RESUMO: Este estudo trata da interpretação conferida pela jurisprudência brasileira ao dispositivo legal que veda a doação de bens pela Administração Pública em ano eleitoral. Inicialmente, define-se o marco jurídico que disciplina a doação de bens inservíveis pela Administração Pública. Posteriormente, discorre-se a respeito da evolução da jurisprudência sobre a proibição imposta pela lei eleitoral. Por fim, analisa-se os reflexos do entendimento atualmente adotado pelos tribunais e a possibilidade de sua relativização.
PALAVRAS-CHAVE: Doação; bens inservíveis; Administração Pública; ano eleitoral; jurisprudência.
ABSTRACT: This article deals with the interpretation given by brazilian jurisprudence to legal device that forecloses the administration's public goods donation in election year. Initially, it defines the legal framework that regulates the unserviceable's goods donation by the public administration. Subsequently, it talks about the evolution of the jurisprudence on the prohibition imposed by the electoral law. Subsequently, it talks about the evolution of the jurisprudence on the prohibition imposed by the electoral law. Finally, it analyzes the consequences of currently understanding adopted by the courts and the possibility of it's relativization.
KEYWORDS: Donation; unserviceable goods; Public Administration; election year; jurisprudence.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A DOAÇÃO DE BENS MÓVEIS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 3. A DOAÇÃO DE BENS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM ANO ELEITORAL.4. RELATIVIZAÇÃO DO ENTENDIMENTO RESTRITIVO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. 5. CONCLUSÃO. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
Para a consecução de suas atividades a Administração Pública adquire enormes quantidades dos mais variados bens. Quando não são consumidos pela própria Administração, esses bens sofrem os efeitos do tempo e podem se tornar inservíveis às atividades que originalmente se destinavam. Não bastasse, no exercício de seu poder de polícia, o Estado promove a apreensão de diferentes tipos de materiais, os quais exigem destinação adequada.
Nesse contexto, ganha relevo a autorização legal para que a Administração possa se desfazer desses bens por meio de doação, observados determinados requisitos. Contudo, essa alternativa encontra óbice nos anos em que se realizam eleições.
Após tecer breves considerações sobre o instituto da doação de bens móveis pela Administração Pública, o presente estudo se debruça sobre a interpretação conferida pela jurisprudência ao § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/97, que veda a doação de bens pela Administração Pública em ano eleitoral, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.
Ao final, a partir da fundamentação lançada no voto condutor da Consulta nº 56.39.2014.6.00.00, do Tribunal Superior Eleitoral, e das razões expostas no Parecer Plenário nº 002-2016 CNU DECOR CGU, da Advocacia Geral da União, discorre-se sobre a possibilidade de relativização do entendimento restritivo atualmente esposado pelos tribunais eleitorais, em vista das particularidades que envolvem a matéria.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A DOAÇÃO DE BENS MÓVEIS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O artigo 37, XXI, da Constituição Federal, preceitua que as alienações feitas pela Administração Pública sejam, em regra, precedidas de licitação, de modo a garantir a igualdade de condições entre os interessados. O mesmo dispositivo exclui a obrigação de licitar nos “casos especificados na legislação”.
Dentre as formas de alienação está a doação. Especificamente sobre a doação de bens móveis dominicais da Administração Pública, a Lei nº 8.666/1993, estabelece:
Art. 17. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:
(...)
II – quando móveis, dependerá de avaliação prévia e de licitação, dispensada esta nos seguintes casos:
a) doação, permitida exclusivamente para fins e uso de interesse social, após a avaliação de sua oportunidade e conveniência sócio-econômica, relativamente à escolha de outra forma de alienação.
A doação de bens pela Administração Pública, com efeito, depende da existência de interesse público devidamente justificado e será precedida de avaliação. Quando se tratar de bem móvel, a licitação será dispensada se a doação se destinar a fins e uso de interesse social, observada a oportunidade e conveniência socioeconômica em relação às outras formas de alienação. Acaso não estejam presentes esses requisitos a doação deverá se processar mediante licitação[1]. Nesse particular, Marçal JUSTEN FILHO[2] leciona:
A Lei contém ressalva acerca dos casos de interesse social. Qualquer doação de bem público pressupõe a compatibilidade com o desempenho das funções estatais. Por óbvio, não se admite liberalidade à custa do patrimônio público. A regra legal impõe à Administração que verifique se a doação consiste na melhor opção, inclusive para evitar a manutenção de concepções paternalistas acerca do Estado.
