RESUMO: O foco deste artigo é promover uma análise e reflexão sobre as falhas epistemológicas que se configuram como verdadeiros obstáculos à construção de uma ciência jurídica de base solidamente científica. Tal análise será pautada, principalmente, sobre as ideias do professor Michel Miaille em seu livro - Introdução Crítica ao Direito – contudo, recorrendo também a outras visões também pertinentes sobre esta questão.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica ao Direito. Epistemologia. Ciência Jurídica.
ABSTRACT: The focus of this article is to promote analysis and reflection on the epistemological failures that constitute real obstacles to the construction of a legal science solidly scientific basis. Such analysis will be guided mainly on the ideas of Professor Michel Miaille in his book - Critical Introduction to the law - however, using also the other also relevant views on this question.
KEYWORDS: Criticism of the law. Epistemology. Legal Science.
1 INTRODUÇÃO
É de suma importância, antes de refletir, de fato, sobre falhas epistemológicas ou obstáculos reais à construção da solidez científica referente à ciência jurídica, que se busque esclarecer o que vem a ser epistemologia.
A palavra epistemologia tem raiz grega e pode ser fracionada da seguinte forma: epistême (significando ciência) e logos (estudo, discurso). Partindo dessa clarificação sobre a origem do vocábulo e do consequente significado de suas partes, é possível inferir que epistemologia é um estudo ou reflexão sobre uma ciência. Em outras palavras, poderia-se dizer que a epistemologia é a ciência que estuda a própria ciência, buscando suas bases, isto é, seus fundamentos.
Feita tal conceituação, deveras elucidativa, cabe agora tentar entender o que é epistemologia jurídica para, em seguida, ser possível uma melhor compreensão do vem a ser, de fato, falhas epistemológicas. Já se sabe que fazer epistemologia, portanto, é procurar a verdadeira fundamentação de uma ciência, ou seja, seus pressupostos básicos. Logo, fazer epistemologia jurídica é, justamente, buscar a razão de ser ou a fundamentação da ciência jurídica, definindo seu objeto e método de estudo, por exemplo. Cabe, contudo, à filosofia jurídica tal função. A esse respeito, preciosa é a lição da professora Maria Helena Diniz, professora de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP):
É, portanto, a filosofia do direito, enquanto epistemologia jurídica, que vai tratar dos problemas da ciência do direito, procurando dirimi-los, delimitando o sentido de “ciência”, a especificidade do objeto e do método da especulação jurídico-científica, refletindo sobre o caráter teórico, prático ou crítico da jurisprudência, distinguindo a ciência do direito das outras que, igualmente, tem por material de pesquisa os fenômenos jurídicos, indagando acerca da natureza científica do saber jurídico. Este último problema é o central da epistemologia do direito, pois se houver uma filosofia ou teoria da ciência jurídica que possibilite uma jurisprudência como rigorosa ciência do direito, as demais questões serão, satisfatoriamente, respondíveis. (Diniz, 2009 p. 35)
2 OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS
Questão importante a ser considerada, preliminarmente, refere-se àquela debatida durante muito tempo sobre o verdadeiro caráter científico da ciência jurídica. Como já é sabido, é incumbência da filosofia do direito realizar tal análise, definindo se a perspectiva abordada sobre a ciência jurídica terá cunho teórico, prático ou até mesmo uma hibridização dos dois. A depender do critério adotado, alguns a considerarão como ciência, outros como arte. “É o critério filosófico adotado pelo jurista que determina seu objeto.” (Id Ibid. p. 30).
