Resumo: O artigo cuida do exame da natureza dos princípios e das regras jurídicas, semelhanças e dessemelhanças entre tais normas, além dos critérios desenvolvidos pela doutrina para identificá-las. Também é analisada a dualidade de conceitos doutrinários sobre o que são princípios jurídicos e os efeitos práticos que podem decorrer dessa divergência, na medida em que implicam distintos regimes jurídicos de incidência normativa.
Palavras-chave: Princípios jurídicos. Regras jurídicas. Natureza Jurídica. Critérios de distinção. Conceito de princípio jurídico. Divergência Doutrinária. Conseqüências.
I. Introdução:
Cuidaremos neste brevíssimo estudo de tema de extrema relevância, consistente no exame dos princípios e das regras jurídicas.
A análise da natureza dos referidos fenômenos normativos será nosso ponto de partida. Em seguida, um rápido registro da evolução do pensamento jurídico em relação à autonomia normativa dos princípios.
Avaliaremos então os conceitos oferecidos pela doutrina sobre os princípios jurídicos, promovendo certa reflexão sobre a dualidade conceitual que, aos nossos olhos, pode ter o condão de levar o aplicador da norma a cometer equívocos no instante de promover a sua incidência no caso concreto.
No passo seguinte terá lugar a análise das semelhanças e dessemelhanças entre as normas em estudo.
Ressalte-se que não é nosso objetivo realizar qualquer investigação científica de profundidade, mas apenas promover um rápido apanhado sobre o tema. Esperamos oferecer subsídios que, de algum modo, enriqueçam o estudo e a compreensão da matéria, colaborando no processo de aprendizagem de estudantes e profissionais do Direito.
Caso atingido tal objetivo reputamos, singelamente, cumprida nossa missão.
II. O conceito de norma jurídica e suas espécies: regras e princípios.
Aponta a doutrina que o conceito de norma jurídica é assunto tormentoso e longe de pacificação entre os estudiosos do Direito[1]. A variedade de entendimentos decorre dos diferentes enfoques aplicados sobre esse mesmo fenômeno: a norma jurídica.
Extrai-se da obra de Maria Helena Diniz conclusão no sentido de que essa ordem de coisas – diversidade de conceitos relativos à norma jurídica – dificulta a perfeita compreensão do tema, pois torna impreciso o objeto de estudo. Por conta dessa preocupação aponta a i. Professora que: “Isto nos leva a pensar na necessidade de buscar, com absoluta objetividade, o conceito de norma jurídica, pois os juristas, pela dificuldade de discernir o mínimo necessário de elementos sobre os quais se deve basear a definição de seus caracteres, chegam a conclusões opostas. Para se determinar a essência da norma jurídica dever-se-á ter presente que ‘um dos caminhos para a descoberta das essências das coisas é o que leva à intimidade das palavras que a simbolizam’, revelando sua íntima estrutura, desvendando os elementos de que se compõem, enumerando seus aspectos inteligíveis ou notas”[2].
Por entendermos que escapa à natureza deste estudo incursão vertical nessa problemática, restringimo-nos a consignar a existência de forte divergência doutrinária acerca do conceito de norma jurídica e, desde logo, apontamos o conceito que nos parece mais acertado para prosseguirmos em nossa caminhada, visto que é a partir de tal marco que iremos ganhar velocidade em nossa jornada.
Atentos às lições de Maria Helena Diniz, que propõe um conceito absolutamente objetivo da norma jurídica - dele expurgando todos os elementos acidentais e acessórios que não dizem respeito à essência do instituto – assentamos que norma jurídica é um comando imperativo e autorizante.
Valhemo-nos da pena segura da Professora emérita da Pontifica Universidade Católica de São Paulo para clarificar o conceito acima proposto: “A norma jurídica é imperativa porque prescreve as condutas devidas e os comportamentos proibidos e, por outro lado, é autorizante, uma vez que permite ao lesado pela sua violação exigir o seu cumprimento, a reparação do dano causado ou ainda a reposição das coisas ao estado anterior. Por conseguinte, a norma jurídica se define, como ensina Goffredo Telles Jr., ‘imperativo-autorizante’. Conceito este que é, realmente, essencial, pois constitui a síntese dos elementos necessários que fixam a essência da norma jurídica. Esta, sem qualquer um destes elementos eidéticos, afigura-se incompreensível. Deveras uma norma jurídica que careça do autorizamento será uma norma moral, e sem a nota da imperatividade, apenas uma lei física”[3].
Firmado o conceito de norma jurídica cabe perquirir acerca de suas espécies.
Atualmente não temos notícia de doutrina que não reconheça as regras e os princípios jurídicos como espécies do gênero “norma jurídica”.