Em âmbito federal, a doação de bens móveis é regulamentada pelo recém editado Decreto nº 9.373, de 11 de maio de 2018, que dispõe sobre a alienação, cessão, a transferência, a destinação e a disposição final ambientalmente adequada de bens móveis. O artigo 3º define os bens considerados inservíveis para a Administração Pública (sempre bens móveis); o artigo 8º prevê as entidades que podem ser donatárias desses bens:
Art. 3º Para que seja considerado inservível, o bem será classificado como:
I - ocioso - bem móvel que se encontra em perfeitas condições de uso, mas não é aproveitado;
II - recuperável - bem móvel que não se encontra em condições de uso e cujo custo da recuperação seja de até cinquenta por cento do seu valor de mercado ou cuja análise de custo e benefício demonstre ser justificável a sua recuperação;
III - antieconômico - bem móvel cuja manutenção seja onerosa ou cujo rendimento seja precário, em virtude de uso prolongado, desgaste prematuro ou obsoletismo; ou
IV - irrecuperável - bem móvel que não pode ser utilizado para o fim a que se destina devido à perda de suas características ou em razão de ser o seu custo de recuperação mais de cinquenta por cento do seu valor de mercado ou de a análise do seu custo e benefício demonstrar ser injustificável a sua recuperação.
Art. 8º A doação prevista no art. 17, caput, inciso II, alínea “a”, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, permitida exclusivamente para fins e uso de interesse social, após avaliação de sua oportunidade e conveniência socioeconômica, relativamente à escolha de outra forma de alienação, poderá ser feita em favor:
I - das autarquias e fundações públicas federais e dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de suas autarquias e fundações públicas, quando se tratar de bem ocioso ou recuperável;
II - dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de suas autarquias e fundações públicas e de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, quando se tratar de bem antieconômico; e
III - de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e de associações ou cooperativas que atendam aos requisitos do Decreto nº 5.940, de 25 de outubro de 2006, quando se tratar de bem irrecuperável.
Parágrafo único. Excepcionalmente, mediante ato motivado da autoridade máxima do órgão ou da entidade, vedada a delegação, os bens ociosos e recuperáveis poderão ser doados a Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.
Vale mencionar, por oportuno, que a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) determina a doação de produtos perecíveis ou madeira apreendida no exercício do poder de polícia ambiental:
Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos.
(...)
§ 3º Tratando-se de produtos perecíveis ou madeiras, serão estes avaliados e doados a instituições científicas, hospitalares, penais e outras com fins beneficentes.
Estabelecido o arcabouço normativo que disciplina a doação de bens inservíveis pela Administração Pública, cumpre analisar a restrição estabelecida pela legislação eleitoral.
3. A Doação de Bens pela Administração Pública em Ano Eleitoral
Em anos em que se realizam eleições fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. Trata-se de comando estabelecido pelo §10 do artigo 73 da Lei Federal nº 9.504/97, introduzido pela Lei 11.300, de 10 de maio de 2006, conhecida como “minirreforma eleitoral”, que aumentou o rol de condutas vedadas aos agentes públicos em ano eleitoral:
Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos períodos eleitorais:
(...)
§10 No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.
A doação é uma das formas de “distribuição gratuita” a que se refere o citado dispositivo.
Gize-se que a proibição se estende por todo o ano, não apenas ao período da campanha eleitoral. Ademais, não se limita a circunscrição do pleito. É dizer, a doação de bens fica vedada aos agentes públicos de todos os entes da federação, independentemente de se tratar de ano de eleições municipais ou de eleições gerais. A doutrina de Djalma PINTO[3] esclarece esse ponto:
Algumas condutas vedadas somente são direcionadas para os agentes públicos da circunscrição do pleito. Outras são de obediência de todos os gestores públicos, independentemente de tratar-se de eleições para os cargos eletivos da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, cujos pleitos eleitorais ocorrerem em épocas distintas. Quando a lei quis restringir a conduta vedada à circunscrição do pleito (federal, estadual ou municipal), assim o fez expressamente, a exemplo do que ocorre com os incisos V e VI, "b" e "c", ambos do artigo 73 da Lei das Eleições. No silêncio da norma, em ano eleitoral aplica-se a conduta vedada aos agentes públicos de todos os entes federativos, a exemplo do que ocorre com a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios (art. 73, § 10, da LE).
O §10 do artigo 73 permite duas linhas de interpretação: uma literal, que proíbe qualquer hipótese de doação em ano eleitoral, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior; outra, a partir do caput do artigo 73, que estende as hipóteses de doação para além das três exceções legais, porquanto a ilicitude da conduta somente se configuraria se efetivamente houvesse o uso da máquina pública de modo a comprometer a igualdade de oportunidades entre os candidatos durante o pleito eleitoral. Ou seja, o ilícito ocorreria apenas se demonstrado que o ato tem potencial para influenciar a disputa eleitoral.
De maneira geral, até o início desta década, o Tribunal Superior Eleitoral considerava que a existência de potencialidade para desequilibrar a disputa eleitoral era requisito indispensável para o reconhecimento da prática das condutas vedadas elencadas no artigo 73 da Lei nº 9.504/97. Nesse sentido é o seguinte acórdão relatado pelo Ministro Cezar Peluso:
1. Recurso. Especial. Reexame de provas. Inviabilidade. Súmula 279 do STF. Se o Tribunal Regional concluiu pela inexistência de provas da autoria e inocorrência de propaganda institucional, seria indispensável reapreciar a matéria fático-probatória para se concluir de modo diverso, coisa inviável em recurso especial.
