RESUMO: O presente ensaio tem a finalidade de analisar o histórico de sub-representação feminina nos parlamentos brasileiros, as medidas legislativas adotadas para mitigar este problema e as fraudes realizadas por partidos políticos para fugir da regra da reserva de cota de gênero na formação das coligações eleitorais. Além de se abordar a postura temática do Poder Judiciário também se propõe a solução da matéria por meio do ajuizamento de ação eleitoral específica.
Palavras-chave: Representatividade feminina na política, reserva de cota de gênero, candidaturas laranjas de mulheres, ação de impugnação ao mandato eletivo.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. A BAIXA REPRESENTATIVIDADE FEMININA NA POLÍTICA BRASILEIRA. O FRACASSO DA LEI N.º 12.034/2009 DIANTE DA MALÍCIA DOS PARTIDOS. A TENTATIVA FRUSTRADA DE MITIGAÇÃO DO PROBLEMA PELO JUDICIÁRIO. PROBLEMAS CONCRETOS DA BAIXA REPRESENTATIVIDADE FEMININA. O INSTRUMENTO PARA ENFRENTAMENTO DAS FRAUDES À COTA DE GÊNERO. CONSEQUÊNCIAS ATRIBUÍDAS À AIME QUE VISA A APURAR FRAUDE À LEI ELEITORAL NO QUE TANGE À REGRA DA RESERVA DE COTA DE GÊNERO. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
O estudo em comento tem por objetivo analisar (i) a baixíssima representatividade feminina na política brasileira e as consequências que tal fato tem na geração de políticas públicas temáticas para este gênero; (ii) o fracasso atual dos métodos legais que tentam garantir efetiva participação política das mulheres no parlamento; (iii) a forma como a Justiça Eleitoral tem olhado para a sub-representação feminina na política e (iv) o ajuizamento de ação de impugnação ao mandato eletivo como o expediente processual adequado para o combate às burlas à regra da cota de gênero nas eleições.
Tem-se a pretensão de expor que, ao longo dos tempos, o Brasil viveu uma cultura de representatividade política quase que exclusivamente masculina, tanto em virtude de um atraso no desenvolvimento do pensamento no que se refere ao respeito às diversidades humanas, como também em virtude de uma legislação que não se preocupou em criar um ambiente plural para acesso aos parlamentos do país.
Além das causas e efeitos destes fatos, abordar-se-á a perspectiva jurídica das eleições, observando o desenvolvimento da legislação brasileira na última década, a resistência que os grupos políticos apresentam em respeitar o espaço feminino na formação de coligações eleitorais, bem como serão investigadas as abordagens que o direito eleitoral pátrio tem proposto para solucionar a questão.
Neste introito é oportuno registrar que qualquer debate sobre representatividade feminina na política não pode deixar de ter como principal motivação a crescente onda de fraudes nas cotas de gênero criadas pela Lei n.º 12.034, de 2009, que previu que cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada um dos sexos. Tal lei tinha em mente o objetivo de dar proteção à universalização das chances da postulação eleitoral entre brasileiros, tendo criado o que passou a ser chamado de “reserva de cota de gênero”.
Desde sua criação, no ano 2009, a cota de gênero nunca foi realmente cumprida. Contudo esse debate tinha pouca visibilidade, porque a lei não impunha uma consequência concreta para sancionar aquelas coligações que deixassem de cumprir materialmente o comando legal, bem como porque as consequências negativas eram adstritas apenas às mulheres que perdiam seu direito de representação pública, todavia tal conduta não tinha qualquer repercussão financeira com relação ao financiamento de campanha.
A partir das eleições de 2018 a problemática em tela entrou em forte evidência em razão da criação do financiamento público das campanhas eleitorais. Isto porque o Supremo Tribunal Federal determinou que, além de cada sexo ter a reserva de cota de gênero de 30% das candidaturas, também deveria ter a reserva de gênero de 30% no momento do rateio dos R$ 1.716.209.431,00 do Fundo Especial do TSE que foram destinados ao patrocínio das campanhas.