Diante da variabilidade de possíveis perspectivas e posições a serem adotadas surgem, obviamente, correntes favoráveis e contrárias à aceitação do caráter científico da ciência jurídica. Assim:
Para uns, adeptos de ceticismo científico-jurídico o direito é insuscetível de conhecimento de ordem sistemática, afirmando com isso que a ciência jurídica não é, na realidade, uma ciência, baseados na tese de que o seu objeto (o direito) modifica-se no tempo e no espaço, e essa mutabilidade impede ao jurista a exatidão na construção científica, ao passo que o naturalista tem diante de si um objeto permanente ou invariável, que lhe permite fazer longas lucubrações, verificações, experiências e corrigir os erros que, porventura, tiver cometido. Para outros, que constituem a maioria, a Jurisprudência é uma ciência, pois não há porque negar sua cientificidade, visto que contém todas aquelas notas peculiares ao conhecimento científico. A Jurisprudência possui caráter científico, por se tratar de conhecimento sistemático, metodicamente obtido e demonstrado, dirigido a um objeto determinado, que é separado por abstração dos demais fenômenos. A sistematicidade é um forte argumento para afirmar a cientificidade do conhecimento jurídico. (Id Ibid. pp. 32-33)
Para Miaille, qualquer análise sobre a cientificidade ou não da ciência jurídica, deve passar necessariamente pela constatação de que toda produção teórica construída na humanidade é baseada na formulação de “discursos”, que muitas vezes adquirem “status” de verdade e podem desenvolver-se e reproduzir-se com uma lógica bem peculiar, servindo não somente para compreender os fenômenos que envolvem a humanidade, mas também para permitir a comunicação entre os homens.
Para compreender a necessidade de uma reflexão epistemológica será útil descer à raiz do problema: esta raiz é a constatação de uma produção teórica múltipla. O que é que isto quer dizer? Para compreenderem os fenómenos que os envolvem e os assaltam, mas igualmente para permitir a existência de uma comunicação social, os homens produzem “discursos”. Chamarei discurso a um corpo coerente de proposições abstractas, implicando uma lógica, uma ordem e a possibilidade não só de existir mas, sobretudo, de se reproduzir, de se desenvolver, segundo leis internas à sua lógica. (Miaille 2005 p. 33)
A grande questão, para Miaille, reside na dificuldade de reconhecer o verdadeiro discurso de base científica diante uma multiplicidade de discursos, todos com pretensões de serem superiores uns sobre os outros na tentativa de explicar os fenômenos humanos. Daí emerge a importância da epistemologia, como ciência que investiga as condições nas quais ocorre a produção do discurso. Neste sentido, a epistemologia serve para identificar a veracidade de um discurso. No entanto, o autor critica a epistemologia por não investigar o próprio conhecimento científico, uma vez que este possui uma excessiva segurança sobre suas proposições.
A resposta tem precisamente a ver com o termo não habitual que abria esta parte: epistemologia. Pode ela de facto ser definida como o conhecimento das condições da produção científica. [...] É aliás curioso – mas explicável – que a ciência tenha praticamente passado ao lado de todo este movimento e que, contrariamente a outras disciplinas, não tenha reproduzido reflexão séria sobre as condições de sua própria validade. [...] É certamente desta auto-suficiência e da crítica de todos os a priori do conhecimento jurídico que é preciso partir para chegar às condições de uma verdadeira ciência do direito. (Id. Ibid. p. 35)
Além disso, como se não bastasse esse impasse, ainda decorrem da multiplicidade de perspectivas, os já referidos obstáculos epistemológicos, descritos por Miaille, e que constituem verdadeiras barreiras para a constituição do caráter científico da ciência jurídica. Obstáculos epistemológicos podem ser definidos como obstruções reais a produção de conhecimentos verdadeiramente científicos. O autor defende a ideia de que esses obstáculos, assim como a construção de qualquer discurso, dependem diretamente das condições históricas e culturais de onde a investigação científica se processa.
Com efeito, não se trata de modo nenhum de umas quantas dificuldades de ordem psicológica, mas sim de obstáculos objectivos, reais, ligados às condições históricas nas quais a investigação científica se efectua. Assim, esses obstáculos são diferentes segundo as disciplinas e as épocas, pois testemunham, em cada uma das hipóteses, condições específicas do desenvolvimento da investigação científica. (Miaille, 2005 p. 37)
Diante disso, analisando principalmente a sociedade francesa de sua época, o autor, no que se refere ao universo jurídico, elenca como obstáculos a construção de uma ciência jurídica: A falsa transparência do direito, o idealismo jurídico e a independência da ciência Jurídica.