2. Representação. Conduta vedada. Cassação de registro ou diploma. Inelegibilidade. Multa. Potencialidade de a conduta interferir no resultado do pleito. Imprescindibilidade. Agravo desprovido. Hoje é firme o entendimento jurisprudencial no sentido de que a existência de potencialidade para desequilibrar o resultado do pleito é requisito indispensável para o reconhecimento da prática de conduta vedada.[4]
Especificamente sobre as condutas vedadas pelo § 10 do artigo 73 da Lei 9.504/97, o Tribunal Superior Eleitoral assim se manifestou:
RECURSO ORDINÁRIO. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2010. DEPUTADO FEDERAL. REPRESENTAÇÃO. CONDUTAS VEDADAS. ART. 73, IV E § 10, DA LEI 9.504/97. PROGRAMA SOCIAL. DISTRIBUIÇÃO. CARTEIRAS DE ESTUDANTE. ALUNOS DE ESCOLAS PÚBLICAS E PARTICULARES. PERÍODO DE MAIO A JULHO DE 2010. FAVORECIMENTO. CANDIDATO. INOCORRÊNCIA. RECURSO ORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL PROVIDO.
1. (...)
2. O art. 73, IV, da Lei 9.504/97 veda a distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social, custeados ou subvencionados pelo Poder Público, realizada com o intuito de beneficiar candidatos, partidos políticos e coligações.
3. Na espécie, apesar da inequívoca implementação, na gestão do prefeito Jorge Abissamra, de programa social de distribuição de carteiras estudantis a alunos de escolas públicas e privadas do Município de Ferraz de Vasconcelos/SP entre maio e julho de 2010, o conjunto probatório dos autos revela que Elaine Aparecida Belloni Abissamra - candidata ao cargo de deputado federal nas Eleições 2010 - não possuiu ligação com essa ação, tampouco teve sua candidatura beneficiada.
4. O art. 73, § 10, Lei 9.504/97, no que se aplica ao caso concreto, obsta a doação de bens, valores ou benefícios pela administração pública no ano da eleição, salvo quanto a programas sociais autorizados em lei e em execução orçamentária no exercício anterior.
5. O programa de distribuição de carteiras de estudante, embora previsto nas Leis Municipais 2.774/2006 e 2.778/2007, não teve execução orçamentária em 2009 - ano imediatamente anterior à eleição - o que caracterizaria, em tese, a conduta vedada do mencionado dispositivo legal.
6. Contudo, conforme já destacado, não há relação entre Elaine Aparecida Belloni Abissamra e o programa social em comento, tampouco o favorecimento à sua candidatura, de modo que o bem jurídico tutelado no art. 73 da Lei 9.504/97 - igualdade de oportunidades entre candidatos e partidos no contexto da proibição do uso da máquina administrativa para fins eleitorais - não foi violado.
7. Recurso ordinário interposto pelo Ministério Público a que se nega provimento.
8. Recurso especial eleitoral interposto por Jorge Abissamra provido para afastar a multa pecuniária que lhe foi imposta.[5]
Do voto proferido pela eminente Ministra Relatora, Fátima Nancy Andrighi, destaca-se o seguinte excerto:
(...)
Em suma, o bem jurídico tutelado no art. 73 da Lei 9.504197 - igualdade de oportunidades entre candidatos e partidos no contexto da proibição do uso da máquina administrativa para fins eleitorais - não foi violado no caso concreto, pois a continuidade do programa social iniciado em 2007 e sem execução orçamentária em 2009 não beneficiou a candidatura de Elaine Aparecida Belloni Abissamra ao cargo de deputado federal nas Eleições 2010.
Nesse ínterim, não é plausível punir-se na seara eleitoral conduta desprovida dessa conotação e, portanto, sem o condão de beneficiar candidatos, partidos ou coligações, sob risco de ampliar-se indevidamente a finalidade da lei.
Portanto, predominava o entendimento no sentido de que o descumprimento da regra eleitoral somente ocorreria se a conduta, a princípio vedada, fosse capaz de influenciar na disputa eleitoral de modo a comprometer a isonomia de chances entre os candidatos, consoante o disposto no caput do artigo 73 da Lei das Eleições.
Contudo, esse não é mais o posicionamento dominante no âmbito da jurisprudência eleitoral. Nos últimos anos, à exceção das três hipóteses expressamente autorizadas pelo § 10, o Tribunal Superior Eleitoral passou a considerar que a simples prática da conduta descrita na lei como vedada é suficiente para a aplicação da sanção, não importando a alegação de eventual finalidade pública ou social. A potencialidade de influenciar na disputa eleitoral serviria apenas como critério para se determinar a sanção aplicável ao agente público no caso concreto. Nesse sentido é o seguinte acórdão:
ELEIÇÕES 2010. CONDUTA VEDADA. USO DE BENS E SERVIÇOS. MULTA.
1. O exame das condutas vedadas previstas no art. 73 da Lei das Eleições deve ser feito em dois momentos. Primeiro, verifica-se se o fato se enquadra nas hipóteses previstas, que, por definição legal, são "tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais". Nesse momento, não cabe indagar sobre a potencialidade do fato.