Sobre as regras não há dúvida que são normas jurídicas, porque adotam um modelo normativo que se ajusta, facilmente, ao conceito proposto linhas acima. São inequívocos comandos imperativos-autorizantes.
Tanto é assim que o saudoso Miguel Reale utiliza o termo “regras jurídicas” como sinônimo de “normas jurídicas” em sua clássica obra “Lições Preliminares de Direito”[4].
Como exemplo de regra jurídica, citamos o comando expresso no artigo 195, § 6º, da Constituição Federal, que dispõe sobre a denominada “anterioridade nonagesimal” para a exigência de contribuições sociais.
Por sua vez, a compreensão de que os princípios jurídicos são espécies de normas autônomas ganhou fôlego apenas a partir do período denominado como “pós-positivismo”.
O Professor Paulo Bonavides[5] apresenta em sua doutrina um rico panorama sobre a evolução do pensamento sobre a carga normativa dos princípios jurídicos. O douto constitucionalista alerta que os princípios jurídicos passaram por três estágios no que concerne ao reconhecimento da autonomia de sua carga normativa.
Em um primeiro instante – durante o período jusnaturalista – os princípios possuíam apenas a “dimensão ético-valorativa”[6] do conceito de Justiça. Nesse período, em contraste, a carga normativa reconhecida aos princípios é praticamente nula.
Em seguida, durante o movimento positivista, os princípios jurídicos são vistos como uma “fonte normativa subsidiária”[7]. Recebem, inclusive, positivação no corpo de codificações no escopo de supostamente garantirem a plenitude desses sistemas, pretendendo a eliminação de eventuais lacunas normativas.
Durante a fase positivista entende-se que os princípios decorrem, direta ou indiretamente, do próprio Direito Positivo. Também não se reconhece carga normativa autônoma aos princípios.
É somente durante o período rotulado como “pós-positivista” que os princípios passam a ser reconhecidos, definitivamente, como preceitos dotados de autonomia normativa. Leciona Paulo Bonavides: “É na idade do pós-positivismo que tanto a doutrina do Direito Natural como a do velho positivismo ortodoxo vêm abaixo, sofrendo golpes profundos e crítica lacerante, provenientes de uma reação intelectual implacável, capitaneada sobretudo por Dworkin, jurista de Harvard. Sua obra tem valiosamente contribuído para traçar e caracterizar o ângulo novo de normatividade definitiva reconhecida aos princípios”[8].
O pós-positivismo “(...) rearticula o direito e a moral, buscando introduzir elementos morais na fundamentação estritamente jurídica das decisões judiciais, reconhecendo a magnitude de padrões normativos que não se limitam às tradicionais proibições, permissões e obrigações (...)”[9].
É a partir dessa fase do pensamento jurídico que se sedimenta a concepção de que os princípios jurídicos - ao lado das regras - ostentam a natureza de norma jurídica, isso porque: “(...) ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos concretos de dever-ser, ainda que de espécie muito diferente. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção entre duas espécies de normas”[10].
Essa concepção sobre a autonomia normativa dos princípios jurídicos permanece atual.
Os estudiosos reconhecem o relevante papel desempenhado pelos princípios jurídicos para o perfeito funcionamento do sistema jurídico. Segundo o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, princípio jurídico é: “Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce deste, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas comparando-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”[11].
Um sistema jurídico completo, coerente e uniforme é aquele que traz em seu corpo as duas espécies de normas jurídicas: regras e princípios jurídicos.
Conceber um sistema jurídico dotado apenas de regras implicaria aceitar um sistema incompleto e incoerente, haja vista que é impossível que o legislador estabeleça um quadro de regras capaz de resolver todos os conflitos decorrentes da vida em sociedade, sobremodo quando se trata dos atuais tecidos sociais. Um sistema essencialmente composto por regras seria inflexível, rígido, atributo que não se coaduna com a dinâmica marcante da vida em sociedade.
Por outro lado, imaginar um sistema jurídico composto apenas por princípios - normas carregadas de valores, sentidos e funções - que demandasse ponderações constantes por parte do aplicador da norma para fazê-la incidir ao caso concreto, geraria quadro de extrema insegurança jurídica por razões óbvias. Isso igualmente não interessa aos fins para os quais se propõe o Direito.
Um sistema jurídico que se pretenda completo, coerente e uniforme é aquele composto por regras e princípios jurídicos.
Tecidas essas considerações sobre a norma jurídica e suas espécies (princípios jurídicos e regras jurídicas), podemos dar mais um passo em nossa caminhada, na direção do exame das semelhanças e distinções entre princípios e regras jurídicas.
