RESUMO: A presente dissertação tem como objeto de estudo as decisões da Justiça eleitoral nos casos do art. 41-A da Lei nº 9.504/97. O objetivo do estudo consiste na análise do aparente conflito entre a vontade popular manifestada nas urnas e as decisões judiciais que determinam a desconstituição do mandato eletivo do candidato infrator, tendo em mira o sistema democrático e a soberania popular.
Palavras-chave: mandato eletivo, perda, democracia, soberania popular, decisão judicial.
INTRODUÇÃO
Com efeito, a história recente das eleições em nosso país tem mostrado uma intervenção mais ativa do Poder Judiciário, notadamente no que diz respeito às decisões que determinam a cassação de mandatos eletivos, no mais das vezes de modo a alterar drasticamente o quadro dos candidatos consagrados pelo voto popular.
Nesse sentido, o objeto do presente estudo compreende a análise da atuação da Justiça Eleitoral nos casos de cassação de registros de candidaturas e mandatos eletivos em decorrência da aplicação do art. 41-A da Lei nº 9.504/97.
Assim, indaga-se a respeito da legitimidade democrática dessa atuação do Poder Judiciário em matéria eleitoral, por meio de uma análise do aparente conflito entre a pretensa vontade popular manifestada nas urnas e a decisão judicial que desconstitui o mandato eletivo com base no art. 41-A da Lei nº 9.504/97.
Conforme reza a Carta Magna de 1988, a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a soberania popular (art. 1º).
O conceito de soberania nasceu no século XVI, como elemento fundamental para a formação do Estado Moderno. A primeira tentativa de conceituação ocorreu com Bodin, no ano de 1576. Conforme ensina Bernardo Gonçalves Fernandes, a soberania, neste momento, era entendida como o poder supremo atribuído ao monarca no âmbito interno, sem qualquer referência à ideia de independência de um Estado em relação aos demais.[1]
Posteriormente, a soberania passou a representar um poder político que conjugava duas características: supremacia e independência. No escólio de Marcelo Novelino, supremacia, por não estar limitado a nenhum outro na ordem interna (soberania interna); independência, por não estar condicionado, no plano internacional, ao poder de outros povos (soberania externa).[2]
Somente com a evolução do Estado de Direito meramente formal para um Estado Democrático de Direito, o conceito de soberania, no plano interno, migrou do monarca para o povo, passando a apresentar-se como soberania popular. O artigo 1º, parágrafo único, da Constituição de República, ao dispor que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”, define bem a amplitude da vontade popular nos tempos hodiernos.
Nessa esteira, a soberania popular, em nossa ordem jurídica, se exterioriza por meio do sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (art. 14, CF/1988). A vontade dos cidadãos, elegendo seus representantes políticos, é o momento instituinte dos mandatos eletivos e de manifestação da soberania popular.
Pode-se dizer que a soberania popular representa a fusão de duas liberdades fundamentais: o direito de votar e o direito de ser votado. Tanto é que o Código Eleitoral, produzido em plena ditadura militar, parece ter percebido esses dois direitos políticos em seu artigo inaugural: “Este Código contém normas destinadas a assegurar a organização e o exercício de direitos políticos, precipuamente os de votar e ser votado.”[3]
Assim, um dos maiores questionamentos quanto ao controle judicial das eleições é a invocada falta de legitimidade democrática dos juízes, que não são eleitos nem representam a vontade popular, ainda mais no caso do art. 41-A da Lei nº 9.504/97, que implica na cassação imediata do registro ou diploma do candidato infrator.
Em outros termos, questiona-se se pode a Justiça Eleitoral cassar o mandato eletivo adquirido nas urnas como consequência da decisão de um povo e, nesse sentido, se tal decisão não afrontaria diretamente a soberania popular, sobretudo nos casos em que o segundo colocado é chamado a assumir o cargo eletivo.
No âmbito doutrinário, não são poucas as afirmações de que a atuação da Justiça Eleitoral seria contramajoritária. Nessa linha é a opinião de Adriano Soares da Costa, senão vejamos:
É inegável que há perversão em uma democracia cujo eleito é o segundo colocado. Desconheço que assim seja em outros países. Quando o eleito é cassado por corrupção eleitoral, presumem-se duas coisas: a) que o processo eleitoral foi ilegítimo e b) que os órgão de fiscalização falharam em sua missão.
(...)
Todos aguardam ansiosos que a Justiça Eleitoral endireite a nossa democracia, porque o povo, ao que parece, seria incapaz de fazê-lo. Que país engraçado o nosso: institucionalizamos o terceiro turno e clamamos que os tribunais resolvam, ao fim e ao cabo, o que deveria ser submetido apenas ao crivo popular. Construímos uma república dos derrotados, dos sem-votos, escolhidos pela eleição indireta dos eleitores togados.[4]
Assim, para que seja possível compatibilizar a atuação do Poder Judiciário no âmbito eleitoral, notadamente no caso do art. 41-A da Lei nº 9.504/97, com as ideias de democracia e soberania popular, torna-se imprescindível analisar os fundamentos e o papel do Poder Judiciário no nosso atual modelo de Estado Constitucional Democrático.