Contudo, num primeiro momento, o autor traz à luz algumas informações importantes, por sua relevância, referentes ao modo como a ciência jurídica se desenvolveu, juntamente com outras ciências humanas. Afirma que, primeiramente, a reflexão que se fazia sobre as regras jurídicas era teológica, isto é, atrelada a moral religiosa da igreja. Portanto, esta detinha o poder do discurso jurídico.
Daí surge aquilo a que chamaremos a problemática inicial da ciência jurídica: a problemática teológica. O estudo do direito não encontra nem o seu fundamento nem o seu objectivo na preocupação de explicar o que são realmente as regras jurídicas, a sua função no seio da sociedade, o seu modo de transformação. A referência do jurista não é pois a sociedade, o que é um ponto de vista relativamente moderno: a referência é Deus. (Id. Ibid. p. 39)
Na renascença, com o advento do racionalismo, onde Deus cede lugar à razão, a metafísica substituirá a teologia quanto à produção do discurso jurídico. Assim, ocorrerá uma mudança de fundamentação do discurso e, consequentemente, da sua forma de abordagem.
Eis rapidamente esboçado o quadro do conhecimento da ciência jurídica: isso explica de certo modo o obstáculo com que deparamos hoje em dia. De facto, longos períodos foram precisos para que o conhecimento do direito pouco a pouco se liberte desta metafísica. É preciso, aliás, acrescentar desde já que essa libertação é parcial e que encontramos ainda vestígios destes a priori abstractos no estudo jurídico contemporâneo. Mas é verdade que aparentemente, pelo menos, tanto a investigação como o ensino do direito revestem o caráter de um estudo “objectivo”. Já não é necessário acreditar em Deus ou ser partidário desta ou daquela filosofia para encetar ou prosseguir estudos de direito: as Faculdades de direito já não vivem à sombra das catedrais. (Id. Ibid. p. 40)
Nesse momento o empirismo ganha espaço e qualquer conhecimento, para ser considerado científico, precisa ser fruto da experimentação e observação. Mas em que consiste o empirismo? A palavra empirismo corresponde à experiência. Para os adeptos dessa corrente, só há que se falar em conhecimento efetivo e real, aquele originado da experiência. Qualquer outra forma de conhecimento, para os empiristas, é desprezível e corresponde à mera especulação. “O significado mais simples do empirismo consiste em que todo o conhecimento é tido como resultado da experiência. Qualquer outro meio seria reputado de fazer apelo a noções ou a teorias estranhas, suspeitas de filosofia.” (Miaille, 2005 p. 40)
Aqui é interessante fazer um paralelo entre o pensamento de Miaille e do professor de direito da Universidade Federal de Sergipe, Afonso Nascimento, principalmente devido à sua semelhança, no que se refere à conceituação de empirismo.
O empirismo é uma postura epistemológica segundo a qual a produção do conhecimento é oriunda da experiência, negando, deste modo, que tal processo possa dar-se em níveis puramente racionais. [...] É exatamente dessa forma que os juristas raciocinam; é desta forma que eles abordam a questão do Estado. [...] Todavia, é preciso acrescentar que essa atitude não é restritiva ao Estado, mas igualmente em relação ao direito. (Nascimento, 2012 p. 39)
Contudo, essa postura foi e ainda é duramente criticada. O professor Nascimento ainda preleciona que todo o conhecimento, deve sua produção mais a ordem cognoscente do que fundamentalmente à experiência, como imaginam os empiristas. Portanto, toda experiência é construída, isto é, advém dos conhecimentos do cientista e não da mera observação da realidade.
Diferentemente do que possam imaginar os juristas, o processo de conhecimento não tem originem na observação imediatista de objetos reais empiricamente verificáveis, mas através de uma prática que é fundamentalmente teórica, a qual se funda na distinção entre objeto real e objeto de conhecimento. Neste sentido, pode-se afirmar que a prática de conhecimento se processa exclusivamente ao nível do pensamento, já que não existe identidade – real ou aparente – entre o objeto concreto e o objeto do pensamento. (Id. Ibid. p. 40)
Concluindo o pensamento do professor ora citado, arremata Miaille: “A experiência vem confirmar a reflexão, ela nunca é o ponto de partida.” (Miaille, 2005 p. 41).
