Palavras-chave: Direito do Trabalho. Valorização. Consolidação. Flexibilização.
1. Introdução
O trabalho possui relevante função social, pois é através dele que o homem se realiza e se insere no seio da sociedade. Entretanto, se prestado sob condições precárias, torna-se instrumento de exploração e de subjugação. Foi para evitar a coisificação do homem e de seu trabalho pelo Capital que os direitos trabalhistas surgiram no contexto jurídico.
Na maioria dos países centrais, os direitos do homem que labora foram conquistados mediante a organização dos trabalhadores para reivindicar e lutar por condições dignas de trabalho. O movimento operário, através das conquistas obtidas com sua luta, propiciou a consolidação do ramo jurídico trabalhista, que se tornou responsável por promover a justiça social através da melhoria nas condições de trabalho observadas em determinada sociedade.
No entanto, conforme será demonstrado ao longo deste artigo, o cenário econômico, político e social atual traz como tema relevante o debate acerca da flexibilização dos direitos laborais.
É possível afirmar que inicialmente o trabalho não assumiu um valor social relevante. Apesar de o trabalho humano estar presente desde os primórdios da sociedade, quando os agrupamentos humanos ainda eram nômades e o trabalho era comunitário, tendo por fito a sobrevivência do grupo, tem-se que, apenas após a Revolução Industrial e a eclosão da chamada Questão Social, o trabalho humano conquistará relevante valor econômico e social.
Nas sociedades antigas, havia basicamente dois grandes modelos de organização do trabalho: o modo de produção asiático e o modelo escravista. Ambos pecavam por não conferir ao trabalho a liberdade e a dignidade, que, como será demonstrado, lhe são inerentes.
O modelo asiático de produção correspondia ao modelo adotado pelos primitivos Estados Teocráticos, onde, através da religião, um soberano, tido por divindade, exercia seu domínio sobre as propriedades e os meios de produção e subjuga toda a coletividade, que trabalha conforme as suas ordens e a seu favor.
Já o modelo escravista correspondia ao modo de produção no qual, através da coação física, um homem subjugava o outro, que era tido como coisa, para que este exercesse o trabalho em favor daquele.
Em momento posterior, com a organização das sociedades em feudos, o trabalho continuou sem adquirir valor econômico e social relevante. Na organização das sociedades feudais, o trabalho era realizado pelas pessoas que se encontravam na base da pirâmide social, o que demonstrava o pouco valor que lhe era atribuído [1].
É com o desenvolvimento do Capitalismo e com a Revolução Industrial que o trabalho livre e assalariado assumirá importante função no seio da sociedade. Com a Revolução Industrial, surgiu grande demanda por mão de obra assalariada nas cidades. Como os centros industriais necessitavam de operários, grande parte da população rural abandonou o campo e dirigiu-se às cidades em busca do trabalho assalariado, o que resultou numa profunda transformação da sociedade, a qual, paulatinamente, passou de rural para urbana num esboço do que se tornariam as sociedades atuais.
Importa ressaltar que o trabalho prestado nesses centros industriais era prestado por pessoas livres e possuía valor econômico, afinal, o trabalhador recebia, em contraprestação ao serviço prestado, um salário. Entretanto, sob a ótica social, o trabalho ainda era algo extremamente precário e carente de regulação, vez que inexistiam regras que regulassem a sua prestação, bem como salvaguardassem a saúde e a segurança dos trabalhadores.
Tem-se, pois, que, apesar de o trabalho livre e assalariado, após a Revolução Industrial, se tornar a força motora das sociedades urbanas, o único valor que lhe era reconhecido era o valor econômico – “valor-salário”.
A ausência de regulação das condições de trabalho fez com que os detentores do Capital, donos das indústrias, abusassem de seus operários, submetendo-os a um sistema de profunda exploração do homem trabalhador, vez que o empregador, na busca do maior lucro possível, comumente submetia seus empregados a jornadas desumanas de trabalho, não lhes fornecendo quaisquer benesses, como salário digno, intervalos para descanso, equipamentos de proteção etc.