III. Semelhanças e distinções entre princípios e regras jurídicas: uma reflexão sobre o conceito de princípios.
Conforme já dissemos, tanto as regras como os princípios jurídicos são comandos “imperativos-autorizantes”.
Embora os princípios ostentem peculiaridades quando submetidos a contraste perante as regras, também eles impõem comportamentos, autorizando a exigência forçada na hipótese de descumprimento.
O maior grau de abstração dos princípios jurídicos não impede que sirvam como comandos “imperativos-autorizantes”, pois, conforme esclarece a doutrina: “Trata-se da expressão dos valores principais de uma dada concepção do Direito, naturalmente abstratos e abrangentes. Não quer isso dizer, todavia, que os princípios são inteiramente ou sempre genéricos ou imprecisos: ao contrário, possuem um significado determinado, passível de um satisfatório grau de concretização por intermédio das operações de aplicação desses preceitos jurídicos nucleares às situações de fato”[12] (grifo nosso).
Citamos como exemplo de princípio jurídico que admite pronta aplicabilidade, independentemente de interposição legislativa, o artigo 150, IV, da Constituição Federal, que estabelece a vedação da tributação confiscatória.
Saltam aos olhos o grau de abstração e as possibilidades interpretativas decorrentes desse preceito constitucional. A partir de que montante ou percentual considera-se confiscatória a tributação? Envolve a carga tributária total incidente sobre determinada situação jurídica ou diz respeito a cada tributo?
Uma coisa é certa sobre o artigo 150, IV, da Constituição Federal: não se discute sua carga normativa. É um “comando imperativo-autorizante” que vincula contribuinte e Estado.
Esse é, portanto, um ponto de semelhança entre regras e princípios jurídicos: ambos são comandos imperativos-autorizantes.
Temos que esse é o ponto de coincidência mais relevante entre tais normas jurídicas, por isso podemos desde logo passar ao exame das diferenças entre as regras e os princípios jurídicos.
Um primeiro critério de distinção identificado pelos estudiosos do tema é a diferença de generalidade entre regras e princípios. Os princípios seriam mais gerais em relação às regras, conforme a pouco fizemos menção.
Amparado nas lições de Alexy, Paulo Bonavides afirma que: “(...) os princípios são normas dotadas de alto grau de generalidade relativa, ao passo que as regras, sendo também normas, têm, contudo, grau relativamente baixo de generalidade. Alexy exemplifica. E o faz tomando a norma segundo a qual toda pessoa desfruta da liberdade de crença, como norma com um grau relativamente de alta generalidade, ao passo que a norma sobre o direito que todo preso possui de fazer proselitismo em favor de suas crenças junto doutros presos seria ilustração das normas de reduzido grau de generalidade. Portanto, é possível, segundo lhe afigura, classificar as normas de acordo com o critério da generalidade, sendo umas princípios, enquanto outras são regras”[13] (grifo nosso).
José Joaquim Gomes Canotilho em sua clássica obra “Direito Constitucional”[14] indica ainda outros critérios de distinção entre regras e princípios, quais sejam: a-) grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto; b-) caráter de fundamentabilidade no sistema das fontes de direito; c-) a proximidade da idéia de direito e a d-) natureza normogenética. Passemos em rápida revista a tais fatores de distinção entre normas e princípios jurídicos:
a-) grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto.
Enquanto os princípios, porque vagos e indeterminados, carecem de interposição normativa para que sejam aplicados ao caso concreto, as regras permitem incidência imediata, dispensando qualquer mediação normativa.
b-) caráter de fundamentabilidade no sistema das fontes de direito.
Os princípios sintetizam valores fundamentais em um determinado sistema jurídico, ocupando posição hierárquica eminente em função de tal densidade normativa. Já as regras jurídicas veiculam comandos normativos dotados de menor densidade valorativa.
c-) a proximidade da idéia de direito.
A esse respeito, pontua Gomes Canotilho que as normas se diferenciam haja vista que: “os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’ (DWORKIN) ou na ‘idéia de direito’ (LARENZ); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional”.[15]
d-) natureza normogenética.
Os princípios jurídicos em virtude de sua elevada densidade normativa servem de matrizes para a gênese das regras jurídicas. Constituem desse modo a ‘ratio’ dessas últimas.
As regras jurídicas, por seu turno, não possuem papel normogenético dentro dessa ordem de raciocínio.
Pois bem.
Mas outra ordem de distinção entre regras e princípios jurídicos pode ser apresentada, construída sob uma perspectiva diversa.