Visando o dinheiro e querendo garantir o recebimento de quotas-partes mais expressivas, partidos e coligações de todo o Brasil prontamente apresentaram inúmeras candidaturas fictícias – as chamadas “candidatas laranjas” – com o objetivo de preencher os requisitos normativos para poder receber recursos do financiamento público eleitoral. Nesse contexto, tais fraudes nas cotas de gênero das eleições vulneraram ainda mais o déficit representativo feminino na política.
A faceta do consagrado princípio constitucional da isonomia no direito eleitoral é o princípio da igualdade de oportunidades no prélio eleitoral. Sem que o problema das fraudes nas cotas de gênero seja enfrentado a democracia brasileira nunca será plena e a igualdade de oportunidades ao acesso aos mandatos eletivos encontrará óbice nos partidos que têm interesse em não oxigenar a composição das Casas Legislativas.
Para que haja efetiva universalidade de chances entre os que anseiam postular um espaço na política é preciso resguardar o espaço feminino, já que mulheres, historicamente, vêm sendo alvo de violências institucionais na cultura eleitoral brasileira, conforme será abordado e exposto neste artigo.
Em termos teóricos, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 aparenta ser revestida com ares de perfeição no que se refere à universalização do voto e à concepção de uma democracia plena, já que possui cláusulas expressas dotando o sistema pátrio com a previsão de representatividade política e social de minorias e maiorias, sem quaisquer distinções. Logo, em tese, não deveríamos enfrentar obstáculos de sub-representação de gênero.
Além de toda carga democrática axiológica pulverizada de forma implícita na Carta Cidadã, quando o tema é sistema de representação eleitoral, pode-se mencionar expressamente os seguintes trechos que materializam o espírito do legislador constituinte: “Todo o poder emana do povo”, “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal” e, como não poderia deixar de ser, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
No que atine à concretização da igualdade, o problema brasileiro não é a lacuna normativa constitucional, já que estamos guarnecidos com um modelo jurídico que tem nível de excelência ao prever métodos de materialização da soberania popular. No entanto, no campo fático, de forma dolorosa, há que se reconhecer o insucesso do arranjo democrático no que se refere à participação efetiva das mulheres na política, caracterizando-se como verdadeira chaga no aparelho brasileiro de representatividade social.
As mulheres vivem em um cenário de sub-representação. Suas aspirações não são debatidas nos parlamentos, bem como as políticas públicas femininas não conseguem ser desenvolvidas ou aprofundadas. E o fato é que sempre existiu um hiato de gênero identificado na representatividade política brasileira, que criou um distorcido ambiente sem lideranças femininas nos cargos eletivos.
A situação é tão grave que estudos da União Parlamentar Internacional apontam que o Brasil tem menos representatividade feminina na política que a Arábia Saudita[1]. Em dezembro de 2018, por meio do levantamento “Women in national parliaments”, a representatividade feminina na política brasileira correspondia a apenas 15,0% na Câmara Federal, enquanto, na Arábia Saudita, este patamar atingiu 19,9% de presença feminina. E isso porque apenas no ano de 2015 a Arábia Saudita permitiu a participação das mulheres na política.
Outro cotejo aterrorizante é comparar a representatividade política feminina do Brasil com o Afeganistão. Enquanto nosso Senado Federal é composto por 14,8% de mulheres, no referido país do Oriente Médio esta mesma Casa Legislativa tem 30.9% de representação feminina, também segundo o mesmo estudo “Women in national parliaments”.
Saliente-se que o Afeganistão conseguiu o dobro da representatividade feminina brasileira mesmo vivendo sob o regime talibã, onde mulheres que mostram o tornozelo em público são açoitadas, adúlteras são apedrejadas em praça pública, e não há permissão de uso de cosméticos, salto alto ou calças. Ainda assim, em meio a essa rígida cultura misógina, há proporcionalmente duas vezes mais senadoras na política afegã, do que no parlamento brasileiro. É estarrecedor.
A título de exemplo, mais um comparativo válido a se fazer é entre a participação das mulheres brasileiras e as sul-africanas na Câmara Federal. Historicamente, cabe registrar que apenas em 1994 houve a plena liberação da participação das mulheres sul-africanas na política, em virtude do fim do Apartheid. E, em 2018, a representação feminina na África do Sul já atingia o patamar de 42,7% dos acentos do parlamento. Já no Brasil, o sufrágio feminino teve início já em 1932, mas em 2018 (86 anos depois) apenas 15,0% da Câmara dos Deputados era composta por mulheres.