Com o tempo, os trabalhadores, inconformados com as condições de labor às quais eram submetidos, se associaram e passaram a reivindicar melhores condições de trabalho e salários. As reinvindicações dos trabalhadores assumiram a cena do contexto socioeconômico pós Revolução Industrial, resultando, inclusive, no surgimento de sistemas alternativos ao sistema capitalista de produção, quando então ganhou especial relevo a doutrina comunista, e na interferência da Igreja Católica no âmbito da organização do trabalho através de suas “doutrinas sociais”.
A luta do proletariado foi, aos poucos, conquistando, para os trabalhadores, alguns direitos trabalhistas, o que resultou no reconhecimento de que o trabalho não é uma mercadoria que pode ser livremente negociada, mas sim uma prestação de atividade humana que merece e deve ser respeitada e valorizada para que possa atingir os fins sociais a que se destina.
Como bem afirma Fábio Goulart Villela,
A partir do advento da Revolução Industrial, e a configuração da chamada ‘questão social’, caracterizada pelo conflito de interesses entre as classes do capital (burguesia) e do trabalho (proletariado), assim como do posterior surgimento das ‘doutrinas sociais’, destacando-se a Encíclica Rerum Novarum, editada pelo Papa Leão XIII (1891), é que se iniciou o processo de valorização do trabalho, enquanto instrumento da dignidade da pessoa humana do trabalhador [2].
Com o reconhecimento de que o trabalho deve ser respeitado e valorizado, os trabalhadores viram surgir as primeiras normas protetivas trabalhistas, e, posteriormente, toda a sistematização e todo o regramento do ramo jurídico especializado trabalhista. Como bem expôs Fábio Goulart Villela:
Quando do final da Primeira Grande Guerra, o Tratado de Versalhes, além de criar a Organização Internacional do Trabalho (1919), como parte das Sociedades das Nações, consagrou, a nível internacional, o Direito do Trabalho como novo ramo autônomo da ciência jurídica, enunciando, em seu art. 427, como princípio diretivo informador deste novo Direito o “de que o trabalho não há de ser considerado como mercadoria ou artigo de comércio [3]”.
O art. 427 supracitado, ao mencionar que o trabalho não pode ser tratado como mercadoria, nada mais faz do que reconhecer a humanidade intrínseca ao trabalho: como não pode o homem despir-se de sua condição de homem para negociar a prestação do seu trabalho, tem-se, por conclusão, que o trabalho deve ser realizado em condições compatíveis com a dignidade de quem o presta, no caso, a dignidade da pessoa humana.
Por ser impossível separar o labor do homem que labora é que se faz de extrema relevância o reconhecimento de um valor supraeconômico para o trabalho humano. A dignidade humana acompanha o homem em todas as suas ações, incluindo-se nestas a ação de prestar um serviço, um trabalho, e é em razão de tal fato que o trabalho humano merece especial atenção, pois que é instrumento da dignidade da pessoa humana do trabalhador não apenas pelo fato de o trabalho dignificar o homem, tornando o capaz de suprir suas necessidades e de sua família, mas também pela necessidade de que o trabalho prestado seja um trabalho digno, coerente com a condição humana de quem o realiza.
A luta dos trabalhadores por condições dignas de trabalho resultou na construção de todo um arcabouço jurídico especializado voltado à promoção do respeito à dignidade do homem que labora, mediante a regulação das condições de trabalho, o que permite concluir que, atualmente, o menor dos valores conferidos ao trabalho é o valor econômico, vez que seu valor social, de realização da dignidade humana, é o maior valor que lhe pode ser conferido – e isto porque é através do trabalho que o homem se realiza e se insere na sociedade.
Nessa esteira, a Constituição Federal de 1988, elenca entre os fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV). Do mesmo modo, o art. 170, também da Constituição, preceitua que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]”. A análise sistemática dos preceitos constitucionais nos leva a concluir que o valor trabalho está constitucionalmente protegido na mesma intensidade que o está a livre iniciativa. E mais, a dignidade da pessoa humana é o princípio e o fim no qual devem se pautar a valoração do trabalho e o exercício da livre iniciativa.
Como visto no item anterior, houve uma época em que o trabalho humano se submetia puramente aos interesses capitalistas, inexistindo um grupo de regras que salvaguardasse aos trabalhadores um mínimo de direitos e que preservasse a dignidade do homem na prestação do labor.