É neste seio da experimentação como critério de validade de um discurso que surge a corrente doutrinária positivista na explicação do direito. O positivismo é outra corrente doutrinário-epistemológica, que teve seu auge no século XIX, na qual se acredita ser possível total imparcialidade, por parte do cientista e, no caso da ciência jurídica, do jurista. Ou seja, para os praticantes dessa perspectiva, por exemplo, o jurista deve se abster de suas inclinações pessoais ou juízos de valor ao interpretar ou aplicar o direito.
O positivismo é uma escola doutrinal, como estudaremos mais à frente; considerá-lo-emos enquanto corrente de pensamento, enquanto atitude epistemológica geral. Essa atitude define-se por uma posição aparentemente isenta de qualquer reparo; o estudo científico do direito é o estudo do direito experimentalmente constatável; o direito positivo, dito por outras palavras, as regras do direito fixadas pelos homens. O estudo do direito deve ser relativo a todas as regras, mas deve limitar-se só a elas. (Miaille 2005 pp. 42-43)
Também se mostra na mesma linhagem lógica a concepção de positivismo desenvolvida por Nascimento.
Positivismo é outra atitude epistemológica muito corrente entre os juristas. Basicamente, o positivismo consiste na crença de que a exemplo do que ocorre nas ciências naturais, é preciso afastar os preconceitos e as pressuposições, separar os julgamentos de fato dos julgamentos de valor, a ciência da ideologia. (Nascimento 2012 p. 41)
Destarte, o direito passa a ser explicado pelo estudo experimental das regras criadas e postas pelos homens, porém, limitando-se a elas. Assim, as regras jurídicas sendo estudadas na neutralidade e sem qualquer interferência externa política ou moral, daria ao estudo do direito uma base científica. Porém, como já foi demonstrado, essa neutralidade é questionável, uma vez que toda e qualquer experiência é construída e, como sabemos, é criada a partir da reflexão, sendo aquela somente confirmação desta. Daí surge à ideia de falsa transparência do direito, pois o conhecimento baseado na experimentação construída, impossibilitada de neutralidade total, simplificando em demasia a realidade, mostrando-a superficialmente.
É evidente no que vem a dar uma posição positivista: reforçar as ideias recebidas, estas noções feitas a que Bacon chamava as “pré-noções”. Ora elas constituem justamente um obstáculo epistemológico extremamente grave. Devemos pois desembaraçarmo-nos delas para ver as coisas tais quais elas são e não tais como no-las deixa ver o nosso sistema social. (Miaille 2005 p. 46)
O segundo obstáculo epistemológico, tratado por Miaille é o idealismo, que apesar de não pertencer exatamente ao universo jurídico, nesse meio, encontra campo fértil para se desenvolver. O idealismo se configura como uma corrente na qual se acredita que todas as explicações dos fenômenos que acontecem no universo se encontram no plano das ideias, ou seja, na razão.
No seu significado mais comum, o idealismo é uma corrente de pensamento filosófico que se opõe ao materialismo: a característica consiste em que, para um idealista, o princípio fundamental da explicação do mundo encontra-se nas ideias, na Ideia ou no Espírito, concebido como superior ao mundo da matéria; este não é, em última análise, senão o produto ou o efeito do Espírito que governa, pois, o mundo, segundo a expressão de Hegel. (Id. Ibid. p. 47)
Com o advento desta corrente de pensamento, a Ciência Jurídica passa a ser tratada por dois enfoques contrastantes e que, segundo Miaille, estão em permanente debate: O espiritualista, valorizando o ideal de justiça e o materialista, evidenciando o fato material. O autor ainda divide o idealismo em abstração ideológica e abstração científica. A primeira se restringe a mera representação da realidade e a segunda propõe sua explicação.