Na cultura eleitoral paraibana, o contexto de baixíssima efetividade constitucional é ainda pior do que os dados gerais do Brasil. Basta dizer que apenas 13,8% das cadeiras na Assembleia da Paraíba estão sendo ocupadas por deputadas estaduais durante a legislatura 2019-2022 e, por sua vez, a representatividade feminina na Câmara Federal atingiu apenas 8,3% dos parlamentares eleitos pela Paraíba, para o mesmo quadriênio 2019-2022.
No Estado da Paraíba a situação é tão grave que, segundo os dados do Repositório de Informações do TSE[2], nas eleições de 2016, no Município de Maturéia-PB, um único voto foi destinado a mulheres, mesmo com essa cidade sertaneja contando com um eleitorado de 4.950 pessoas aptas a votar e tendo 12 candidatas formalmente inscritas na disputa[3].
Os dados são impressionantes. Esse fenômeno de baixa representatividade feminina certamente é incompatível com a Constituição tão pródiga em relação à valorização da universalização da democracia e ampla igualdade de chances na postulação política que rege o Brasil. Além disso, conforme será demonstrado ao longo deste artigo, a Lei Federal n.º 12.034/2009 fora editada pelo legislador pátrio justamente com a intenção de eliminar essa distorção, garantindo a reserva da cota de gênero nas candidaturas ao parlamento, sendo esse um método que deveria ter aumentado a efetividade do Espírito Constitucional.
Com o advento da Lei Federal n.º 12.034/2009, as eleições mostraram que o percentual proporcional de mulheres candidatas subiu, afinal, formalmente as coligações passaram a respeitar a regra da cota de gênero. Contudo, esse respeito foi meramente formal, já que as coligações passaram a driblar o conteúdo teleológico da norma ao apresentar candidaturas femininas fictícias, também denominadas de “candidatas laranjas”.
O princípio da igualdade de oportunidades na disputa eleitoral tem se apresentado com baixíssima densidade normativa, principalmente em um contexto no qual a falta de educação do povo, a corrupção impingida por esquemas políticos que querem se perpetuar no poder e a cultura oligárquica transformam a ocupação de cargos eletivos brasileiros em verdadeiras capitanias hereditárias.
Para tentar suprir a baixa densidade normativa da universalização do acesso aos cargos públicos eletivos, a Lei Federal n.º 12.034/2009 trouxe uma sensível alteração ao texto original Lei das Eleições (Lei Federal nº 9.504/1997) criando a regra da reserva de cota de gênero, que preconiza que uma coligação só poderá ser registrada se for composta por, pelo menos, 30% de integrantes de cada gênero.
Evidentemente a mens legis desta inovação legislativa é louvável e merecedora de encômios, eis que tinha por objetivo mitigar uma injustiça histórica. Contudo, em razão da dinâmica procedimental natural do processo eleitoral, a lei se apresentou infrutífera em relação à tutela dos valores pretendidos, já que as agremiações políticas brasileiras encontraram uma maneira de burlá-la, sem ficar sujeito a punições.
Para compreender o método de burla à regra da reserva de cota de gênero é necessário ter em mente, inicialmente, que o processo eleitoral tem seu pontapé com a realização das convenções partidárias, sendo este o momento em que as agremiações políticas se reúnem para escolher seus candidatos.
Partindo da premissa que a lei impõe que 30% das vagas sejam preenchidas por mulheres, os caciques partidários começaram a inserir nomes aleatórios de mulheres (candidatas fictícias) na lista de postulantes, apenas para atingir a cota proporcional dos 30%, atendendo formalmente ao citado requisito de registrabilidade de uma coligação proporcional. Tal conduta tem como objetivo o deferimento do DRAP (Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários) pela Justiça Eleitoral, para viabilizar o deferimento dos RCANs (Registros de Candidaturas) individuais dos candidatos.
Com a aprovação do DRAP pela Justiça Eleitoral, as candidatas fictícias desapareciam da disputa, já que elas já tinham logrado seu objetivo – servir de mero instrumento para viabilizar a disputa real entre os homens integrantes da coligação. E, de acordo com o procedimento natural de processo eleitoral, nada mais poderia ser feito, já que esta farsa só viria a ser descoberta após as eleições, com o advento da abertura das urnas e verificação que as mulheres não obtiveram votos.