Entretanto, especialmente nos países centrais, a organização dos trabalhadores e sua luta por condições dignas de trabalho e por justos salários resultou na conquista, pelos trabalhadores, de um conjunto de direitos trabalhistas, conjunto este que, somado a outros direitos que, ao longo do tempo, a classe trabalhadora teria por reconhecidos, resultou na sistematização e consolidação do Direito Laboral.
O movimento operário, através das conquistas obtidas com sua luta, propiciou a consolidação do ramo jurídico trabalhista, que se tornou responsável por promover a justiça social através da melhoria nas condições de trabalho observadas em determinada sociedade.
O Direito do Trabalho é, portanto, fruto da tensão social existente entre o Capital e o Trabalho, correspondendo ao conjunto de regras que visam garantir ao obreiro condições dignas de trabalho. Busca o Direito do Trabalho, portanto, equacionar a luta de classes ao garantir que a necessidade de lucro do Capital não fira, em momento algum, a dignidade da pessoa que presta o trabalho.
No Brasil, na contramão do que ocorreu nos países centrais, a consolidação do Direito do Trabalho se deve a um ato estatal e não à luta realizada pelo proletariado. O Estado brasileiro, antecipando-se e visando obstaculizar a organização da luta dos trabalhadores, “concedeu” um conjunto de direitos trabalhistas a todos os trabalhadores. Confabulou o Estado que seria melhor conceder, desde já, um mínimo de direitos aos trabalhadores do que se submeter à organização e à luta dos trabalhadores, a qual poderia terminar por angariar um conjunto maior de direitos do que os que o Estado estava disposto a conceder.
Observa-se, desse modo, que, apesar de o movimento operário brasileiro restar enfraquecido mesmo antes de organizar-se, de adquirir força reivindicatória e de interferir na direção da política trabalhista nacional, foi ele, aqui também, ainda que indiretamente, quem propiciou o surgimento de normas trabalhistas, visto que a “sujeição” do Capital a um mínimo de encargos laborais somente ocorreu em razão do temor à possibilidade de organização da luta da classe trabalhadora.
Isto posto, o que se pretende ressaltar é que, consolidado o conjunto de direitos trabalhistas a serem aplicados aos pactos laborais – seja esta consolidação obtida mediante a luta proletária ou mediante a “benesse” estatal –, consolidado estará o Direito do Trabalho.
No entanto, faz-se imperioso consignar que o Direito do Trabalho se consolidou num momento histórico em que vigorava o modelo de produção capitalista no qual se prestigiava a produção em massa e a formação dos grandes estoques de mercadorias (modelo fordista e modelo taylorista [4]), e, por isso, as regras do direito do trabalho até então sistematizado e consolidado a esse modelo se referem e se conformam. Como bem apontou Leandro do Amaral, “o Direito do Trabalho é um instrumento de regulação próprio do modo de produção capitalista tal como se apresentou em um determinado estágio de desenvolvimento [5]”.
Com o tempo, contudo, o modo de produção capitalista, como é de sua própria natureza, se renova e se transforma, sendo atualmente sumamente mais flexível que o modelo de produção anterior. O novo modelo abandona a massificação e os grandes estoques e pugna pela produção mediante a demanda (modelo toyotista [6]).
Em razão da transformação do modo de produção capitalista, as regras de Direito do Trabalho, muitas vezes, vão de encontro às atuais necessidades do trabalho. O modelo toyotista de produção requer, por exemplo, jornadas de trabalho flexíveis, já que estas agora variarão de acordo com a demanda. Sendo assim, tem-se que o modo de produção capitalista atual pugna por regras trabalhistas mais flexíveis, que possam ser adequadas à dinâmica de organização e produção de cada núcleo empresarial.
Vale a pena transcrever as palavras de Leandro Amaral acerca das transformações trazidas pelo modo de produção toyotista:
A flexibilidade do aparato produtivo toyotista traz como conseqüência a flexibilização da organização do trabalho, pois deve haver agilidade na adaptação do maquinário e dos instrumentos para que novos produtos sejam elaborados conforme a demanda do mercado. No fordismo, a produção era ditada a partir dos recursos da empresa para a produção em massa e, assim, estruturada em padrões mais rígidos. A inserção plena do trabalho humano, em conseqüência, não se caracterizava um maior ônus à empresa, pois a produção era contínua. Já no toyotismo, a produção é ditada a partir da demanda do mercado e, dessa forma, instável, flexível. Portanto, a inserção estável do trabalhador na cadeia produtiva constitui-se em um entrave para a acumulação flexível [7].
