatividade[1] (BONAVIDES, 2000, p. 585). As regras tradicionais de interpretação, que operam pela “abstração do problema concreto a decidir” e, em seguida, “a subsunção em forma de conclusão silogística com o conteúdo da norma” (ALVARENGA, 1998, p. 90-91), perdem lugar no contexto da interpretação constitucional.
Conclui Lúcia B. F. de ALVARENGA (1998, p. 87): “Destarte, a questão hermenêutica deixa de ser um problema de correta subsunção do fato à norma – com sua carga lógica, histórica, sistemática, teleológica e valorativa – para se tornar um problema de conformação política dos fatos, isto é, de sua transformação conforme um projeto ideológico”. Completa Maria da Conceição Ferreira MAGALHÃES (1989, p. 17): “isto porque a Hermenêutica não se refere somente à lei, mas ao direito; seu escopo é compreender o conteúdo das formas de expressão do direito, daí estar o problema da interpretação muito jungido ao da teoria das fontes do Direito.”
No mesmo sentido, Rubens Limongi FRANÇA (1988, p. 22):
Quando se fala em hermenêutica ou interpretação, advirta-se que elas não se podem restringir tão-somente aos estreitos termos da lei, pois conhecidas são as suas limitações para bem exprimir o direito, o que, aliás, acontece com a generalidade das formas de que o direito se reveste. Desse modo, é ao direito que a lei exprime que se devem endereçar tanto a hermenêutica como a interpretação, num esforço de alcançar aquilo que, por vezes, não logra o legislador manifestar com a necessária clareza e segurança.
O Direito é um fenômeno cultural. Como objeto do conhecimento, não se apresenta inerte frente ao observador, estático, de valor neutro, como é próprio dos objetos dos fenômenos ditos naturais, mas sim em um ir e vir ininterrupto entre sua materialidade e sua vivência (COELHO, 2003, p. 35-38).
A ampliação do rol de métodos e sua flexibilização em virtude das influências sócio-jurídicas e históricas, típicas da permeabilidade entre sujeito que interpreta e objeto interpretado, dão a tônica da hermenêutica jurídica contemporânea: “O intérprete, em contato com a realidade social, encontrará, através do manejo flexível dos métodos, a solução jurídica compatível à nova sociedade” (MAGALHÃES, 1989, p. 137).
Como é impossível a compreensão jurídica exclusivamente pela escavação do texto normativo, que se pretendia pleno e unívoco frente às pretensões da hermenêutica tradicional, o atual aplicador do Direito constrói o sentido da norma pela interpretação:
Por isso dizer-se que o sentido da lei é construído mediante sua interpretação. Essa lhe supre as deficiências de incompletitude, conformando sua aparência por meio da insígnia do legislador ideal, a semelhança de um quebra cabeças, em que somente vai sendo possível captar melhor o desenho que ele contém pela insistência de tentativas interpretativas a seu respeito (ARANHA, 1999, p. 74).
Seguindo a hermenêutica tradicional na renovação da metodologia contemporânea, em especial, no que nos interessa, da interpretação constitucional, surgem os métodos tópico, concretizador, científico-espiritual e normativo-estruturante.[2]
No que pesa à hermenêutica constitucional, a contribuição de Konrad HESSE (1998, p. 61) foi levar o foco do procedimento de realização do Direito Constitucional para as particularidades concretas das condições de vida, aliadas ao contexto normativo. “Interpretação constitucional é concretização.”
Nesse panorama da concretização, ou da “Nova Hermenêutica” (BONAVIDES, 2000, p. 544), não há lugar para os métodos tradicionais de interpretação, instituídos por Savigny (gramatical, sistemático, histórico, teleológico), em si mesmo considerados[3], haja vista a Constituição não oferecer critérios inequívocos, seguros, que proporcionem diretrizes suficientes: “onde nada de unívoco está querido, nenhuma vontade real pode ser averiguada” (HESSE, 1998, p. 57). Sendo a norma indeterminada, ela não pode ser fundamento único para a interpretação (ALVARENGA, 1998, p. 96).