A grande crítica feita por Miaille ao idealismo jurídico é que, em sua concepção, o tipo de abstração utilizada pela Ciência Jurídica é a abstração ideológica, destinada apenas a representar a realidade como é dada e não como realmente é. Assim, para ele, a Ciência jurídica, tal como é delineada hoje em dia, se presta mais a uma representação do universo jurídico do que sua verdadeira explicação.
A questão pode ser assim formulada: dão-nos as abstrações da ciência jurídica uma representação ideológica do mundo do direito, ou, pelo contrário, uma explicação científica? Desde já dou a resposta: a ciência jurídica, tal qual ela é hoje concebida e apresentada, não é senão uma imagem do mundo do direito, não uma explicação. (Miaille 2005 p. 50)
E arremata: “O idealismo representa, nessas condições, um muito sério obstáculo epistemológico. Seria inútil subestimá-lo”. (Id. Ibid. p. 52)
Ao analisar o resultado dos trabalhos dos juristas, mergulhados no profundo idealismo, Miaille evidencia que quando os juristas agem baseados nesse ideologismo, suas noções de direito tendem a se afastar da realidade social de onde nascem os regramentos ou normas, uma vez que a abstração utilizada pela ciência jurídica é a ideológica, portanto, remonta mais a uma imagem da realidade social.
O professor francês ainda acrescenta que esse idealismo jurídico exagerado traz duas consequências para o mundo jurídico: o universalismo a-histórico e o pluralismo de explicações. Do universalismo a-histórico pode-se apreender que consiste em ideias que se prestam à explicação de toda realidade, neste caso no mundo jurídico, e, dessa forma, acabam por se afastar do contexto histórico-geográfico do qual emergiram.
Que entender pela fórmula, aparentemente complexa, de universalismo a-histórico? Muito simplesmente o efeito pelo qual, tornando-se “as ideias” explicação de tudo, elas se destacam pouco a pouco do contexto geográfico e histórico no qual foram efectivamente produzidas e constituem um conjunto de noções universalmente válidas (universalismo), sem intervenção de uma história verdadeira (não história). O pensamento idealista torna-se um fenômeno em si alimentando-se da sua própria produção. (Id. Ibid. p. 53)
Já o pluralismo de explicações, surge quase que como uma consequência do universalismo a-histórico, pois, a partir do momento em que uma ideia explicativa adquire um caráter universal, suporta variadas interpretações que podem desencadear diversas teses explicativas para o mesmo fenômeno, o que dá uma ideia de equivalência entre elas.
A segunda consequência deste universalismo idealista é o que eu chamo o pluralismo de explicações. Este fenómeno é o lado pedagógico na universalidade do liberalismo em matéria política. Postula que várias opiniões são possíveis, ou segundo a linguagem própria dos cursos, “vários pontos de vista”. Logo que , é evidente, as situações são reduzidas ao estado de ideias, é normal que se sugira a possibilidade de “mudar de ponto de vista”. E, ao modificar-se o lugar do observador, modifica-se abstractamente a observação e os seus resultados. Assim, sobre cada questão importante a propósito do direito, o leitor ou o auditor arrisca-se seriamente a encontrar-se face a um leque aberto, leque de respostas à questão ainda em aberto. (Miaille, 2005. pp. 55-56)
O terceiro e último obstáculo epistemológico elencado por Miaille é a questão da independência da Ciência Jurídica. Para o autor, esta independência, primeiramente conquistada pela separação da teologia e, em seguida da filosofia, atingindo seu ápice com o auge do positivismo, trouxe grandes avanços ao mundo jurídico.
