Resumo: Este trabalho analisará sob a égide da vigente Carta Maior e dentro de um contexto social complexo, o quadro situacional da aplicabilidade do Movimento Escola Sem Partido, o qual impõe barreiras para o debate de gênero no ensino público.
Palavras Chave: Igualdade de Gênero. Escola Sem Partido. Princípios Constitucionais. Instituições Sociais.
1. Introdução
A recente refutação sobre a inserção da questão de debate de gênero no novo plano nacional de educação, aprovado em 2014 com validade de dez anos, levou o Congresso Nacional se portar de forma omissa em relação à questão, propiciando as assembleias legislativas dos estados e câmaras municipais legislarem sobre o assunto conforme seus interesses.
Partindo dessa premissa inúmeras são as leis vigentes e projetos de lei em tramite no âmbito municipal e estadual que vedam, expressamente, o ensino sobre gênero nas escolas, entre os municípios seis são capitais, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Palmas e Teresina.
No âmbito nacional, recentemente, foi lançado o projeto de lei nº 193, que inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o "Programa Escola sem Partido".
O movimento Escola sem Partido, criado em 2004 e transformado em Associação em 2015, proíbe o debate de gênero nas salas de aula, embasando seu discurso na aplicação de um ensino politicamente, ideologicamente e religiosamente neutro, visando o pluralismo de ideias, liberdade de crença e consciência por parte dos educandos, visto estes serem “parte mais fraca” na relação de aprendizado e defende também o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. Este movimento embasa todos projetos e leis que convergem neste sentido, instigando a criação de leis de disciplinamento e punição dos docentes que praticarem ações consideradas por seus autores como “doutrinação ideológica”.
É notória a representatividade que a educação possuí no pleno desenvolvimento de crianças, jovens e adolescentes, moldando sua forma de lidar e conviver em sociedade, o que, por conseguinte deve abarca uma visão para com o diferente, levando a reconhecer e respeitar a existência de seres humanos que estão inseridos em uma mesma sociedade livre e democrática.
O fato da escola ser uma instituição pública, governamental e obrigatória justifica sua abrangência e influência social, o que por vezes a torna um lugar de manifestação de poderes e interesses políticos do Estado e de instituições predominantes.
A discriminação de gênero no Brasil encontra-se enraizada muito profundamente na consciência social, demonstrada tanto pela mulher milenarmente oprimida e silenciada, que vivência uma desigualdade no campo econômico, político e social, quanto pelo indivíduo que não se enquadra nos padrões de heteronormatividade, como gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, transexuais e intersexuais, visto também que ambas as classes, além da subalternação, sofrem um alto índice de violência e hostilidade social.
Diante a relevância que o ambiente escolar possuí na manutenção ideológica dos educandos paralelo ao cenário de discriminação de gênero presente no Brasil e embasado nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, percebe-se a necessidade de tais fatores estarem em harmonia, para assim perfazer o estado democrático e digno de direito.
2. Movimento Escola Sem Partido, a Constituição Federal e a Legislação Infraconstitucional
Apesar do preâmbulo da vigente Constituição da República Federativa do Brasil (1988) não carregar força normativa, ela mostra quais as bases intencionais que a Assembleia Nacional Constituinte teve no momento de promulgação da carta, partindo dessa premissa, a Constituição Federal busca assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.
Dentre os princípios constitucionais estão o da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, CF/88), da isonomia (art. 5º, caput e inciso I e art. 3º, IV da CF/88) e da liberdade (Art. 5º, inciso IV, VIII, IX e XIV e art. 3º, I da CF/88).
Segundo Barroso (2009, p.252), o princípio da dignidade da pessoa humana resguarda o respeito ao próximo, a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de respeitar o diferente, garantindo a tutela da liberdade, igualdade e promoção de justiça.
Referente ao princípio da liberdade, se tem que o indivíduo possuí a ampla possibilidade de pensamento, de opinião, assim o Estado democrático de direito deve não apenas assegurar ao indivíduo o seu direito de escolha, visto a possibilidade de várias alternativas, como, paralelamente, deve propiciar condições e ações objetivas para que estas escolhas possam se concretizar. As pessoas devem ter o direito de desenvolver a sua personalidade e as instituições políticas e jurídicas devem promover esse desenvolvimento, e não dificultá-lo. (Barroso, 2006, p. 22).
