Resumo: Entre os modelos de Estado contemporâneo, destacam-se o do Bem Estar Social, no qual o próprio Estado se compromete a prestar serviços considerados essenciais à sobrevivência dos indivíduos, e o Neoliberal, que defende a exclusiva atuação econômica dos particulares. O Estado Democrático de Direito brasileiro, inaugurado com a Constituição de 1988, não se resume a um modelo político-jurídico apenas, mas sua natureza mista não impede o reconhecimento do dever estatal de concretizar políticas públicas diretamente do texto constitucional.
Palavras-chave: Constituição, Estado Democrático de Direito, direitos sociais, concretização.
Formação do Estado
Explica Dalmo de Abreu Dallari (1998, p. 52-53) que inúmeras teorias especulam a respeito da época de surgimento do Estado. Para alguns autores, o Estado, assim como a própria sociedade, existiu sempre. Outros admitem que a sociedade existiu sem o Estado durante um certo período, passando a se constituir para atender às necessidades ou às conveniências dos grupos sociais. Outra posição só entende como Estado a sociedade política dotada de certas características muito bem definidas.
Quanto à formação do Estado, também diverge a doutrina (DALLARI, 1998, p. 54-56). Umas correntes afirmam que o Estado se formou naturalmente, independente da vontade humana. As teorias contratualistas creem que foi a vontade de todos ou de alguns homens que levou à criação do Estado. Outras teorias defendem a origem familiar: cada família primitiva se ampliou e deu origem a um Estado. Outros defendem que a superioridade de força de um grupo social permitiu-lhe submeter um grupo mais fraco, nascendo o Estado. Há também teorias de origem em causas econômicas, como sustenta Marx, pelas quais o Estado teria sido formado para se aproveitarem os benefícios da divisão do trabalho, sendo uma criação artificial para a satisfação dos interesses de uma minoria.
Os teóricos contratualistas, destacando-se entre eles Rousseau e Hobbes, argumentam que o homem a princípio se encontraria em um “estado de natureza”, no qual ele seria completamente livre e com o dever único de sobreviver. As relações entre as pessoas seriam regidas então pela “lei do mais forte”. Mas como nenhum homem tem força suficiente para garantir sempre o seu bem-estar, ele procura então estabelecer acordos com outros homens, que permitam a sua coexistência pacífica (ROUSSEAU, p. 29-30). Dito de outra forma, a partir de um determinado momento, os obstáculos à sobrevivência no estado de natureza ultrapassam as possibilidades de cada pessoa, obrigando-as a unir-se e agir em conjunto. Da competição natural passa-se então para a cooperação, criada a partir do pacto entre os homens. Neste contrato, cada homem abdicaria de sua autonomia individual em benefício da estabilidade da vida em comum. Uma entidade única passa a garantir a segurança e a liberdade dos indivíduos: o Estado.
Modelos de Estado
Para o tema que aqui nos interessa, podemos identificar sinteticamente quatro modelos distintos de Estado no mundo ocidental a partir do fim da Idade Média.
O primeiro deles é o Estado Moderno Absolutista, ou simplesmente Estado Absolutista, presente na Europa dos séculos XV a XVIII. É caracterizado pelo regime monárquico, onde o imperador concentrava os poderes. Não havia limites para a ação do Estado, que chegava até onde o imperador desejasse, pois era ele o responsável tanto pela formulação quanto pela aplicação das leis. Classifica-se como absolutista exatamente pela ausência de limites para a sua atuação.
A partir do século XVIII, essa forma de Estado entrou em choque com homens que nele viam uma tendência muito forte a desprezar as liberdades individuais. Tentou-se colocar limites legais para a sua intervenção, conferindo seus três poderes a diferentes grupos de pessoas, e fixando-os sob a forma de uma Constituição. Esta nova forma de Estado tinha a característica de permitir a participação política de pelo menos parte da população, além do objetivo expresso de garantir as liberdades individuais. Por esses motivos pode ser chamado de Estado Liberal.