2. Caracterizada a infração às hipóteses do art. 73 da Lei 9.504/97, é necessário verificar, de acordo com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, qual a sanção que deve ser aplicada. Nesse exame, cabe ao Judiciário dosar a multa prevista no § 4º do mencionado art. 73, de acordo com a capacidade econômica do infrator, a gravidade da conduta e a repercussão que o fato atingiu. Em caso extremo, a sanção pode alcançar o registro ou o diploma do candidato beneficiado, na forma do § 5º do referido artigo.
3. Representação julgada procedente.[6]
Essa interpretação se estendeu aos casos de distribuição gratuita de bens prevista no § 10 do artigo 73 da Lei 9.504/97:
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. CANDIDATOS A PREFEITO E VICE-PREFEITO. ELEIÇÕES DE 2012. CONDUTA VEDADA. OFENSA AO ART. 275 DO CÓDIGO ELEITORAL. NÃO CONFIGURADA. PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE RECURSAL E CERCEAMENTO DE DEFESA. REJEITADAS. ART. 73, INCISO IV E §§ 4º, 5º E 10, DA LEI Nº 9.504/97. DOAÇÃO GRATUITA DE BENS DURANTE O ANO ELEITORAL. INEXISTÊNCIA. CONDUTA NÃO CARACTERIZADA. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO.
(...)
6. No ano eleitoral, é possível a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios, desde que no bojo de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.
7. As condutas do art. 73 da Lei nº 9.504/97 se configuram com a mera prática dos atos, os quais, por presunção legal, são tendentes a afetar a isonomia entre os candidatos, sendo desnecessário comprovar a potencialidade lesiva.
8. In casu, para concluir se foram perpetradas as condutas vedadas, é imprescindível verificar a ocorrência, ou não, de efetiva doação dos lotes no período vedado.
9. A norma local apenas autorizou a distribuição dos lotes, mas a tradição não foi formalizada de imediato, pois, para tanto, necessário cumprir diversos requisitos, não havendo notícia de que houve efetiva distribuição gratuita de bens durante o ano eleitoral.
10. Não é possível avaliar a gravidade das condutas tendo por esteio a mera presunção de que determinado pronunciamento incutiu "no íntimo de cada eleitor" a certeza de que receberia um dos imóveis.
11. Recursos especiais parcialmente conhecidos e, nessa extensão, providos.[7]
RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012. PREFEITO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. CONDUTA VEDADA A AGENTES PÚBLICOS (ART. 73, § 10, DA LEI 9.504/97). GASTOS ILÍCITOS DE RECURSOS DE CAMPANHA (ART. 30-A DA LEI 9.504/97). ABUSO DO PODER ECONÔMICO E POLÍTICO (ART. 22 DA LC 64/90). PROVIMENTO.
(...)
2. A distribuição de mochilas, em complementação a programa social de fornecimento de uniformes escolares previsto em lei e em execução orçamentária desde 2009, também não é apta na espécie à cassação dos registros e à inelegibilidade, sendo suficiente a aplicação de multa.
3. Incidência dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e do art. 22, XVI, da LC 64/90, a teor da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral.
4. Recursos especiais eleitorais de Claudenir José de Melo e Wellington Francelli Estevão Rodrigues Roque parcialmente providos e recurso especial de Magda Isolina Giacomin Fontes provido.[8]
Ademais, através da Resolução nº 23291[9], de 1º de julho de 2010, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que a norma do § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/1997 não comporta exceção, nem mesmo quando se trata de doação de bens perecíveis. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA pediu a reconsideração dessa decisão sob o argumento de que além de perecível, o caso concreto versava sobre bens apreendidos em razão do exercício do poder de polícia ambiental, motivo pelo qual a doação era uma imposição do artigo 25, § 3º, da Lei nº 9.605/98. O Ministério Público Eleitoral deu parecer favorável à autarquia ambiental na ocasião. Porém, o acórdão do TSE foi assim ementado:
DOAÇÃO DE BENS - PODER PÚBLICO. A teor do § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/1997, é proibida a doação de bens em época de eleições, não cabendo distinção quando envolvidos perecíveis.[10]
Do voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio Mello extrai-se a seguinte conclusão:
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (Relator): Senhor Presidente, descabe a reconsideração pretendida. A norma do § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/1997 não contempla qualquer exceção, pouco importando que o produto seja perecível. No período crítico das eleições, quando normalmente há candidato da situação, não é possível viabilizar a doação de bens. Voto no sentido de manter-se a decisão do Colegiado.