Conforme descrição acima mencionada, é possível perceber que essa fraude é facilmente diagnosticada, mas apenas em momento posterior às eleições, razão porque nenhuma atitude corretiva poderia ser tomada, eis que os pedidos de registro de candidatura já tinham sido anteriormente deferidos e haviam transitado em julgado, no desenrolar do processo eleitoral. Desse modo, não havia no meio processual um instrumento apto a revolver aspectos do registro de candidatura em momento posterior à votação.
O objetivo da prática da fraude é tentar ganhar benefícios eleitorais às custas do sistema proporcional de representação. Isso porque para poder lançar dois candidatos “puxadores de voto” – candidatos homens - é necessário apresentar uma candidata mulher, de forma a manter o respeito à proporcionalidade dos 30% do gênero. As coligações eleitorais se valem do expediente das candidaturas femininas laranjas para poderem lançar o maior número possível de postulações masculinas, que em última medida, são aquelas capazes de atrair votos para a coligação.
Estudos temáticos demonstram[4], a partir de dados extraídos do TSE, que o número de candidaturas femininas cresceu exponencialmente desde o advento da Lei Federal n.º 12.034/2009, já que as coligações passaram a inscrever candidatas laranjas para respeitar a regra da cota de gênero, contudo, isso não representou um incremento de um aumento na representação feminina nos parlamentos brasileiros, justamente porque as candidaturas femininas , em grande parte, eram fictícias.
A única conclusão a que se pode chegar após 10 anos de edição da Lei Federal n.º 12.034/2009 é que, apesar da sua mens legis ser merecedora de lauréis, sua aplicação prática foi um retumbante fracasso, diante da persistente cultura brasileira de privilegiar a participação de homens na política, além da facilidade de burla de suas regras.
Novamente extraindo dados do repositório de informações do TSE observamos que desde 2004 (antes da Lei Federal n.º 12.034/2009) até as eleições de 2016, a média de participação de mulheres nas câmaras de vereadores de todo o Brasil oscilou entre 12% e 14%, o que comprova um cenário de absoluta sub-representação, sem qualquer alteração de contexto de mulheres eleitas em decorrência da edição da nova lei. Isso reforça o entendimento de que a inovação legislativa não logrou êxito em alterar o cenário fático alvo de tantas críticas.
Relativamente ao mesmo período comparado (2004-2016), o número de candidaturas femininas subiu de uma média de 21% para 32%, mas, o número de votos em mulheres desabou de 25% para 16%. Tais dados são capazes de comprovar a existência de candidaturas fictícias, pois se criou um panorama com mais candidatas mulheres nas coligações eleitorais, mas com menos votos lhes sendo destinados, mantendo-se rigorosamente a mesma sub-representação proporcional em relação ao número de candidatas eleitas.
Se os partidos e coligações conseguem cumprir os requisitos da regra da cota de gênero, mas isso não interfere na representação feminina na política, outra não pode ser a conclusão senão que o cumprimento à Lei n.º 12.034/2009 tornou-se um ato meramente formal de inscrição de nomes femininos na ata de convenção das eleições, tratando-se de fraude ao próprio processo eleitoral, já que tais mulheres emprestam seus nomes para viabilizar uma chapa que – na realidade, não na formalidade - postula eleger apenas homens, sem se importar com o grave cenário de sub-representação de mulheres.
Com a onda de fraudes ocorridas após a edição da Lei n.º 12.034/2009, a doutrina pátria passou a combater ferozmente a prática de candidaturas femininas artificiais. A respeito, é válido conferir o excerto: "A candidatura de laranjas é ato acintoso ao sistema jurídico, fato que representa verdadeiro deboche ao povo brasileiro, sobretudo às mulheres, ao ordenamento jurídico, ao Poder Judiciário e à Constituição da República que consagra como um de seus vetores o princípio da igualdade” (MACEDO, 2014)
A jurisprudência também se manifestou prontamente contra a fraude das candidaturas artificiais femininas, reconhecendo-se a ilegitimidade desta postulação eleitoral fictícia, já que é perceptível que esta medida representa um abuso de direito praticado pelos partidos políticos, sob o pretexto de gozo de sua autonomia partidária para escolha de candidatos.