Ademais, a globalização e a revolução tecnológica, ao diminuírem os obstáculos impostos pelas fronteiras do tempo e do espaço, culminaram na formação de um mercado global, onde há a transferência de capital, trabalho e mercadorias não mais apenas no âmbito de um único país, mas sim em âmbito mundial, entre os diversos países.
Um dos problemas observados com a formação desse “mercado global” foi o fato de que as divergências encontradas nas legislações laborais dos diferentes países vêm fazendo com que as empresas prefiram se instalar nos países onde os encargos trabalhistas lhes são menores, ou seja, onde há menos direitos trabalhistas reconhecidos aos obreiros, vez que isto lhes permite aumentar os lucros. Sendo assim, os empresários pugnam por uma diminuição nos encargos trabalhistas como forma de conseguir fazer frente à concorrência internacional, muitas vezes sujeita a pouco ou quase nenhum encargo social.
No âmbito político, vem ganhando relevo a doutrina neoliberalista, que pugna pelo retorno ao Estado Mínimo como forma de reduzir e/ou solucionar os problemas financeiros estatais. Orienta o Neoliberalismo o Estado a se retirar do âmbito social, abandonando, portanto, a ideia de Estado de Bem Estar Social, o que se concretizaria através da desregulamentação dos direitos sociais, em especial a dos direitos trabalhistas.
Sobre o Neoliberalismo, Leandro Amaral afirma que:
No plano da legislação social, essa ideologia [neoliberal] apregoa os direitos trabalhistas que protegem a classe trabalhadora como um dos fatores impeditivos do desenvolvimento econômico e, para eliminá-lo, prolifera, entre outros, o discurso de uma necessária flexibilização das relações de trabalho (e, conseqüentemente, de sua regulação) [8].
Outros fatores contemporâneos também remontam à necessidade de flexibilização das normas laborais, dentre eles merecem destaque a automatização da produção e a formação de novos tipos de trabalho, como, por exemplo, o teletrabalho. A inserção da tecnologia no processo produtivo reduziu significativamente o número de postos de trabalho, ocasionando o denominado desemprego estrutural e proporcionando a formação do que outrora foi chamado de “exército de reserva”. Ao mesmo tempo, ao aliar-se tecnologia e processo produtivo, surgiram novas profissões e formas de prestação de trabalho, cujas peculiaridades não se adaptam aos direitos trabalhistas já existentes, necessitando, pois, de um tratamento jurídico especial, mais adequado às suas particularidades.
Comentando as transformações político-sócio-econômicas do fim do século passado e a sua relação com a transformação do Direito Laboral, Mauricio Godinho Delgado leciona que:
Uma conjugação de fatores verificou-se nessa época [1970/1980]. De um lado, uma crise econômica iniciada alguns anos antes, entre 1973/74 (a chamada crise do petróleo), que não encontrou resposta eficaz e rápida por parte das forças políticas então dirigentes. A crise abalava a higidez do sistema econômico, fazendo crescer a inflação e acentuando a concorrência interempresarial e as taxas de desocupação no mercado de trabalho. A par disso, agravava o déficit fiscal do Estado, colocando em questão seu papel de provedor de políticas sociais intensas e generalizantes. De outro lado, um processo de profunda renovação tecnológica, capitaneado pela microeletrônica, robotização e microinformática. Tais avanços da tecnologia agravavam a redução dos postos de trabalho em diversos segmentos econômicos, em especial na indústria, chegando causar a ilusão de uma próxima sociedade sem trabalho. Além disso, criavam ou acentuavam formas de prestação laborativa (como o teletrabalho e o escritório em casa – home-office), que pareciam estranhas ao tradicional sistema de contratação e controle empregatícios [9]. (em itálico no original)
Do exposto, tem-se que a confluência de diversos fatores – sociais, políticos e econômicos – resultou no debate acerca da necessidade de flexibilização dos direitos trabalhistas. Os empregadores reclamam da rigidez e da burocracia do ordenamento laboral atual, requerendo um Direito do Trabalho mais flexível, que permita a adequação setorial de suas normas. A concorrência, agora nacional “e” internacional, demanda a redução dos custos do valor-trabalho, enquanto que o novo modelo de produção capitalista carece de uma estrutura legal que viabilize a sua realização. Nesse sentido, manifesta-se Amauri Mascaro Nascimento, aduzindo que as leis trabalhistas “[...] não devem dificultar o desenvolvimento econômico e devem compatibilizar-se com as exigências da economia de mercado e com a valorização das negociações coletivas [10]”.
