RESUMO: Os critérios clássicos de resolução de antinomias jurídicas (hierárquico, cronológico e especialidade) possuem âmbitos próprios de aplicação, notadamente visando à máxima efetividade do texto constitucional e à preservação de seu núcleo duro, notadamente atinente às cláusulas pétreas. Disto decorre a importância quanto ao conhecimento das especificidades de cada um destes critérios, bem como o âmbito de sua respectiva aplicação.
Palavras-chave: Conflito Aparente de Normas – Antinomias Jurídicas – Critério Hierárquico – Critério Cronológico – Critério da Especialidade – Revogação Tácita – Revogação Expressa –Núcleo Duro Constitucional – Cláusulas Pétreas – Relação Gênero e Espécie –Mecanismos de Interpretação.
As antinomias jurídicas constituem conflito aparente de normas. Para solucioná-las, portanto, mostra-se necessário estabelecer critérios que permitam a coesão do ordenamento jurídico, afastando eventuais incompatibilidades que, de início, poderiam equivocadamente se afigurar presentes.
Neste singelo artigo buscar-se-á sistematizar os três principais critérios de resolução de antinomias jurídicas: o hierárquico, o cronológico e o da especialidade. Pelo primeiro, as normas superiores devem prevalecer sobre as inferiores (lex superior); pelo segundo, as normas posteriores revogam as anteriores com ela incompatíveis (lex posterior); pelo último, as normas mais específicas afastam a incidência das normas mais gerais (lexspecialis).
Analisemos as peculiaridades de cada um destes critérios.
De chofre, necessário deixar claro que o critério hierárquico não se mostra aplicável no que atine à matéria constitucional. De fato, o Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que não se mostra possível a declaração de inconstitucionalidade de norma proclamada pelo poder constituinte originário. Distintamente, o critério hierárquico é passível de aplicação diante da antinomia jurídica verificada entre emenda constitucional e norma constitucional qualificada como cláusula pétrea.
A distinção se justifica porque, em se cuidando de normas constitucionais proclamadas pelo poder constituinte originário, não existem contradições entre seus dizeres, sendo de rigor interpretar o dispositivo constitucional de modo a lhe atribuir a máxima eficácia normativa preservando-se, concomitantemente, a coesão do texto constitucional em seu conjunto. Não por acaso, apesar de existirem normas constitucionais mais relevantes que outras sob a perspectiva axiológica ou mesmo sistemática, não existe hierarquia formal entre elas.
De qualquer maneira, o sistema constitucional brasileiro não reconhece prioridades absolutas entre normas constitucionais. Sob esta perspectiva, a adoção de uma rígida hierarquia levaria a uma inadmissível fragilização das normas que o intérprete situasse em patamar inferior, provocando o enfraquecimento do ordenamento jurídico como um todo, retirando-lhe a efetividade exigida para regular as atividades desempenhas em sociedade.
Noutras palavras, não é adequado, muito menos pertinente, a fixação de valores ou princípios em uma escala de valores que fixe determinada decisão que se mostre aplicável, fundamentalmente, a todos os casos de modo intersubjetivamente obrigatório. Apresenta-se muito mais razoável com a reverência que cada direito ou norma constitucional merece a solução que objetiva, em cada situação conflituosa e até onde se mostrar possível, otimizar cada um dos bens jurídicos em batalha.
Neste sentido, embora não exista hierarquia formal entre os princípios que integram a Constituição, há inegável hierarquia material entre os princípios, a depender da situação concreta a ser tutela, considerando-se a diferença de peso abstrato que caracterizaria cada um deles em importância. Surgem, por assim dizer, as denominadas ordens brandas, seja por meio de preferências adotadas num primeiro momento (abstrato, por óbvio) em favor de determinados valores ou princípios, seja por aferição de determinada rede concreta de preferências, decorrentes do conflito de bens jurídicos concretamente verificados.
Nenhum impedimento, portanto, dentro do critério hierárquico, a que um princípio de hierarquia superior ceda lugar a outro, de hierarquia inferior, a depender da consideração das circunstâncias particulares do caso.
Já no que tange ao critério cronológico, ressalte-se, nesse contexto, recomendar a boa técnica legislativa a expressa digressão quanto à eventual revogação de preceitos legais, a independer de se tratar de duas ou mais normas constitucionais ou de duas ou mais normas infraconstitucionais. Nessa linha, o critério cronológico é reconhecido para solver antinomias entre normas constitucionais originárias e normas derivadas, sejam as produzidas pelo poder constituinte reformador ou mesmo aquelas aprovadas em diferentes momentos.
Em substância, de qualquer modo, o critério cronológico jamais poderá ser utilizado para resolução de antinomias quando as normas mais recentes ofenderem ou tenderem a ofender cláusulas pétreas. À evidência, diante de situação desta estirpe, a Constituição consagra a necessidade de obediência ao critério hierárquico, a se sobrepor ao critério cronológico.
Sistematizando esse entendimento, se, em relação à norma originária localizada no núcleo duro constitucional (cláusulas pétreas)norma constitucional derivada superveniente a contrariar, sua nulidade deverá ser declarada.
Essa questão assume relevo quando a revogação por emenda constitucional for verificada de modo tácito, e não expresso. Nos meandros constitucionais não pode reinar a incerteza muitas vezes ínsita aos casos de revogação tácita. Em verdade, somente em casos excepcionais afigura-se adequado reconhecer a revogação tácita, total ou parcial, de preceito constitucional por emenda superveniente.