“A autonomia partidária contida no § 1º do art. 17 da CF/88 não significa soberania para desrespeitar, direta ou indiretamente, valores e princípios constitucionais: é imperativo que agremiações observem a cota de gênero não somente em registro de candidaturas, mas também na propaganda e assegurando às mulheres todos os meios de suporte em âmbito intra ou extrapartidário, sob pena de se manter histórico e indesejável privilégio patriarcal e, assim, reforçar a nefasta segregação predominante na vida político-partidária brasileira”.
(TSE - RP nº 282-73/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, em 23.02.2017).
O problema existe e é de conhecimento nacional. Seu diagnóstico também é de fácil realização, após a conferência do número de votos atribuídos às mulheres que ofereceram seus nomes apenas para atingir formalmente o coeficiente eleitoral, sem ter real intenção de realizar uma postulação consistente. O desafio é encontrar um mecanismo efetivo de combate a essa burla à regra da cota de gênero, galgando mais um passo em direção à universalização do acesso aos cargos eletivos.
Identificar o insucesso na regra da cota de gênero é fácil, bastando se observar que, estatisticamente, nenhuma alteração ocorreu nos últimos dez anos relativamente à majoração da presença de mulheres na política brasileira. Para tentar enfrentar o problema telado, o Poder Judiciário resolveu valer-se do ativismo para delimitar regras concretas que visassem a dar maior densidade normativa ao princípio constitucional da igualdade de oportunidades em relação ao acesso aos cargos eletivos.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a decisão mais representativa em relação a tentar frear a discrepância de representatividade política entre gêneros foi no âmbito do julgamento da ADI n.º 5617, em 15.03.2018. O Pretório Excelso deu interpretação conforme a Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015, determinando a equiparação da proporcionalidade de candidaturas por gênero (pelo menos 30%) ao patamar mínimo de recursos do Fundo Partidário destinados a cada gênero, garantindo-se a percepção de, no mínimo, 30%, pelas candidatas do gênero feminino.
Ao manter uma postura de defesa social e promover a referida interpretação conforme, o Supremo se apoiou em cinco relevantes fundamentos, sendo eles: (i) as ações afirmativas femininas prestigiam o direito à igualdade; (ii) é incompatível com o direito à igualdade a distribuição de recursos públicos orientada apenas pela discriminação em relação ao sexo da pessoa; (iii) a autonomia partidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional aos direitos fundamentais, especialmente ao direito à igualdade; (iv) a igualdade entre homens e mulheres exige não apenas que as mulheres tenham garantidas iguais oportunidades, mas também que sejam elas empoderadas por um ambiente que as permita alcançar a igualdade de resultados; (v) a participação das mulheres nos espaços políticos é um imperativo do Estado, uma vez que a ampliação da participação pública feminina permite equacionar as medidas destinadas ao atendimento das demandas sociais das mulheres.
Estes mesmos fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal em relação à distribuição proporcional do Fundo Partidário também foram levantados pelo TSE no bojo da Consulta n.º 0600252-18.2018.6.00.0000, quando se decretou que os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) também deveriam ser rateados, nos mesmos moldes do art. 10, §3º criado pela Lei n.º 12.034/2009.
Esta decisão do Tribunal Superior Eleitoral teve o objetivo de promover reserva para cota de gênero também em relação ao rateio dos recursos públicos utilizados para financiamento das postulações eleitorais, de modo que pelos menos 30% dos valores deveriam ser aplicados em candidaturas femininas. Com reserva de cota de candidaturas, reserva de tempo de propaganda gratuita no rádio e televisão, bem como, agora, com reserva de recursos públicos para realização de despesas eleitorais, a lógica era que as eleições de 2018 fossem um marco de respeito à isonomia de gênero.
Contudo, mais uma vez, a cultura misógina de monopólio masculino dos partidos impediu que se pudesse viver um cenário de plena liberdade e isonomia em relação ao lançamento de candidaturas e realização de campanhas eleitorais. Isso porque uma nova fraude foi tramada nas candidaturas de todo o Brasil, consistente no desvio de recursos do fundo de financiamento especial de candidaturas, utilizando-se mulheres como laranjas para a realização de despesas em favor da candidatura de homens privilegiados pelas coligações.