O intérprete termina por escolher livremente, a seu bel-prazer, quais métodos e princípios serão aplicados (COELHO, 2003, p. 108). As regras tradicionais não podem ser consideradas independentes umas das outras, havendo por indispensável sua integração. “Não há um método único e seguro que garanta a verdade do conhecimento humano” (SILVA, 2001, p. 139). Como entre os métodos não existe hierarquia, é impossível decidir racionalmente qual deles utilizar quando levam a resultados distintos.
Assim, na esteira da mencionada “viragem” da hermenêutica filosófica, a hermenêutica jurídica abandona os métodos tradicionais e parte na direção de “ajustar os modelos jurídicos às necessidades de um mundo cada vez mais complexo e, por isso, cada vez menos propício a toda forma de arrumação” (COELHO, 2003, p. 76).
Pode-se concluir, a partir de GADAMER (2003, p. 631), que “a hermenêutica jurídica é uma proposta de descrever as condições reais do intérprete e não uma oferta de critérios ou métodos científicos” (STRECK, 2000, p. 198).
Conclusão
A hermenêutica jurídica tradicional era voltada à formulação de regras para uma atividade interpretativa que se exauria na plenitude do ordenamento jurídico, pela simples subsunção dos fatos às normas.
No atual contexto, o da hermenêutica jurídica contemporânea, o sentido da norma não é mais descoberto, mas construído pela interpretação. A interpretação existe na incidência de um caso concreto que demanda solução. Ao interpretar, o exegeta (na acepção ampla do termo, não apenas relacionado aos militantes da Escola da Exegese), funde o seu horizonte de experiência presente (no que atua a pré-compreensão) ao horizonte passado relativo ao momento de criação do texto normativo. O caminho termina por anunciar um desfecho autêntico, original, e, sobretudo, mutável, pois a renovação do processo em outro caso ou em diferente momento (ou ambos) conduz a resultado próprio. Uma interpretação é um ato único, que se renova a cada instante, e que adiciona significado àquilo que se interpreta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVARENGA, Lucia Barros Freitas de. Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza: Uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998.
ARANHA, Márcio Iorio. Interpretação constitucional e as garantias institucionais dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 1999.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1992.
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 2ª ed. Porto Alegre: Fabris, 2003.
DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 1998.
DRUMOND, João Francisco Aguiar. Interpretação do Direito e da Constituição: aspectos gerais. Brasília, 2001. 153 f. Dissertação (Mestrado em Direito e Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília.
FRANÇA, Rubens Limongi. Hermenêutica jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. vol. 1. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 1998.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
MAGALHÃES. Maria da Conceição Ferreira. A hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999.
SILVA, Christine Oliveira Peter da. Hermenêutica de direitos fundamentais: uma proposta constitucionalmente adequada. Brasília, 2001. 267 f. Dissertação (Mestrado em Direito e Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
NOTAS:
[1] “A liberdade de criação do intérprete, portanto, não pode ser eliminada na interpretação, porque isso equivaleria a negar a sua própria humanidade. No entanto, da sua vinculação à realidade objetiva resulta que liberdade de criação não implica arbitrariedade na atribuição de sentido.” (DINIZ, 1998, p. 269)
[2] Para uma exposição sobre os referidos métodos de interpretação constitucional, conferir: CANOTILHO, 1992, p. 218-221; BONAVIDES, 2000, p. 446-480; e COELHO, 2003, p. 107-125, que também discorre sobre esses métodos de “esotérica denominação” (p. 108).
[3] Para ficar claro: “Desse modo, a hermenêutica de Savigny não perdeu a sua aplicabilidade, quando se trata de interpretar a Constituição. Apenas não é a única ou a melhor possibilidade, nem possui a amplitude que se lhe pretende atribuir, como é o caso, por exemplo, de Ernst Forsthoff, pois não se deve deixar de levar em conta a importância dos princípios hermenêuticos elaborados pela teoria constitucional contemporânea.” (DINIZ, 1998, p. 247). Os critérios lógico-subsuntivos de Savigny ainda são úteis como “controle adicional de concordância” (ARANHA, 1999, p.72).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Hermenêutica jurídica tradicional e contemporânea Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41034/hermeneutica-juridica-tradicional-e-contemporanea. Acesso em: 22 nov 2024.
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