O Tribunal Regional Eleitoral do Paraná se alinha ao entendimento restritivo da Corte Superior, consoante se infere do seguinte precedente:
RECURSO ELEITORAL - ELEIÇÕES 2016 - CONDUTA VEDADA CARACTERIZADA - DOAÇÃO DE BENS MÓVEIS (VEÍCULOS E EQUIPAMENTOS - SUCATA) EM ANO ELEITORAL - EXCEÇÃO DO §10 DO ART. 73 DA LEI Nº 9.504/97 NÃO DEMONSTRADA - CONDUTA REALIZADA DENTRO DO PERÍODO VEDADO ÀS VÉSPERAS DAS ELEIÇÕES - GRAVIDADE DA CONDUTA - MANTIDA MULTA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL - ABUSO DO PODER POLÍTICO - NÃO DEMONSTRADA A INTERFERÊNCIA NA NORMALIDADE DAS ELEIÇÕES - CANDIDATO À REELEIÇÃO BENEFICÁRIO E NÃO ELEITO - ABUSO DO PODER POLÍTICO AFASTADO - RECURSOS ELEITORAIS CONHECIDOS E NÃO PROVIDOS.
1. É proibida a doação de bens pela administração pública em ano eleitoral, consoante dispõe o §10, do art. 73 da Lei nº 9.504/97. Ficam excepcionadas da vedação legal as doações feitas nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior ao da eleição.
2. Não desnatura a gratuidade da doação o fato de o donatário arcar com os custos do transporte e retirada dos bens recebidos, visto que em regra é a quem cabe tal ônus. Na espécie, não há que falar em custos para retirada dos bens pelo donatário, vez que a somente a municipalidade e terceiros contribuíram para tanto.
3. Os estados de calamidade pública e de emergência devem estar formalizados e existentes de fato para se enquadrarem na exceção legal §10 do art. 73, da Lei das Eleições, não bastando mera alegação de que tais bens estariam acumulando água e poderiam abrigar focos de proliferação do mosquito da dengue.
4. No caso em exame, a gravidade da conduta praticada pelos representados deriva da quantidade, da grandeza e dos valores dos bens doados (veículos e equipamentos) que somados à época da doação (conduta às vésperas das eleições - mês de agosto/2016), reflete em circunstâncias graves.
5. Para a configuração da conduta vedada do art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/97 não é preciso demonstrar caráter eleitoreiro ou promoção pessoal do agente público, bastando a prática do ato ilícito. Precedente. [...]. (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 36026, Acórdão de 31/03/2011, Relator(a) Min. ALDIR GUIMARÃES PASSARINHO JUNIOR, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 84, Data 05/05/2011, Página 47 - destacamos)
6. (...). Sobre o tema, esta Corte Superior firmou a compreensão de que "as condutas do art. 73 da Lei nº 9.504/97 se configuram com a mera prática dos atos, os quais, por presunção legal, são tendentes a afetar a isonomia entre os candidatos, sendo desnecessário comprovar a potencialidade lesiva" (REspe nº 14-29, rel. Min. LAURITA VAZ, DJE de 11.9.2014). Destaquei
7. DOAÇÃO DE BENS - PODER PÚBLICO. A teor do § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/1997, é proibida a doação de bens em época de eleições, não cabendo distinção quando envolvidos perecíveis.
(Petição nº 100080, Acórdão de 20/09/2011, Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 214, Data 11/11/2011, Página 54.
8. Ainda que caracterizada a conduta vedada pela doação de bens em ano eleitoral e no período vedado (três meses que antecedem ao pleito), a prova efetivamente produzida nos autos não é suficiente para avaliar a interferência que gere o desequilíbrio na disputa eleitoral, fato que seria considerado para apurar a gravidade da conduta ilícita e a sua extensão.
9. Recursos eleitorais conhecidos e não providos.[11]
Sintetizando, a jurisprudência eleitoral é firme no sentido de proibir qualquer hipótese de doação de bens pela Administração Pública em ano eleitoral, exceto nos estritos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. Não importa se os bens a serem doados são inservíveis, perecíveis ou oriundos de apreensão pelo regular exercício do poder de polícia. O potencial da conduta de influenciar o pleito eleitoral serve apenas como critério para determinar a sanção aplicável aos agentes públicos no caso concreto.
4. RELATIVIZAÇÃO DO ENTENDIMENTO RESTRITIVO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
Conforme visto em linhas passadas, uma das hipóteses legais de doação em ano eleitoral é a destinada a programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. Nesse caso, se se tratar de bens perecíveis apreendidos cuja doação decorra de determinação legal, o próprio Tribunal Superior Eleitoral assentou que não há necessidade de que os bens doados façam parte do orçamento desses programas, porquanto não há como prever, em regra, a ocorrência das apreensões/doações ou mesmo sua quantidade. O acórdão em questão recebeu a seguinte ementa:
CONSULTA. MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL. ART. 73, §10, DA LEI N. 9.504/1997. ALIMENTOS PERECÍVEIS APREENDIDOS EM RAZÃO DE INFRAÇÃO LEGAL. PERDIMENTO.
1. É possível, em ano de eleição, a realização de doação de pescados ou de produtos perecíveis quando justificada nas situações de calamidade pública ou estado de emergência ou, ainda, se destinada a programas sociais com autorização específica em lei e com execução orçamentária já no ano anterior ao pleito. No caso dos programas sociais, deve haver correlação entre o seu objeto e a coleta de alimentos perecíveis apreendidos em razão de infração legal.