Uma terceira forma de Estado, que surge no século XX, com base na teoria econômica consolidada pelo economista inglês Jonh Maynard Keynes, é aquela que se convencionou chamar de Estado do Bem-Estar (Welfare State). Sua peculiaridade reside em que, além de garantir as liberdades individuais e políticas, ele se preocupa também em fornecer as condições básicas para a sobrevivência de seus membros, como o atendimento à saúde, à educação e à moradia. Essa forma de Estado foi proporcionada pela ampliação da cidadania aos segmentos mais pobres da população, que passaram a cobrar dos governantes medidas para atenuar sua situação de miseráveis e de excluídos da vida social. O Estado do Bem-Estar elege como sua função principal a de garantir os direitos e liberdades preconizados pela Constituição.
Por fim, o mais recente modelo estatal se delineou na segunda metade do século XX, com base na doutrina de Milton Friedman: o Estado neoliberal, “que tinha como pressuposto primordial, que o Estado não deveria fornecer as funções básicas, mas, apenas, regular estas funções, cabendo às empresas privadas a responsabilidade pela realização desses serviços essenciais”, como ensina René Dellagnezze.
Estado Democrático de Direito
A promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, inaugurou o atual Estado brasileiro. Logo no art. 1º, a Constituição define a República Federativa do Brasil como um “Estado Democrático de Direito”. Mas qual modelo foi adotado: o do Bem-Estar Social ou o Neoliberal?
Indícios do padrão neoliberal estão no art. 170, IV, que traz a livre concorrência como princípio da ordem econômica; no parágrafo único do art. 170, que garante o livre exercício de qualquer atividade econômica; no art. 173, que restringe a exploração direta de atividade econômica pelo Estado apenas “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”; no § 2º do art. 173, que impede tratamento fiscal diferenciado às empresas públicas e às sociedades de economia mista.
Por sua vez, são sinais do modelo do bem estar social os deveres do Estado brasileiro de promover a saúde (art. 196); de garantir a assistência social gratuita (art. 203); de oferecer educação (art. 205); de fomentar práticas desportivas (art. 217), entre outras obrigações.
A verdade é que o Estado brasileiro é complexo, impossível de se caracterizar em um modelo estanque. É o que também conclui René Dellagnezze:
Dessa forma, a nosso ver, ao que se depreende, é que o Estado brasileiro, a partir de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, também conhecida como Constituição Cidadã, paradoxa e democraticamente, conviveu e convive hoje com um sistema misto, vale dizer, com as duas experiências de Estado, o “Estado de Bem Estar Social”, defendido por Jonh Maynard Keynes e, ao mesmo tempo, com o “Estado Neoliberal”, sustentado por Milton Friedman, (...)
Dessa forma, parece infrutífera qualquer tentativa de enquadrar o Estado brasileiro em um modelo político-jurídico pré-configurado.
Inevitável pensar que a simples vinculação ao modelo do Bem Estar Social seria bastante útil, pois reforçaria sobremaneira a legitimidade do pleito dos credores das políticas públicas. Mas tal pretensão pode ser fundamentada diretamente da Constituição, independentemente de qualquer formulação teórica sobre o propósito em abstrato do Estado, como será demonstrado a seguir.
A concretização de políticas públicas pelo Estado
No Estado Democrático de Direito brasileiro, a dignidade da pessoa é o fundamento maior, norte axiológico, apesar de constar apenas em terceiro lugar no rol dos fundamentos do Estado (CF, art. 1º, III).
São objetivos do Estado (CF, art. 3º), em especial, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Adiante, nos arts. 6º, 7º e 8º e nos arts. 193 a 232, dos quais se recomenda uma leitura cadenciada, nossa Constituição dedica-se atentamente aos direitos sociais. Verifica-se que o Estado tomou para si diversas obrigações jurídicas, deveres que não podem ser ignorados.