Os critérios de distinção expostos até este momento baseiam-se, segundo entendemos, no exame do conteúdo da norma jurídica. Estabelece-se a natureza de regra ou princípio jurídico de acordo com as notas extraídas do conteúdo de uma determinada norma jurídica. Uma meditação sobre os critérios propostos pelos Professores Gomes Canotilho e Ronald Dworkin autoriza essa linha de raciocínio.
E parcela significativa da doutrina constrói o conceito de princípio jurídico com base no conteúdo da norma analisada. O conceito lapidado por Celso Antônio Bandeira de Mello é um claro exemplo desse prisma de análise: “Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce deste, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas comparando-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”[16].
Já a obra de Robert Alexy[17] oferece outro olhar sobre o conceito de princípio jurídico, propondo critério distintivo que não está ancorado no conteúdo da norma.
Robert Alexy apresenta critério “axiologicamente neutro”[18], construído a partir de observação da própria estrutura do comando normativo. Põe atenção sobre a forma, sobre a cápsula que envolve o conteúdo normativo.
Sinteticamente, para Robert Alexy a diferença entre regras e princípios reside no fato de que esses últimos são “mandamentos de otimização”, que impõem ao aplicador da norma a máxima observância possível diante de um determinado caso concreto, ao passo que as regras jurídicas são “determinações”, não admitindo outro comportamento por parte do aplicador da norma que não seja obedecê-la estritamente.
Neste passo nada mais adequado do que trazermos à colação as próprias palavras do Mestre de Kiel: “o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que e fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.”[19] (grifos nossos).
Nota-se, portanto, que existe uma clara variação em relação ao conceito de princípio jurídico, a depender da linha de raciocínio adotada. Uns constroem o conceito arrimados no conteúdo da norma jurídica, outros em sua forma.
Esse fato merece especial atenção por parte do aplicador da norma, porque pode conduzi-lo a reconhecer como regra algo que é princípio, e vice-versa. E daí pode advir conseqüências indesejadas, que serão avaliadas mais a frente. Suficiente por ora termos em mente essa dualidade de conceitos.
Retomemos nossa trilha.
Vimos, portanto, que a doutrina oferece gama considerável de instrumentos para que o operador do direito possa identificar qual a natureza da norma jurídica que está a sua frente, se regra ou princípio jurídico.
Em assim sendo, considerada a natureza perfunctória desta exposição, temos como suficientemente esclarecida a discussão acerca das semelhanças e distinções entre regras e princípios jurídicos.
IV. Conclusão.
Tanto os princípios jurídicos como as regras são espécies de normas jurídicas. Expressam comandos imperativos-autorizantes que servem, cada um ao seu modo, para a regulação de comportamentos humanos.
Ainda que os princípios jurídicos (expressos ou implícitos) sejam dotados de maior grau de abstração vimos que eles também possuem carga normativa autônoma.
Chegamos então à conclusão de que um sistema jurídico equilibrado é aquele formado simultaneamente por regras e princípios.
No que diz respeito ao conceito de princípio jurídico, observamos a existência de certa dualidade doutrinária na definição desse fenômeno jurídico, realidade indesejada que não pode passar despercebida ao aplicador da norma.
Isso porque parte da doutrina talha o conceito de princípio valorando o conteúdo da norma, outros a sua forma. Expusemos conceitos estribados em ambas as linhas de pensamento no fito de demonstrar esse fato.
Mas quais seriam as conseqüências negativas dessa dualidade conceitual?
A imediata e óbvia conseqüência é o risco de que o aplicador da norma não reconheça, corretamente, a natureza da norma que está a sua frente: regra ou princípio jurídico?
Tomemos como exemplo o artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, que dispõe: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
De acordo com a doutrina esse texto normativo veicula o “princípio da anterioridade penal”[20]. E o reconhecimento dessa norma como “princípio”, sem dúvida, apóia-se na densidade normativa do seu conteúdo, verdadeira conquista democrática do cidadão em face do Estado.
Mas então cabe a pergunta: estamos diante de um “mandado de otimização” que comporta ponderação e admite aplicação segundo a lógica do “tanto quanto possível”, conforme o quadro fático e jurídico?
Cremos que a resposta é desenganadamente negativa.
O artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal encerra, na verdade, um “mandado de definição” que não comporta ponderação e obedece à lógica do “tudo ou nada”. Impõe ao aplicador da norma um único comportamento possível: obedecê-lo quando desenhado o quadro fático e jurídico que reclama a sua incidência.
Sob o enfoque do pensamento de Alexy (conceito de princípio jurídico com esteio na forma da norma jurídica), o artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal veicularia uma “regra jurídica”, não um princípio.