Nesse sentido, após a segunda metade do século XX, houve significativas alterações nos paradigmas de Estado e de Constituição. A constatação de que a legalidade estrita poderia justificar regimes autoritários e atrocidades como as cometidas durante a Segunda Guerra mundial, levaram a uma nova dogmática centrada na dignidade da pessoa humana.
Conforme ensina Fredie Didier Júnior, a essa nova fase do pensamento jurídico deu-se o nome de Neoconstitucionalismo, que apresenta como principais características: a) o reconhecimento da força normativa da Constituição; b) o desenvolvimento da teoria dos princípios, reconhecendo-lhes eficácia normativa; c) a expansão e consagração dos direitos fundamentais; d) a transformação da hermenêutica jurídica, com o reconhecimento do papel normativo e criativo do Poder judiciário.[5]
Quanto a esta última característica, tem-se que a Constituição passou a condicionar as decisões da maioria, tendo como principais protagonistas os juízes, e não mais o legislador. Nesse sentido, Dirley da Cunha Júnior assevera que:
“Desse modo, a ideia de soberania do Legislativo, em razão da representatividade popular, e da separação dos Poderes, com a submissão do Judiciário à lei, cederam espaço para o novo paradigma do Estado Democrático de Direito, que se assenta num regime democrático e na garantia dos direitos fundamentas, onde a justiça constitucional é nota essencial. Com efeito, a soberania do Legislativo foi substituída pela soberania e supremacia da Constituição, em face da qual o Legislativo é um Poder constituído e vinculado pelas normas constitucionais, e o dogma da separação de Poderes foi superado pela prevalência dos direitos fundamentais ante o Estado.”[6]
Neste ponto, vale um paralelo com o controle judicial de constitucionalidade, no qual também há discussão acerca da legitimidade do juiz em invalidar a produção feita por um órgão direta e democraticamente legitimado.
A respeito, deve-se ter em mente que quando o Poder judiciário invalida uma lei infraconstitucional, ele não opõe sua própria vontade ao Legislativo, mas sim a vontade mesma da nação, do povo, expressa na Constituição. Assim, onde a vontade do Legislativo, manifestada na lei, situar-se em oposição à vontade do povo, declarada na Constituição de um Estado, os juízes devem curvar-se a esta, e não à primeira. Não é outro o entendimento de Meirelles Teixeira, que afirma:
Se num país de rigidez constitucional acha-se a lei ordinária em desacordo com a Constituição, essa lei ordinária é apenas uma “aparência” da vontade nacional, uma pseudovontade da Nação, pois a autêntica, a verdadeira vontade nacional já se manifestou, cercando-se de todas as cautelas, soberana e inconfundível, nos preceitos constitucionais.[7]
Assim, no atual paradigma do Estado Constitucional Democrático, o juiz deixou de ser o “boca da lei”, a quem se permitia tão somente declarar o direito criado pelo Legislador, para juiz transformador da realidade social e concretizador dos valores e direitos fundamentais inseridos na Constituição da República.
Nessa toada, a Carta Política de 1988 expressamente dispõe em seu art. 14 que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. No mesmo artigo, já em seu §9º, o constituinte inseriu verdadeiro mandamento de concretização de valores, ao dispor que “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
De se notar, destarte, que o Poder constituinte, que representa a vontade da Nação, deixou consignado na Constituição os valores que devem ser tutelados em uma eleição, a fim de que o exercício da soberania popular se dê de forma legítima, sendo certo que a violação de tais postulados axiológicos no curso do processo eleitoral legitima a cassação do mandato eletivo.
Há inegável autorização constitucional para que práticas como o abuso de poder econômico, corrupção e fraudes, sejam coibidas pela Justiça Eleitoral. O Poder Judiciário, alçado à condição de guardião dos valores fundamentais inscritos na Constituição, deve fazer valer tais valores frente a uma pretensa maioria resultante de aliciamento e corrupção eleitoral.
Não é outro o entendimento de Marcio Luiz Coelho de Freitas, para quem:
Daí a legitimidade da atuação da Justiça Eleitoral no expurgo do processo eleitoral daqueles candidatos que tenham demonstrado desrespeito ao princípio democrático, sendo certo que tal atuação está longe de caracterizar a institucionalização de um “terceiro turno” pela judicialização das eleições ou uma decisão no tapetão. Ao contrário, o rigor do processo judicial, sujeito à possibilidade de reapreciação por uma instância superior, e a necessidade de argumentação racional, baseada em provas produzidas sob o crivo do contraditório, existem exatamente para garantir que nesse processo contínuo de evolução e amadurecimento institucional as velhas práticas coronelistas e clientelistas sejam gradativamente abandonadas em prol da construção de uma democracia mais sólida e forte.[8]
Assim, discutida e percebida a legitimidade da atuação da Justiça Eleitoral, o que deve ser realmente repensado é a consequência advinda da cassação do mandato eletivo do candidato infrator.