2. Consulta respondida afirmativamente.[12]
Apesar de a decisão relativizar apenas esse ponto do entendimento restritivo do TSE, é mister destacar os fundamentos lançados pelo Ministro Gilmar Mendes, Relator da Consulta formulada pelo Ministério Público Eleitoral:
Conforme ressaltado pela Assessoria Especial, na oportunidade do julgamento da Petição n.º 1000-80/DF, este Tribunal indeferiu pedido apresentado pelo Ibama de doação a órgãos e entidades, públicos e privados, em ano eleitoral, de bens, especialmente perecíveis, oriundos de apreensão decorrente do exercício de suas atribuições. Na ocasião afirmou-se: o argumento referente à origem e à natureza perecível não é suficiente a excepcionar-se a regra proibitiva, fora de previsão dela constante. Assim, o pedido foi negado por não estar comtemplado nas exceções previstas no arrt. 73, §10, da Lei n.º 9.504/1997.
Contudo, acredito que a questão merece melhor reflexão.
Extraio dos argumentos constantes na consulta (fl. 3):
(...) no exercício de suas funções institucionais em matéria ambiental, o Ministério Público Federal tem observado a necessidade de se racionalizar a destinação de produtos perecíveis apreendidos em todo o Brasil em anos de eleição, cuja perda inevitável que se verifica com a proibição da doação escapa dos limites do razoável, especialmente porque a cada dois anos se está diante de ano eleitoral. Ou seja, não parece claro que o sacrifício que se impõe a esses bens e às entidades que se beneficiam deles é estritamente necessário para a preservação do bem jurídico que se tutela na legislação eleitoral, especialmente aquele protegido no artigo 73 da lei n.º 9.504/1997 (grifamos).
(...)
Consoante se extrai dos documentos que acompanharam a consulta, é grande o volume de alimentos perecíveis apreendidos e o procedimento de doação é costumeiro.
A incidir a vedação legal, nos anos pares, em virtude das eleições, essas doações não poderiam ser realizadas e o produto, inevitavelmente, estaria sujeito à deterioração, devido ao longo período dessa proibição, isso quando houver condições para seu armazenamento em local refrigerado.
Vivemos num país onde grande parte da população passa fome, não possui vida digna. Segundo dados de 2009 do I13GE1, 35,5% das famílias brasileiras destacaram que a quantidade de alimento consumido era eventualmente insuficiente ou normalmente insuficiente.
Em razão do volume, a importância social dessas doações é evidente.
A dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, conforme estabelece a Constituição Federal, que assegura também o direito à vida (art. l, inciso III, e art. 5°).
Ademais, entre os objetivos fundamentais da República, temos a construção de uma sociedade solidária, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (art. 30, inciso 1 e II, CF11988).
O direito à alimentação está previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais, adotado pela Organização das Nações Unidas e do qual o Brasil é signatário, nos termos do Decreto n° 591, de 6 de julho de 1992.
A alimentação também é reconhecida como direito básico pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, previsto no Decreto n° 7.037, de 21 de dezembro de 2009.
A fome é uma grave violação dos Direitos Humanos.
Acredito ser um contrassenso autorizar, por via oblíqua, o desperdício/destruição de alimento perecível apreendido cuja doação, friso, decorra de determinação legal.
No caso, temos uma aparente antinomia. De um lado, uma norma determina sejam tais produtos doados; de outro, uma regra estabelece proibição para tanto em se tratando de ano eleitoral. Ou seja, essa doação somente poderia ser realizada em anos ímpares - não eleitorais; nos anos pares, os órgãos e instituições rotineiramente destinatários dessas doações ficariam desassistidos desse auxílio para o desempenho de seus objetivos.
A solução para o caso, a meu ver, está na própria Lei n.º 9.504/1997, cujo §10 do art. 73 excepciona a proibição à citada distribuição, nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.
(...)
Com efeito, o art. 73, §10, da Lei n.º 9.504/1997 exige que os programas sociais tenham previsão legislativa específica e a respectiva execução orçamentária desde o ano anterior.
Neste ponto, ressalto que, no caso específico, não há necessidade de que os bens doados façam parte do orçamento desses programas, como suscita o consulente, até porque não há como prever, em regra, a ocorrência das apreensões/doações ou mesmo sua quantidade.
Logicamente, contudo, se faz necessário que esses programas sociais estejam relacionados à coleta de alimentos, ou seja, tenham como objeto atuar como banco de alimentos, por exemplo, o Programa Mesa Brasil-Sesc.