A sistemática da fraude é bem simples: cumprindo formalmente a determinação do TSE, os recursos do fundo especial de financiamento eram destinados às candidatas. Contudo, conforme vinha ocorrendo desde a edição da Lei n.º 12.034/2009, estas candidaturas femininas eram artificiais (laranjas), que serviam como fantasmas para a realização de despesas junto a empresas que, por sua vez, emitiam notas fiscais a serem utilizadas nas prestações de contas. Contudo, tais empresas em vez de realizarem serviços em prol das candidatas, prestavam serviços a candidatos homens do mesmo partido.
Em resumo, assim ocorreu a fraude em 2018: o dinheiro público do Fundo Especial do TSE deveria ser destinado às mulheres, as candidaturas eram de mulheres, as notas fiscais eram lançadas em nome das mulheres e a contabilidade eleitoral computava as despesas como se fossem das mulheres. Contudo, as empresas contratadas prestavam serviços em favor dos homens da coligação, por determinação dos partidos, a fim de facilitar o êxito eleitoral das candidaturas masculinas.
Não se pode negar que o Poder Judiciário fez sua parte. Ao se deparar com a discrepância de representação entre os gêneros, frente à inércia do Legislativo, o STF e o TSE se valeram do ativismo judicial para estipular regras concretas de tutela à política pública afirmativa de representatividade feminina no parlamento e estender a diretriz prevista na Lei n.º 12.034/2009, não apenas para a reserva de candidaturas, mas também para a reserva de recursos do fundo especial de financiamento de candidaturas.
Contudo, notícias vistas aos montes na imprensa informam a descoberta de novas candidaturas laranjas. Esta constatação demonstra que ainda há muito a evoluir para se chegar em um patamar isonômico entre os gêneros, onde os partidos políticos não consigam mais criar mecanismos para atravancar as tentativas de dar voz na política àquelas que representam 52% da população brasileira, as mulheres.
O primeiro problema de ordem concreta com relação à baixa representatividade feminina na política se revela sob o prisma individual. Na medida em que inexiste a efetiva universalização do acesso aos cargos eletivos, as mulheres não conseguem competir com os homens que já estão na política e têm o monopólio de poder dos partidos políticos.
O atual método de gestão dos partidos políticos dá aos caciques destas agremiações o poder de escolher a forma de rateio do tempo destinado à propaganda política partidária e propaganda política eleitoral, além da prerrogativa de determinar como serão gastos os recursos do fundo partidário ordinário e fundo especial de financiamento de campanhas. Os partidos também têm o monopólio da escolha das candidaturas, podendo lançar os nomes de candidatos(as) de acordo com estratégias específicas de interesses dos seus dirigentes.
A fruição da autonomia partidária por parte dos atuais dirigentes não dá espaço para que novas representantes entrem na política, já que os detentores do poder criam mecanismos para perpetuação de suas próprias lideranças. Esse fundamento, aliado ao fato que hodiernamente os homens ocupam majoritariamente todos os espaços dos cargos eletivos, faz com que uma mulher não consiga vencer todos os obstáculos existentes para poder se candidatar com paridade de armas.
Por sua vez, sob o prisma coletivo a matéria fica ainda mais preocupante, já que a fraude à Lei Federal n.º 12.034/2009, ao perpetuar a sub-representação feminina na política gera consequências que se refletem na idealização, construção e execução de políticas públicas que considerem as questões mais essenciais e peculiares femininas.
É óbvio que a ausência de mulheres em cargos públicos inviabiliza um debate amplo sobre temas relevantíssimos como saúde pública, segurança pública, aborto, previdência e direitos trabalhistas, além de outras matérias sensíveis que cotidianamente fazem parte da vida social feminina e cujos pontos de vista são ignorados pelos homens, que não conseguem travar um debate adequado e amplo.
Vale ainda relembrar o óbvio: elas representam 52% da população do Brasil e não podem ficar alijadas do diálogo sobre as pautas femininas. Recentemente, o médico Dráuzio Varella fez afirmativa que merece reflexão: se os homens parissem, o aborto seria legalizado há muito tempo.