4. Flexibilização e Desregulamentação
Amauri Mascaro conceitua a flexibilização do direito do trabalho como sendo “[...] o afastamento da rigidez de algumas leis para permitir, diante de situações que a exijam, maior dispositividade das partes para alterar ou reduzir as condições de trabalho [11]”.
Já Leandro do Amaral afirma que a flexibilização denota um sentido amplo: por um lado, pode ser mera adaptação das questões relacionadas à produção e às mutações do contexto sócio-político-econômico, podendo significar inclusive formas de proteção mais próximas da realidade; por outro lado, pode corresponder à desregulamentação ou à re-regulamentação do direito do trabalho, traduzindo-se na subordinação da regulação estatal à valorização do livre mercado como marco regulatório social [12].
Abordando o tema de modo diferente, Sussekind afirma que desregulamentação não é uma forma de flexibilização e, logo em seguida, distingue a flexibilização da desregulamentação argumentando que:
A desregulamentação retira a proteção do Estado ao trabalhador, permitindo que a autonomia privada, individual ou coletiva, regule as condições de trabalho e os direitos e obrigações advindos da relação de emprego. Já a flexibilização pressupõe a intervenção estatal, ainda que básica, com normas gerais abaixo das quais não se pode conceber a vida com dignidade. Precisamente porque há leis é que determinados preceitos devem ser flexíveis ou prever formulas flexíveis para sua aplicação [13].
Apesar de concordar com a separação entre desregulamentação e flexibilização proposta por Sussekind, se utilizará, apenas neste momento, a idéia proposta por Leandro do Amaral, de uma flexibilização “lato sensu”, com o fito meramente didático de proceder à classificação da flexibilização quanto aos fins, ao objeto e à forma. A classificação utilizada é a esboçada pelo próprio Leandro do Amaral em sua obra entitulada “A transformação do direito do trabalho”. O autor afirma que, quanto aos fins, a flexibilização juslaboral pode visar: a) à mudança dos direitos trabalhistas para aumentar a proteção ao trabalhador; b) à adequação dos rígidos direitos trabalhistas a novas circunstâncias, mediante negociação coletiva, o que será mais conveniente tanto para o trabalhador quanto para o empregador; c) à desregulamentação ou derrogação dos direitos trabalhistas.
Quanto ao objeto, pode a flexibilização ser interna ou externa: será interna quando relacionada a aspectos do pacto laboral em si, como se dá com pactuações sobre jornada, salários etc., e será externa quando disser respeito a mecanismos de ingresso e de saída do mercado de trabalho, tais como tipos ou modelos de contratação e restrição à despedida. Por fim, quanto à forma, a flexibilização pode ser imposta pelo Estado (heterônoma) ou negociada (autônoma). O autor ressalva que a flexibilização heterônoma caracteriza-se preponderantemente pela desregulamentação, que age basicamente na forma de flexibilização externa, alterando mecanismos de ingresso e saída do mercado de trabalho, enquanto que a flexibilização autônoma, negociada, cinge-se, em regra, aos temas referentes à flexibilização interna.