Neste mesmo viés caminha o princípio da isonomia, também denominado princípio da igualdade, este por sua característica abrangente, complexa e seus elementos metajurídicos carrega um grau de dificuldade conceitual dentro da doutrina jurídica, conforme Alvacir Alfredo Nicz, o princípio da isonomia se divide em três concepções: o princípio da isonomia perante a lei em sentido formal, o princípio da isonomia perante a lei em sentido material e o princípio da isonomia enquanto projeto real visando a obtenção da igualdade de oportunidades como concretização da ideia de justiça social.
Usar-se-á este último conceito para falar do princípio da isonomia dentro do contexto estudado, pois a questão de debate de gênero leva a inclusão do oprimido instigando sua condição de igualdade social, a figura do Estado entra como agente provedor de ações e políticas públicas que alcancem este ideal, isso é garantir.
Analisando o movimento Escola Sem Partido frente aos princípios constitucionais já mencionados percebe-se que estes se confrontam, ora, é sabido que todas as formas de preconceitos e discriminações são frutos de uma imposição cultural e social, aliás, seguindo essa premissa destaca-se que as crianças não possuem a ideia de sexismo conforme é tida pelos adultos, aquelas vão criando e tomando para si os padrões heterosnormativos ao longo do tempo e conforme as influências que as cercam.
Logo, buscando garantir os direitos fundamentais daqueles que não se enquadram nos padrões esperados socialmente, paralelo ao dever do estado de promover a justiça, fica evidente que o projeto Escola Sem Partido (ESP), ao proibir que se discuta gênero no ambiente escolar, fomenta a perpetuação de tabus e paradigmas segregadores, pois veja, através da conscientização situacional do real o oprimido se empodera e o opressor enfraquece.
O art. 206, inciso II da Constituição Federal (1988) é claro ao ordenar que o ensino escolar deve ser ministrado com base nos princípios da liberdade de aprender, de ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, seguidamente o inciso II do mesmo artigo expõe o direito ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Logo, tudo aquilo que diverge deste sentido é visto como afronta ao estado democrático de direito e à liberdade do exercício do profissional de pedagogia, o colocando em constante vigilância e o impedindo de práticas pedagógicas pluralísticas.
O movimento ESP faz apologia à liberdade de expressão, colocando que professores influenciam nesta liberdade utilizado das salas de aula para promover suas ideologias e crenças, porém, ao mesmo tempo em que fala de liberdade de expressão cerceia a manifestação do pensamento crítico, colocando a figura do estudante como algo que não possa pensar, refletir e tirar suas próprias conclusões.
Claramente se percebe quão é infundado o discurso feito pelo movimento ESP, visto que, através da dialética, do debate, do questionamento que se abrem portas para novas visões, ideias e construções tão necessário para atingir um patamar de sociedade justa e ideal, alavancando o alcance do pleno desenvolvimento da pessoa, defendido no art. 205 da Constituição Federal (1988).
Importante, ressaltar que, as restrições feitas pelo movimento Escola Sem Partido também abarcam o âmbito das universidades, indo em desacordo bruto com o art. 207 da Constituição Federal (1988) que dá o poder às universidades de autonomia didática-científica, não é cabível um ambiente de construção crítica sofrer tais retrocessos em sua democracia.
Não bastasse todo ordenamento constitucional que se opõe ao movimento ESP, tem se ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394 de 1996, legislação infraconstitucional máxima no âmbito educacional, que detalha os direitos e organiza os aspectos gerais do ensino.
O art. 1º da LDB dispõe que a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais, logo, a partir da leitura do artigo, concluísse que a educação é fruto de um conjunto de instituições e ambientes que proporcionam uma diversidade de saberes, frisa-se que o artigo em momento algum fala que uma instituição se sobrepõe à outra, tornando os horizontais entre si, o que quebra com a argumentação do movimento Escola Sem Partido que defende o fato dos pais terem o direito que seus filhos recebam uma educação sintonizada com a de seu âmbito familiar.
Entre os princípios que embasam a educação segundo a LDB e que não são mencionados expressamente pela Constituição Federal (1988), cabe mencionar devido a pertinência temática para com a questão em analise, os seguintes: respeito à liberdade e apreço à tolerância, valorização do profissional da educação escolar e gestão democrática do ensino público.
Ora, para criar cidadãos tolerantes é preciso conscientiza-los da questão situacional do Outro (leia-se diferente), para a partir dessa premissa, criar um olhar de empatia, de compreensão, de naturalização com aquilo que não lhe é igual.