Não se tem a intenção de discorrer sobre o mérito do aborto, seja sobre sua legalidade ou sobre saúde pública, visa-se apenas ilustrar, mediante pauta de relevância indiscutível, a importância da opinião feminina no Congresso Nacional. Se estivéssemos em um cenário com representação feminina satisfatória na política, além desse tema ser levado a debate, poderia ser enfrentado sob diferentes pontos de vista, tonando a discussão mais rica e deixando uma eventual decisão – seja ela qual for – mais legítima do ponto de vista social e democrático.
Neste contexto de presença de mulheres nos parlamentos, independentemente do aborto ser regulamentado ou não, o fato é que se teria debate. E debate sob a perspectiva feminina, já que as mulheres, por razões óbvias, são as maiores interessadas na temática.
O mesmo ocorre em quaisquer outras demandas sociais de interesses das mulheres. Se existisse discussão com as protagonistas, talvez o Brasil estivesse dotado de leis mais eficazes de combate ao feminicídio, a proposta da nova reforma da previdência poderia abordar questões sensíveis ao bem estar das mulheres ou o SUS poderia estar dotado de práticas mais humanas em relação à violência obstetrícia ou áreas afins. Uma infinidade de problemas sensíveis às mulheres poderia ser melhor enfrentada se elas tivessem voz na formulação de políticas públicas voltadas ao público feminino.
Todos os motivos elencados conduzem à necessidade de adoção de medidas pujantes para fazer valer as normas de caráter afirmativo de representatividade feminina na política, visto que tais normas, além de serem indiscutivelmente constitucionais e que por si mesmas reclamam eficácia, também devem ser encaradas pragmaticamente como necessárias, mormente no Brasil, um país caracterizado por toda sorte de desigualdade, sobretudo nas oportunidades de participação ativa das mulheres na vida político-partidária.
O principal desafio para combater as fraudes à regra da cota de gênero é o fato que, na prática, só se consegue descobrir a existência de candidaturas fantasmas após o final das eleições, quando são computados os votos e é verificado que, em determinada coligação fraudadora, as mulheres não tiveram atribuída a si a confiança dos eleitores.
Já se mencionou um exemplo concreto de fraude ocorrida na cidade de Maturéia, na Paraíba, quando nas eleições de 2016, apenas um único voto foi destinado a mulheres, mesmo tal cidade sertaneja contando, à época, com um eleitorado de 4.950 eleitores aptos a votar e tendo 12 candidatas formalmente inscritas na disputa.
A atual sistemática do processo eleitoral também não ajuda na abordagem do tema, já que as coligações devem apresentar os seus documentos e atos partidários antes do microperíodo eleitoral e, caso não haja vício formal no Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários (DRAP), a Justiça Eleitoral aprova este processo e o mesmo transita em julgado, concomitantemente com os pedidos de registro de candidatura, o que faz com que a matéria já esteja preclusa no momento em que as urnas são abertas, na apuração das eleições.
Neste contexto procedimental de dificuldade de impugnar um DRAP, diante de uma fraude que só será revelada no futuro, com muita perspicácia e em boa hora, a jurisprudência pátria passou a admitir o ajuizamento de ação de impugnação ao mandato eletivo (AIME) em face de coligações que se valham que candidaturas laranja para fraudar a regra da cota de gênero criada pela Lei n.º 12.034/2009.
A AIME é expediente processual eleitoral previsto diretamente na Constituição da República, no art. 14, §10º, que dispõe que “O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.”. O foco desta abordagem do cabimento processual de AIME diante da burla à Lei n.º 12.034/2009 reside justamente no permissivo constitucional de manejo desta ação no caso de “fraude”.
Na práxis dos processos eleitorais, historicamente a AIME sempre foi pouco utilizada, porque as principais ilegalidades cabíveis para este expediente processual eram o abuso de poder e a corrupção, e estas matérias também podem ser abordadas em AIJES, que têm juízo cognitivo mais profundo, com maior oportunidades de dilação probatória, o que fez com que esta segunda ação assumisse a predileção dos eleitoralistas.
Em acréscimo, por muito tempo se entendeu que a “fraude” tratada no art. 14, §10º da Constituição Federal seria burla ao processo de votação (exemplo: manipulação de urnas), o que tornou ainda mais rara a utilização deste mecanismo processual, já que irregularidade deste quilate não é comum no cotidiano eleitoral brasileiro.