Observe-se que se instala certa dúvida sobre a natureza jurídica do inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal, dúvida que decorre da dualidade de conceitos oferecidos pela doutrina sobre o que é um “princípio jurídico”.
E dessa incerteza sobre qual a espécie normativa que o operador do direito tem em mãos decorre uma segunda conseqüência, também negativa: o risco de que seja promovido um regime de incidência incompatível com a natureza da norma. Tentaremos ilustrar essa afirmação.
Ainda tendo em consideração o artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, poder-se-ia chegar a situação na qual o aplicador da norma - porque equivocado em sua percepção acerca da natureza jurídica do preceito - confira-lhe o regime de incidência próprio dos princípios, tratando-a como “mandamento de otimização” e, portanto, com risco de relativização desse direito fundamental.
Chamamos atenção para o fato de que muitas das normas que a doutrina rotula como “princípios jurídicos”, na verdade, reclamam o regime de incidência destinado às “regras jurídicas”. Exatamente o caso do inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal.
Ressaltamos que toda essa situação hipotética ora apresentada, ainda que pintada em cores fortes para fins didáticos, pode-se reproduzir com maior sutileza em relação a outras normas jurídicas, despertando dúvidas razoáveis naqueles que têm a missão de promover a incidência de normas jurídicas ao caso concreto.
Nesse sentido merecem destaque as advertências do i. Professor Virgílio Afonso da Silva, que critica certas construções doutrinárias que confundiriam regras e princípios jurídicos: “(...) não há que se falar em classificação mais ou menos adequada, ou, o que é pior, em classificação mais ou menos moderna. Classificações ou são coerentes e metodologicamente , ou são contraditórias (...) Se se define ‘princípio’ pela sua fundamentalidade, faz sentido falar-se em princípio da legalidade ou em princípio do nulla poena sine lege. Essas são, sem dúvida, duas normas fundamentais em qualquer Estado de Direito. Caso, no entanto, eu prefira usar os critérios estabelecidos por Alexy (...) é preciso cuidado ao se fazer uma ‘tipologia de princípios’ – se é que uma tal tipologia faz algum sentido quando se distinguem princípios e regras por aqueles critérios – e, mais importante, é preciso deixar de fora dessa tipologia aquelas normas tradicionalmente chamadas de princípios (...) visto que elas, a despeito de sua fundamentalidade, não poderiam mais ser consideradas como princípios, devendo ser incluídas na categoria de regras.”[21]
Em assim sendo, o aplicador da norma deve manter especial atenção em relação a essa dualidade conceitual de “princípios jurídicos”, de maneira a evitar a eleição de um regime de incidência incompatível com a norma jurídica que tem diante de si.
São essas, portanto, as singelas considerações que oferecemos acerca do tema proposto.
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[1] DA SILVA, Virgílio Afonso. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Disponível em http://staticsp.atualidadesdodireito.com.br/marcelonovelino/files/2012/03/VASilva-P-e-R-Mitos-e-equivocos-1.pdf. Acesso em 06/05/2013.
[2] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 350.
[3] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 382.
[4] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 117.
[5] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo:Malheiros, 2003, p. 232.
[7] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo:Malheiros, 2003, p. 235.
[8] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo:Malheiros, 2003, p. 237.
[9] DIAS JÚNIOR, José Armando Ponte. Princípios, Regras e Proporcionalidade: análise e síntese das críticas às teorias de Ronald Dworkin e de Robert Alexy. Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC (NOMOS).v.27. Ceará: jul./dez. 2007- p. 177-199.
[10] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012 – p. 87.
[11] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 68.
[12] ROTHENBURG, WALTER Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor: 1999, p. 18.
[13] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 249.
[14] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5 ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 172.
[15] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5 ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 173.
[16] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 68.
[17] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 87.
[18] DA SILVA, Virgílio Afonso. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Disponível em http://staticsp.atualidadesdodireito.com.br/marcelonovelino/files/2012/03/VASilva-P-e-R-Mitos-e-equivocos-1.pdf. Acesso em 06/05/2013.
[19] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, pp. 90-91.
[20] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 40.
[21] DA SILVA, Virgílio Afonso. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Disponível em http://staticsp.atualidadesdodireito.com.br/marcelonovelino/files/2012/03/VASilva-P-e-R-Mitos-e-equivocos-1.pdf. Acesso em 06/05/2013.
Mestrando em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP. Juiz Federal Substituto da Seção Judiciária de São Paulo/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GODOI, Leonardo Vietri Alves de. Os Princípios e as Regras Jurídicas: breves reflexões e anotações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42005/os-principios-e-as-regras-juridicas-breves-reflexoes-e-anotacoes. Acesso em: 23 dez 2024.
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