No fundo, toda a história do surgimento de uma ciência jurídica aparece como a progressiva separação de outras ordens de pensamento.[...] É, de facto, pela separação definitivamente introduzida no século XIX entre um pensamento filosófico e uma investigação positiva, os métodos, da mesma maneira que a perspectiva, foram renovados; progressos consideráveis foram realizados. (Id. Ibid. p. 58)
Contudo, Miaille destaca alguns pontos negativos decorrentes desse isolamento ou independência da ciência jurídica: Primeiramente, como se sabe, o pensamento positivista não admite interferências na produção, interpretação e aplicação das regras jurídicas. Por este motivo, criam-se, interpretam-se e aplicam-se regras distantes da realidade social, promovendo uma abstração ideológica que falseia a realidade existente. Deste modo, desprezam-se outros fatores que interferem na vida humana como as relações sociais, as econômicas e as políticas. Em segundo lugar, o isolamento da Ciência Jurídica, decorrente do que ele chama de “mito da divisão natural do saber” (MIAILLE, 2005 p. 62), dificulta o acesso, por parte do universo jurídico, a contribuições importantes de outras ciências como a economia, a história, a política, entre outras.
A ciência do direito encontra-se legitimada, como aparentemente toda as outras ciências, na sua independência, e argumentos podem ser dados para justificar essa explosão do saber. Mesmo quando são propostos correctivos, o problema de fundo permanece sempre o unidade do conhecimento em “ciências sociais”. E é a impossibilidade teórica, tão sentida como alimentada, desta unidade que constitui um obstáculo à definição de uma ciência jurídica autêntica. (Id. Ibid. p. 58)
É valioso ressaltar que tais acréscimos, oriundos de outras ciências, poderiam fornecer à ciência jurídica os meios necessários para se conseguir uma aproximação maior da realidade factual, permitindo o seu desencarceramento do ideologismo exacerbado.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por tudo o mais exposto, partindo da definição do conceito de epistemologia e epistemologia jurídica e, consequentemente, desembocando na questão da cientificidade do direito, é possível inferir que a multiplicidade de perspectivas de abordagem da ciência jurídica dificulta o reconhecimento de seu caráter científico, uma vez que é difícil reconhecer a cientificidade de um discurso em meio a tantos outros, os quais tentam se sobreporem entre si.
Foi perceptível ainda que, além da dificuldade acima mencionada, surgem os obstáculos epistemológicos, delineados pelo professor Michel Miaille. Estes se constituem em entraves reais e, muitas vezes imperceptíveis, à constituição de uma ciência jurídica de base verdadeiramente científica.
Assim, para que se alcance tal ambição, seria necessário transpor tais obstáculos. Seria imprescindível, portanto, superar: a ideia de falsa transparência do direito (reforçada pelo positivismo e centrada numa pseudo-neutralidade do cientista); o ideologismo jurídico (que afasta o direito da realidade histórico-geográfica de sua produção) e; a independência da Ciência Jurídica (que impossibilita a contribuição preciosa de outras ciências para compreensão da realidade). Destarte, seria possível ao universo jurídico, efetivar-se como uma ciência autêntica do direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução a ciência do direito. 20ª edição - revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2009
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. 3ª Edição. Tradução Ana Prata. Lisboa: Editorial Estampa, 2005.
NASCIMENTO, Afonso. Uma crítica à concepção jurídica do Estado: o problema da formação do Estado. São Cristóvão: Editora UFS, 2012.
Graduado com Licenciatura Plena em Ciências Naturais pela UNIVERSIDADE TIRADENTES - UNIT (2009). ATUALMENTE: Graduando do bacharelado em Direito pela UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE - UFS; Oficial Administrativo da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe - SEED/SE; Atua como Articulista Voluntário do Portal CONTEÚDO JURÍDICO (http://www.conteudojuridico.com.br), onde contribui com a publicação de artigos científicos; Atua como Articulista Voluntário do Portal WEBARTIGOS.com (http://www.webartigos.com), contribuindo aqui com artigos diversos; É idealizador do BLOG JURÍDICO: www.dissertandosobredireito.wordpress.com, onde escreve crônicas jurídicas e artigos de opinião. Atua também como editor e revisor, no próprio blog, uma vez que recebe contribuições externas de outros autores. http://lattes.cnpq.br/6328264229593421
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Luiz Tiago Vieira. Entraves à construção de uma ciência jurídica de sólida base científica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 mar 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43634/entraves-a-construcao-de-uma-ciencia-juridica-de-solida-base-cientifica. Acesso em: 23 dez 2024.
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