Os argumentos expostos pelo Ministro Gilmar Mendes parecem trilhar o caminho de uma interpretação teleológica do artigo 73, §10, da Lei n.º 9.507/1997, mais consentânea com a realidade e mesmo com o bom senso ao compreender que a vedação à distribuição gratuita de bens não pode levar a situações desarrazoadas e à infringência de princípios constitucionais. Na hipótese, o ministro considerou um contrassenso a proibição eleitoral implicar o desperdício de alimentos perecíveis num país onde grande parte da população passa fome. Trata-se, por certo, de verdadeira afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Vale pontuar que a doação de bens é atividade corriqueira da Administração Pública, muitas vezes decorrente de imposição legal, como no caso do citado artigo 25, § 3º, da Lei nº 9.605/98. E, como toda atividade pública habitual, nem sempre pode ser obstada sem que sobrevenham consequências prejudiciais à Administração e à própria sociedade.
Nesse cenário, atenta às peculiaridades dos inúmeros casos concretos desse jaez, a Advocacia-Geral da União, através do Parecer Plenário nº 002-2016 CNU DECOR CGU, assim se posicionou:
DIREITO ELEITORAL. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE BENS PÚBLICOS
FEDERAIS EM ANO ELEITORAL. INTERPRETAÇÃO DO ART. 73, § 10, DA LEI 9.504/97.
1. A disposição do art. 73, §10, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, dirige-se à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública diretamente a particulares, não afetando as transferências realizadas entre entes públicos. A estes casos aplica-se o disposto no art. 73, VI, "a", da mesma lei, vedando-se a destinação de bens a outros entes públicos nos três meses que antecedem o pleito eleitoral. Tal vedação, porém, não impede as doações realizadas entre entidades que integram a mesma esfera de governo, como por exemplo a doação de bem da União a uma autarquia ou fundação pública federal.
2. Não se admite, porém, que a única função do ente público recebedor do bem seja transferi-lo à população diretamente beneficiada, configurando mera intermediação. Por outro lado, isso não obsta a transferência do bem ao ente público para a prática de atos preparatórios que antecederão a efetiva destinação aos beneficiários finais, que só poderá ocorrer fora do período vedado.
3. Não são afetadas pelas vedações da legislação eleitoral as transferências que constituem direito subjetivo do beneficiário, nas quais o agente público não dispõe de margem de discricionariedade.
4. O entendimento aqui exposto alcança doações e cessões, sendo que o encargo ou finalidade da outorga não desnatura, por si só, seu caráter gratuito.
5. Deve-se orientar o gestor a observar o princípio básico de vedação de condutas dos agentes públicos, de forma a não afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais, sugerindo-se que a divulgação do ato seja a mínima necessária ao atendimento do princípio da publicidade formal – divulgação na Imprensa Oficial -, não sendo recomendada a realização de qualquer solenidade, tais como celebração de cerimônias simbólicas, atos públicos, eventos, reunião de pessoas para fins de divulgação, enfim, qualquer forma de exaltação do ato administrativo, sob pena de responsabilização do agente público que assim proceder.[13]
Em resumo, a Advocacia Geral da União sustenta que a norma do § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/97 proíbe somente a distribuição gratuita de bens da Administração a particulares, não afetando as doações realizadas entre entes públicos. A destinação de bens a outros entes públicos fica proibida apenas nos três meses que antecedem as eleições, consoante o disposto no artigo 73, VI, ‘a’, da mesma lei. E, mesmo nesse período, não há impedimento se as doações forem realizadas entre entidades integrantes da mesma esfera de governo, exceto se a única função do ente público recebedor for a transferência de bens à população diretamente beneficiada.
Note-se que o parecer da Advocacia Geral da União não conflita com a interpretação do Tribunal Superior Eleitoral; apenas estabelece critérios mais precisos para a aplicação da vedação legal, apropriados às especificidades da matéria.
5. CONCLUSÃO
A doação de bens constitui atividade ordinária da Administração Pública, sobretudo da União e dos Estados.
A partir da introdução do § 10 no artigo 73 da Lei nº 9.504/97, passou a ser proibida a doação de bens por parte da Administração Pública em ano eleitoral, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. Nos primeiros anos de vigência desse dispositivo prevalecia o entendimento de que o descumprimento da regra eleitoral somente se verificava se a doação fosse capaz de influenciar na disputa eleitoral, ou seja, se comprometesse a isonomia de chances entre os candidatos. Com efeito, interpretava-se o parágrafo a partir do caput do artigo.
Entretanto, nos últimos anos, à exceção das três hipóteses expressamente autorizadas, o Tribunal Superior Eleitoral passou a considerar que a simples prática da conduta descrita na lei como vedada é suficiente para a aplicação da sanção, não importando a alegação de eventual finalidade pública ou social, tampouco se os bens a serem doados são inservíveis, perecíveis ou oriundos de apreensão pelo regular exercício do poder de polícia. A potencialidade de influenciar na disputa eleitoral serviria apenas como critério para a determinação da sanção aplicável aos agentes públicos.