A hermenêutica constitucional contemporânea tem por instrumentos os chamados princípios de interpretação. Ensina Inocêncio Mártires COELHO (2003, p. 130) que tais princípios devem ser aplicados conjuntamente, em um “jogo concertado”, resultando, ao fim, “a sua mútua e necessária conciliação”.
O princípio da máxima efetividade das normas constitucionais orienta o aplicador do Direito para extrair do texto o sentido que mais lhe dê eficácia (COELHO, 2003, p. 137). Disso decorre que os direitos sociais gozam de um mínimo de efetividade ou aplicabilidade.
Em reforço, o princípio da força normativa da Constituição impõe à sociedade concretizar os direitos abstratamente previstos, isto é, transformar o papel em realidade, pois, como já dizia Norberto Bobbio (1992, p. 25):
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.
Nesse aspecto, os direitos sociais recebem um tratamento privilegiado pelo Estado, e sua execução abrange o exercício de todos os Poderes estatais.
Inicialmente, cabe ao Poder Legislativo minuciar os direitos sociais, tendo por base o texto constitucional, quando – e na medida em que – necessário. Em segundo lugar, compete ao Poder Executivo concretizar os direitos, propriamente executando os direitos, colocando ao final o bem da vida na mão do seu beneficiário.
Caso o Legislativo não produza a norma de efetivação do direito, caso o Executivo não atue positivamente na realização da norma ou, atuando, não assegure o mínimo existencial devido, o Poder Judiciário deve agir, fenômeno que se denomina judicialização da política.
Em ponderação de valores, o princípio da reserva do possível não supera a necessidade de garantia do núcleo essencial de um direito social. Nesse ponto, vale a transcrição de excertos da ementa do julgamento da Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 45:
(...) não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em Referência [ADPF], considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.
Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional:
“DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.
- O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.
- Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.
.......................................................
- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.”
(RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)
(...)
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
(...)
Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo.
É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.
(STF, ADPF 45 MC / DF - DISTRITO FEDERAL, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Publicação: DJ 04/05/2004, p. 12)
Conclusão
Diversas teorias se propõem a explicar a época de surgimento do Estado e as razões para sua formação. Quanto aos modelos de Estado, quatro dominaram o mundo ocidental desde a Idade Moderna: o absolutista, o liberal, o do bem estar social e o neoliberal.
O Estado do Bem Estar Social (Welfare State) pretende, além de garantir as liberdades individuais e políticas, fornecer ele próprio as condições básicas para a sobrevivência de seus membros, como o atendimento à saúde, à educação e à moradia. Por sua vez, o Estado Neoliberal tem por pressuposto a prestação de serviços exclusivamente por empresas privadas, cabendo ao Poder Público apenas a atividade de regulação.
A Constituição brasileira de 1988 intitula o País como um Estado Democrático de Direito. Não há como definir o modelo estatal em nenhuma categoria fixa pré-existente. Os olhos do analista político e do jurista devem se voltar para o próprio texto constitucional, alheios a elucubrações reducionistas.
Os arts. 1º e 3º, os arts. 6º, 7º e 8º e os arts. 193 a 232 da Constituição são a base normativa suficiente para vincular ao Estado o dever de concretizar políticas públicas, haja vista os princípios hermenêuticos da máxima efetividade das normas constitucionais e da força normativa da Constituição.
Caso os Poderes Legislativo e Executivo falhem em algum ponto na missão de concretizar as políticas públicas, cabe ao Judiciário agir, garantindo, ao menos, a efetivação do núcleo essencial do direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
DELLAGNEZZE, René. O estado de bem estar social, o estado neoliberal e a globalização no século XXI. Parte II - O estado contemporâneo. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 107, dez 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12618>. Acesso em nov 2014.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social e outros escritos. São Paulo: Cultrix, s.d.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Dever estatal de concretizar políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 nov 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41617/dever-estatal-de-concretizar-politicas-publicas. Acesso em: 22 nov 2024.
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