No Brasil, a adaptação do modelo justrabalhista até então vigente às novas necessidades dos modos de produção flexível se deu, em regra, através da flexibilização heterônoma e externa. A legislação trabalhista nacional foi quem sofreu alterações substanciais relevantes nessa fase de transição capitalista e justrabalhista. Como assevera Amauri Mascaro Nascimento,
No Brasil, as leis foram flexibilizadas, inicialmente, em 1966, com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, que facilitou a dispensa dos empregados optantes para os quais foi extinta a indenização de dispensa, substituída pelos depósitos mensais que o empregador faz na conta do empregado no fundo e pela estabilidade no emprego que antes adquiriam ao completar dez anos no mesmo emprego; em 1974, a autorização legal para o trabalho temporário; em 1988, a Constituição permitiu a redução salarial por acordo ou convenção coletiva, a participação nos lucros ou resultados da empresa desvinculada dos salários e a lei criou o contrato por prazo determinado para admissão de pessoal acima do quadro fixo da empresa; em 1989, foram eliminadas proibições para o trabalho da mulher em horário noturno, extraordinário, em ambiente de insalubridade ou periculosidade, em subterrâneos, minas, subsolos e obras de construção civil; em 1994, os reajustes salariais anuais coletivos, que eram indexados, foram transferidos para a livre negociação coletiva; no mesmo ano, a lei passou a dispor que não configura vinculo de emprego o trabalho de cooperados ente estes e a empresa utilizadora dos seus serviços; em 1998, foi autorizado o trabalho sem vinculo de emprego; em 1999, a lei permitiu o trabalho em tempo parcial; em 2001, a lei autorizou a compensação anual das horas, desaparecendo a obrigação de pagar horas extras quando concedida folga substitutiva do excesso de horário; no mesmo ano, foram retirados os encargos sociais de diversas utilidades, como educação, transporte, assistência medica, hospitalar, odontológica, seguro-saúde, seguro de vida, seguro de acidentes pessoais e previdência privada, e foi permitida a suspensão temporária coletiva do contrato de trabalho, de 2 a 5 meses, diante de causas econômicas, de reorganização ou crise da empresa com manutenção dos direitos previdenciários, bolsa de requalificação e vantagens voluntariamente ajustadas pelo empregador por acordo ou convenção coletiva [14].
Entretanto, a Constituição Federal de 1988, além de permitir a redução do salário por convenção ou acordo coletivo de trabalho, como mencionou o autor, possibilitou também a flexibilização da jornada de trabalho mediante acordo ou convenção coletiva (art. 7º, incisos XIII e XIV). A valorização e a ampliação do espaço cedido ao instituto da negociação coletiva pela Constituição, especialmente em época cujo principal debate é a transformação/transição do modelo juslaboral, favorece a flexibilização interna e autônoma das regras trabalhistas heterônomas, uma vez que propicia aos atores sociais meio idôneo para adequar o modelo trabalhista vigente às necessidades setoriais de produção e trabalho.
Isto posto, é possível afirmar que a negociação coletiva desponta, no ordenamento jurídico brasileiro, como relevante instrumento de flexibilização juslaboral. A flexibilização autônoma, realizada por esta via coletiva, pode tanto implementar um patamar de direitos trabalhistas superiores ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma, quanto apenas adequar os direitos da legislação heterônoma a um modelo mais conveniente às necessidades empresariais e dos trabalhadores, sem, no entanto, alterar substancialmente o conjunto dos direitos trabalhistas de origem estatal. Pode, ainda, estabelecer um padrão social de direitos trabalhistas inferior ao garantido pela legislação heterônoma.
5. Conclusão
Do exposto, percebe-se que a temática atual no cenário referente aos direitos dos trabalhadores é a flexibilização e/ou desregulamentação, vez que, ante os diversos fatores observados no cenário mundial – sociais, econômicos, políticos etc. –, conforme explicitado acima, e especialmente sob a ótica da parte detentora dos fatores de produção, as regras laborais atualmente consolidadas encontram-se ociosas e inaptas a regular as modernas relações de trabalho.
No entanto, em que pese a relevância da temática acerca da flexibilização dos direitos laborais, não se deve olvidar que o debate flexibilizatório não pode ser amplo a ponto de se possibilitar a violação à dignidade do trabalhador, uma vez que o trabalho constitucionalmente assegurado ao trabalhador não é um trabalho qualquer, despido de valor ou proteção, como nos tempos de outrora, mas sim um trabalho digno, sendo a dignidade da pessoa humana o princípio e o fim no qual devem se pautar a valoração do trabalho e o exercício da livre iniciativa.
6. Notas e Referências
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007.