Na quadra atual, diante de posicionamento tão restritivo da jurisprudência eleitoral, impõe-se aos gestores públicos redobrada cautela quando da doação de bens em ano eleitoral. Devem, por certo, atentar para que esteja presente alguma das três circunstâncias autorizadoras previstas no § 10 do artigo 73 da Lei nº 9.504/97. Especificamente nos casos de doação em ano eleitoral destinada a programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, se se tratar de bens perecíveis apreendidos cuja doação decorra de determinação legal, não há necessidade de que os bens doados façam parte do orçamento desses programas. Ainda, no âmbito da União, os gestores podem se valer das orientações lançadas no Parecer Plenário nº 002-2016 CNU DECOR CGU que, a nosso sentir, não confrontam com a posição do Tribunal Superior Eleitoral, mas a esmiúça considerando as particularidades que envolvem a matéria.
De fato, diante dos desdobramentos fáticos e variáveis que podem criar situações de excepcionalidade, não parece razoável impor-se uma uniformização restritiva de interpretação quanto a aplicação do §10 do art. 73 da Lei nº 9504/97. Nessa perspectiva, parece-nos legítimo estender as hipóteses de doação em ano eleitoral - ao menos nos casos de bens inservíveis ou perecíveis - para além das três exceções legais, desde que respeitada a ratio legis (impedir o uso da máquina pública para beneficiar candidatos, partidos políticos ou coligações no período que antecede o pleito eleitoral) tal qual a antiga orientação do Tribunal Superior Eleitoral, cabendo aos órgãos de controle exercerem sua atividade fiscalizatória com base nesse entendimento. Em adição, deve estar demonstrado o interesse público da doação, bem como a necessidade premente da administração a fim de evitar situações desarrazoadas e a violação de princípios constitucionais, tais como o da dignidade da pessoa humana.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 25.075 - Teresina/PI. Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em 27/11/2007, publicado em 12/12/2007. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário nº 1426966 - São Paulo/SP. Relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi, julgado em 22/03/2012, publicado em 27/04/2012. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Representação nº 295986 – Brasília/DF. Relator Ministro Henrique Neves da Silva, julgado em 21/10/2010, publicado em 17/11/2010. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 1429 – Petrolina/PE. Relatora Ministra Laurita Hilário Vaz, julgado em 05/08/2014, publicado em 11/09/2014. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 48472 – Arcos/MG. Relator Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 05/08/2014, publicado em 14/08/2014. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário nº 149655 – Maceió/AL. Relator Ministro Arnaldo Versiani Leite Soares, julgado em 13/12/2011, publicado em 24/02/2012. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
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JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012.
PINTO, Djalma. Direito Eleitoral: Improbidade Administrativa e Responsabilidade Fiscal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
[1] Artigo 22, §5.º, da Lei n.º 8.666/1993: Leilão é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para a venda de bens móveis inservíveis para a administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou para a alienação de bens imóveis prevista no art. 19, a quem oferecer o maior lance, igual ou superior ao valor da avaliação. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 272.
[3] PINTO, Djalma. Direito Eleitoral, Improbidade Administrativa e Responsabilidade Fiscal: Noções Gerais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 233.
[4] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 25.075 - Teresina/PI. Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em 27/11/2007, publicado em 12/12/2007. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
[5] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário nº 1426966 - São Paulo/SP. Relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi, julgado em 22/03/2012, publicado em 27/04/2012. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
[6] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Representação nº 295986 – Brasília/DF. Relator Ministro Henrique Neves da Silva, julgado em 21/10/2010, publicado em 17/11/2010. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
[7] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 1429 – Petrolina/PE. Relatora Ministra Laurita Hilário Vaz, julgado em 05/08/2014, publicado em 11/09/2014. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
[8] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 48472 – Arcos/MG. Relator Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 05/08/2014, publicado em 14/08/2014. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
[9] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 23291, de 01/07/2010. Relator Ministro Marco Aurélio Mello, publicada em 24/08/2010. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
[10] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Petição nº 100080 – Brasília/DF. Relator Ministro Marco Aurélio Mello, julgado em 20/09/2011, publicado em 11/11/2011. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
[11] BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. Recurso Eleitoral nº 3452. Relator Josafá Antonio Lemes, julgado em 29/03/2017, publicado em 04/04/2017. Disponível em: <www.tre-pr.jus.br>. Acesso em: 1º/06/2018.
[12] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta nº 56.39.2014.6.00.00 – Classe 10 – Brasília/DF. Relator: Ministro Gilmar Mendes, julgado em 02/06/2015, publicado em 13/10/2015. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 02/06/2018.
[13] BRASIL. Advocacia Geral da União. Parecer Plenário nº 002-2016 CNU DECOR CGU. Relator Advogado Marcelo Azevedo de Andrade, sessão de 28/06/2016, publicado em 12/07/2016. Disponível em: <www.agu.gov.br/noticia/parecer-plenario-n-002-2016-cnu-decor-cgu--425190>. Acesso em: 02/06/2018.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Direito Societário Empresarial pela Universidade Positivo e MBA em Gestão Pública Executiva pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Procurador do Estado do Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KAMINSKI, Cassiano André. Doação de Bens Inservíveis pela Administração Pública em Ano Eleitoral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51863/doacao-de-bens-inserviveis-pela-administracao-publica-em-ano-eleitoral. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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