Isto porque, conforme prevê o art. 222 do Código Eleitoral, a captação ilícita de voto torna anulável a votação dela resultante. Por conseguinte, o art. 224 do mesmo diploma legal declara que se a nulidade atingir mais da metade dos votos em caso de eleições majoritárias, julgar-se-á prejudicado o pleito, marcando-se nova eleição. Logo, só há nova eleição quando o candidato cassado houver obtido mais de 50% (cinquenta por cento) dos votos válidos. Nos demais casos, o segundo colocado nas urnas assume o cargo.
O fato é que não se pode presumir que todos os eleitores que votaram no candidato infrator tiveram suas vontades cooptadas por meios ilícitos. Assim, desconsiderar todos os votos dados ao candidato cassado e, por via de consequência, atribuir o mandato eletivo ao segundo colocado, que não obteve nem a maioria simples nas urnas, não é medida que se coaduna com o princípio democrático.
A própria Constituição Federal, em seu art. 77, §2º e 3º, impõe a necessidade de que o eleito para cargos do Poder Executivo obtenha a maioria absoluta de votos. Assim, a melhor maneira de compatibilizar a cassação de mandatos eletivos pela Justiça eleitoral com o regime democrático e a soberania popular é a realização de novas eleições em ambos os casos, aplicando-se por analogia o art. 81 da Carta Política.
Mas mais que isso. A atuação do Poder judiciário, bem como do Ministério Público Eleitoral, deve ser acima de tudo preventiva e fiscalizatória, por meio de instrumentos mais eficazes de combate à corrupção eleitoral. A prestação de contas de campanha, por exemplo, ao invés de representar mero simulacro de legalidade, como ocorre nos dias atuais, deveria ter que se apresentada na medida em que os gastos fossem sendo realizados.
Em suma, todo o processo que antecede o fatídico domingo de votação deve ser acompanhado de perto tanto pelos órgãos legitimamente incumbidos de tal mister, como pela sociedade civil como um todo, a fim de que a cassação de mandatos eletivos se torna medida cada vez mais rara e excepcional.
CONCLUSÃO
Prática já enraizada no cenário político nacional, a compra de votos se tornou um dos principais mecanismos de campanha dos aspirantes a cargos públicos. Para a maioria deles, salvo raras exceções, a outorga de benefícios materiais a eleitores carentes é meio mais rápido e cômodo de angariamento de votos, o qual prescinde de qualquer discussão política sobre plataformas e projetos de governo.
Conforme restou consignado, no atual paradigma do Estado Constitucional Democrático, a legitimidade da atuação da Justiça Eleitoral em tais casos se funda na própria Constituição Federal, que alçou o Poder Judiciário à condição de guardião dos valores fundamentais inscritos na Carta Política, dentre eles a probidade administrativa, a moralidade para o exercício de mandato eletivo e a legitimidade das eleições.
É imprescindível que se entenda, de uma vez por todas, que voto não tem preço, tem consequências. Somente com essa mudança positiva de atitude poderá se chegar à consolidação do tão propalado Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
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[1] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Direito constitucional, p. 293
[2] NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional, p. 370.
[3] CÓDIGO ELEITORAL
[4] COSTA, Adriano Soares da. Democracia, judicialização das eleições e terceiro turno. Disponível em: <<http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com.br/2009/02/democracia-judicializacao-das-eleicoes.html>>. Acesso em: 20 mai 2014.
[5] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual civil. 14ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p. 27.
[6] CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de constitucionalidade: teoria e prática. 6ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p. 47.
[7] TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Forense Universitária, 1991, p. 375.
[8] FREITAS, Marcio Luiz Coelho de. Soberania popular, democracia e jurisdição eleitoral: reflexões acerca da legitimidade democrática da cassação de mandatos pela Justiça Eleitoral. Disponível em: <<http://jus.com.br/artigos/22278/soberania-popular-democracia-e-jurisdicao-eleitoral-reflexoes-acerca-da-legitimidade-democratica-da-cassacao-de-mandatos-pela-justica-eleitoral>>. Acesso em: 20 maio 2014.
servidora pública municipal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIGUEIREDO, Fernanda Isabela de. Soberania popular e jurisdição eleitoral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46326/soberania-popular-e-jurisdicao-eleitoral. Acesso em: 23 dez 2024.
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