A Convenção sobre Direito das Crianças de 1989 do qual o Brasil tornou signatário em 1990 expõe em seu art.13-1 que “a criança terá o direito à liberdade de expressão; este direito incluirá a liberdade de buscar, receber e transmitir informações e ideias de todos os tipos, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio da escolha da criança” no mesmo sentido, ordena o art. 14 – 1 “os Estados-partes respeitarão o direito da criança à liberdade de pensamento, de consciência e de crença” e art. 14-2 “os Estados-partes respeitarão os direitos e deveres dos pais e, quando for o caso, dos representantes legais, de orientar a criança no exercício do seu direito de modo consistente com a evolução de sua capacidade.”
A partir da análise dos artigos da Convenção sobre Direitos das Crianças, percebe-se quão se prioriza o direito de liberdade de expressão, de opinião e de pensamento no desenvolvimento das crianças, frisa-se independente de fronteiras, e que os pais, podem, se for o caso, orientar seus filhos, ou seja, a ideologia de crença e política dos pais, mesmo que divergentes do que é ensinado na escola, não acarreta empecilho ao ensino da pluralidade de ideais.
3. As Instituições Por Trás do Movimento Escola Sem Partido
Apesar do Brasil ser uma República Federativa regida por três poderes visando um estado democrático de direito, é sabido que, muito do rumo que o país toma é devido a determinadas instituições predominantes, como a Igreja, a família, a mídia, o patriarcado, a escola, a polícia, entre outras, que utilizam de seu poder para perpetuar suas hegemonias.
O surgimento da educação no Brasil Colônia, conforme ensinamento de Marcos Oliveira (2004, p.946), estava embasada em uma cultura ibérica imposta pela igreja católica, com a chegada da ordem dos jesuítas em 1549, a igreja foi a responsável pela catequização dos índios e pela educação da elite colonizadora.
Partindo dessa premissa, e analisando a ideologia religiosa dos políticos que se posicionam a favor dos projetos Escola Sem Partido - como é o caso do Senador Magno Malta, pastor evangélico, que foi autor do projeto de lei nº 193 de 2016 que tramita no Congresso Nacional à favor da implementação do programa ESP em todo o ensino nacional – nota-se como a Igreja ainda possuí poder e influência sobre a sociedade que reproduz seus valores, padrões e ideologias sociais e culturais.
O fato de o Brasil apresentar hoje um Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores em sua totalidade compostas predominantemente por homens, ofuscando o direito de voz das mulheres, igualmente contribui para a perpetuação das hegemonias, fomentados por um poder midiático que reafirma o papel de subalternação da figura feminina, fatos estes que abarcam a conjuntura ideologia do movimento Escola Sem Partido.
Assim, o conservadorismo do qual a sociedade brasileira é legatária, exposta na presença de uma herança colonialista e autoritária, marcam a formação econômica, social e cultural, de uma modernização que não extirpou determinadas mazelas das relações sociais no Brasil.
4. Conclusão
O alto número de casos de violência, discriminação e desigualdade sofridas pela mulher, pelo bissexual e pelo transexual em pleno século XXI demonstra a necessidade de um reculturação em relação aos valores sociais, é preciso um novo olhar para com o diferente, cenário este que pode ser mudado através de um processo de conscientização do qual a escola pode e deve intervir.
O programa Escola Sem Partido é uma ameaça para a democracia e o alcance dos direitos fundamentais da pessoa humana, a educação brasileira não pode ficar à mercê de interesses institucionais conservadores.
Referências
BAROSSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Rio de Janeiro: 2006. Diponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/homoafetivas_parecer.pdf>. Acesso em: 31/07/2016.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo.1. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
PINHEIRO NETO, Othoniel. Projetos de lei “Escola sem Partido”: inconstitucionalidades. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4595,30 jan. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/46182>. Acesso em: 7 jul. 2016.
OLIVEIRA, Marcos Marques. As Origens da Educação no Brasil: da hegemonia católica às primeiras tentativas de organização do ensino. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.12, n.45, p. 945-958, out./dez. 2004.
Graduada em Direito pela Universidade Regional do Vale do Itajaí. Pesquisadora sobre Gêneros e Diversidades, com ênfase em Direitos Constitucionais e Direitos Humanos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAUN, Raiana Erica. Movimento escola sem partido: uma análise crítica sob o âmbito jurídico e social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47396/movimento-escola-sem-partido-uma-analise-critica-sob-o-ambito-juridico-e-social. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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