DORNELES, Leandro do Amaral D. de. A transformação do direito do trabalho: da lógica da preservação à lógica da flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002.
GONÇALVES, Rogério Magnus Varela. Direito constitucional do trabalho: aspectos controversos da automatização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos direitos fundamentais sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 33 ed. São Paulo: LTr, 2007.
SILVA, Paulo Henrique Tavares da. A valorização do trabalho como princípio constitucional da ordem econômica brasileira. Curitiba: Juruá, 2003.
SUSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 2. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
VILLELA, Fábio Goulart. A função social do contrato de trabalho. Toga estudos jurídicos. Disponível em: <http://www.cursotoga.com.br/artigos_funcaoSocial.asp>. Acesso em: 07 nov. 2009.
[1] A organização da sociedade feudal era representada pela seguinte pirâmide social: no topo situava-se a aristocracia (bellatores), que possuía a função de defender a comunidade; logo em seguida estava a classe dos clérigos e monges (oratores), responsáveis por orar; e, por último, localizados na base da pirâmide, restavam os camponeses (laboratores), que tinham por encargo trabalhar para sustentar todo o restante da pirâmide. Vale lembrar que os camponeses, apesar de donos de seus instrumentos, não eram livres, pois se sujeitavam a inúmeras obrigações para com o senhor feudal. Para uma melhor compreensão acerca da dinâmica da sociedade feudal, cf. SILVA, Paulo Henrique Tavares da. A valorização do trabalho como princípio constitucional da ordem econômica brasileira. Curitiba: Juruá, 2003, p. 33-34.
[2] [3] VILLELA, Fábio Goulart. A função social do contrato de trabalho. Toga estudos jurídicos. Disponível em: <http://www.cursotoga.com.br/artigos_funcaoSocial.asp>. Acesso em: 07 nov. 2009. [4] Apesar de serem modelos de produção distintos, em virtude das semelhanças entre os dois modelos, especialmente quando contrapostos ao modo de produção toyotista, utilizar-se-á no presente trabalho as expressões fordismo e taylorismo indistintamente. Como bem afirmou Leandro do Amaral, “embora fenômenos distintos, fordismo e taylorismo marcam conjuntamente o paradigma de estruturação da produção do início do século XX até os anos 70. São estratégias de organização com um fim semelhante – a otimização do processo produtivo, voltado para a produção em massa – e, por isso, são referidos simultaneamente e utilizados, não raro, indistintamente”. Sobre o tema, cf. DORNELES, Leandro do Amaral D. de. A transformação do direito do trabalho: da lógica da preservação à lógica da flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002, p. 97.
[5] DORNELES, Leandro do Amaral D. de. A transformação do direito do trabalho: da lógica da preservação à lógica da flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002, p. 31-32. [6] O modo toyotista de produção baseia-se, principalmente, na flexibilidade da organização empresarial e na produção conforme a demanda do mercado de consumo, denominada de “just in time”, prescindindo, pois, de um número estável e constante de empregados à disposição da empresa. Neste modelo de produção idealiza-se uma fábrica mínima, com reduzido número de trabalhadores, onde há a possibilidade de prestação de labor extraordinário e de contratação de trabalhadores de forma precária, por tempo determinado ou com jornada parcial, uma vez que, se a produção se dará conforme a demanda, quando esta for mínima, a empresa necessitará de um exíguo número de empregados e a jornada de trabalho não necessitará ser extensa, ao revés, quando for máxima, a necessidade de trabalhadores e de jornada de trabalho estendida aumentará.
[7] DORNELES, Leandro do Amaral D. de. A transformação do direito do trabalho: da lógica da preservação à lógica da flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002, p. 104.
[8] DORNELES, Leandro do Amaral D. de. A transformação do direito do trabalho: da lógica da preservação à lógica da flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002, p. 111.
[9] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 97.
[10] [11] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 33 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 69.
[12] DORNELES, Leandro do Amaral D. de. A transformação do direito do trabalho: da lógica da preservação à lógica da flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002, p. 140-141.
[13] SUSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 2. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 52.
[14] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 33 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 69-70.
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da Paraíba (ESMAT-13).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Larissa Costa de. O Direito do Trabalho na contemporaneidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47150/o-direito-do-trabalho-na-contemporaneidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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