Não é difícil perceber que, em face desta suposta incongruência, o intérprete deve primar pela manutenção da máxima efetividade do ordenamento constitucional, buscando exaustivamente interpretação que harmonize os dispositivos constitucionais em aparente conflito. Tal proposta, por si, demonstra a preocupação do intérprete sobre o conteúdo em vigor da Constituição, só devendo ocorrer a extirpação da norma se verificada hipótese de irredutível incompatibilidade entre o teor da nova emenda e o texto constitucional anterior.
Por fim, questão sensível afeta à resolução de antinomias jurídicas reside no critério da especialidade.Dessarte, a questão transcende o âmbito meramente acadêmico, assumindo nítido interesse prático. Aludido critério retira da incidência da norma constitucional mais geral hipótese concomitantemente disciplinada por norma mais específica.
No entanto, não é menos certo, por outro lado, que o critério da especialidade somente poderá ser utilizado para a solução de antinomias jurídicas quando houver, entre as normas em tensão, relação adstrita a gênero-espécie. Portanto, parece quase intuitivo que, por esse critério, aflorará situação em que o âmbito de incidência da norma especial estiver integralmente contido no da norma geral, embora discipline determinado assunto de modo específico, divergindo dos parâmetros gerais.
Sobre o assunto, aliás, já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, consoante excerto a seguir transcrito (grifos nossos):
E M E N T A: ADVOGADO – CONDENAÇÃO PENAL MERAMENTE RECORRÍVEL – PRISÃO CAUTELAR – RECOLHIMENTO A “SALA DE ESTADO-MAIOR” ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA – PRERROGATIVA PROFISSIONAL ASSEGURADA PELA LEI Nº 8.906/94 (ESTATUTO DA ADVOCACIA, ART. 7º, V) – INEXISTÊNCIA, NO LOCAL DO RECOLHIMENTO PRISIONAL, DE DEPENDÊNCIA QUE SE QUALIFIQUE COMO “SALA DE ESTADO-MAIOR” – HIPÓTESE EM QUE SE ASSEGURA, AO ADVOGADO, O RECOLHIMENTO “EM PRISÃO DOMICILIAR” (ESTATUTO DA ADVOCACIA, ART. 7º, V, “IN FINE”) – SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 10.258/2001 – INAPLICABILIDADE DESSE DIPLOMA LEGISLATIVO AOS ADVOGADOS – EXISTÊNCIA, NO CASO, DE ANTINOMIA SOLÚVEL – SUPERAÇÃO DA SITUAÇÃO DE CONFLITO MEDIANTE UTILIZAÇÃO DO CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE – PREVALÊNCIA DO ESTATUTO DA ADVOCACIA – CONFIRMAÇÃO DA MEDIDA LIMINAR ANTERIORMENTE DEFERIDA – PEDIDO DE “HABEAS CORPUS” DEFERIDO. - O Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), em norma não derrogada pela Lei nº 10.258/2001 (que alterou o art. 295 do CPP), garante, ao Advogado, enquanto não transitar em julgado a sentença penal que o condenou, o direito de “não ser recolhido preso (...), senão em sala de Estado-Maior (...) e, na sua falta, em prisão domiciliar” (art. 7º, inciso V). - Trata-se de prerrogativa de índole profissional – qualificável como direito público subjetivo do Advogado regularmente inscrito na OAB – que não pode ser desrespeitada pelo Poder Público e por seus agentes, muito embora cesse com o trânsito em julgado da condenação penal. Doutrina. Jurisprudência. Essa prerrogativa profissional, contudo, não poderá ser invocada pelo Advogado, se cancelada a sua inscrição (Lei nº 8.906/94, art. 11) ou, então, se suspenso, preventivamente, o exercício de sua atividade profissional, por órgão disciplinar competente (Lei nº 8.906/94, art. 70, § 3º). - A inexistência, na comarca ou nas Seções e Subseções Judiciárias, de estabelecimento adequado ao recolhimento prisional do Advogado confere-lhe, antes de consumado o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o direito de beneficiar-se do regime de prisão domiciliar (RTJ 169/271-274 – RTJ 184/640), não lhe sendo aplicável, considerado o princípio da especialidade, a Lei nº 10.258/2001. - Existe, entre o art. 7º, inciso V, do Estatuto da Advocacia (norma anterior especial) e a Lei nº 10.258/2001 (norma posterior geral), que alterou o art. 295 do CPP, situação reveladora de típica antinomia de segundo grau, eminentemente solúvel, porque superável pela aplicação do critério da especialidade (“lex posterior generalis non derogat priori speciali”), cuja incidência, no caso, tem a virtude de preservar a essencial coerência, integridade e unidade sistêmica do ordenamento positivo (RTJ 172/226-227), permitindo, assim, que coexistam, de modo harmonioso, normas em relação de (aparente) conflito. Doutrina. Consequente subsistência, na espécie, não obstante o advento da Lei nº 10.258/2001, da norma inscrita no inciso V do art. 7º do Estatuto da Advocacia, ressalvada, unicamente, por inconstitucional (ADI 1.127/DF), a expressão “assim reconhecidas pela OAB” constante de referido preceito normativo.
(HC 109213, CELSO DE MELLO, STF.)
De tudo quanto exposto, conclui-se, assim, que os critérios clássicos de resolução de antinomias jurídicas refletem a necessidade de preservação da máxima efetividade da Constituição Federal Brasileira. Sobremais, a correta aplicação destes institutos atrela-se insofismavelmente à natureza de cada qual, não se admitindo aplicações desmedidas e que impliquem, ao revés, o descumprimento tanto de seus requisitos enquanto mecanismos de interpretação, quanto o ultraje dos cânones constitucionais derivados das cláusulas pétreas.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JANNUCCI, Alessander. Critérios clássicos de resolução de antinomias jurídicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42563/criterios-classicos-de-resolucao-de-antinomias-juridicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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