Contudo, o panorama de utilização da AIME foi modificado quando o TSE passou a compreender que a “fraude” aludida na Constituição Federal não diz respeito estritamente à burla à votação, mas também fraude à aplicação da lei no próprio processo eleitoral, o que modificou sensivelmente a utilização desse expediente processual, aumentando as hipóteses de seu cabimento.
Dessa maneira, diante de uma fraude à regra da cota de gênero consistente na apresentação de candidaturas artificiais femininas, apesar de posteriormente às eleições não ser mais possível impugnar o DRAP ou RCAND já que estes transitaram em julgado, com a constatação de burla às regras da Lei n.º 12.034/2009, os legitimados ainda poderiam ajuizar AIME, com a finalidade de impugnar toda a coligação que se valeu do ardil.
Esta nova conceituação atribuída ao verbete “fraude” arrolado no art. 14, §10º da Constituição Federal trouxe uma nova perspectiva para a matéria, possibilitando que os prejudicados pelo ardil na apresentação de candidaturas artificiais femininas tenham em mãos um expediente processual de repressão em face dos beneficiários da burla à regra da cota de gênero.
Especificamente sobre este tema, é fundamental observar as razões de julgamento do “standard-case” RespE n.º 1-49, pelo TSE, que confirmou que a apresentação de candidaturas artificiais femininas é uma espécie de fraude, bem como que tal fato gera a admissibilidade da AIME como forma de combater a ilicitude. Vejamos:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. CORRUPÇÃO. FRAUDE. COEFICIENTE DE GÊNERO.
1. Não houve violação ao art. 275 do Código Eleitoral, pois o Tribunal de origem se manifestou sobre matéria prévia ao mérito da causa, assentando o não cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo com fundamento na alegação de fraude nos requerimentos de registro de candidatura.
2. O conceito da fraude, para fins de cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo (art. 14, § 10, da Constituição Federal), é aberto e pode englobar todas as situações em que a normalidade das eleições e a legitimidade do mandato eletivo são afetadas por ações fraudulentas, inclusive nos casos de fraude à lei.
3. A inadmissão da AIME, na espécie, acarretaria violação ao direito de ação e à inafastabilidade da jurisdição.
Recurso especial provido.
(TSE - Recurso Especial Eleitoral n° 149, José Freitas/PI, rel. Min. Henrique Neves da Silva, em 4.8.2015)
Ato contínuo, cabe observar trecho brilhantemente lapidado pelo Ministro Henrique Neves, extraído da “ratio decidendi” do Recurso Especial Eleitoral n° 149, cuja ementa foi supratranscrita:
[...] Penso que o termo fraude, estampado no art. 14, § 10, da Constituição Federal, encerra conceito aberto, a englobar todas as situações de fraude - inclusive a de fraude à lei - que possam afetar a normalidade das eleições e a legitimidade do mandato obtido. [...]
Realmente, o cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo deve ser admitido como instrumento processual de salvaguarda da legitimidade e da normalidade das eleições contra toda sorte de abuso, corrupção ou fraude, não cabendo impor limitações ao texto constitucional que não estejam previstas na própria Constituição Federal.
Nessa linha, cumpre destacar que essa compreensão do conceito de fraude para efeito do cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo não encerra, em si, interpretação extensiva, mas o mero reconhecimento de que onde o constituinte não distinguiu, não cabe ao legislador ordinário ou ao intérprete distinguir para efeito de reduzir o alcance do comando constitucional. [...]
Nesse aspecto, as alegações de fraude à lei, nas quais se aponta que determinada regra foi atendida a partir de suposto engodo praticado pela agremiação política, não podem ter a sua análise extirpada do âmbito da ação de impugnação de mandato eletivo. [...]
Nesse ponto, é importante destacar que a hipótese dos autos não contempla mera aferição da observância ou não dos percentuais de gênero das candidaturas previstas na legislação eleitoral, o que é, em si, matéria a ser aferida no momento da impugnação ou da análise do Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários - DRAP, conforme é pacífico na jurisprudência deste Tribunal.
O que se narra na presente ação - cuja veracidade deve ser oportunamente verificada - é a existência de candidaturas fictícias lançadas apenas para atender os patamares exigidos pela legislação eleitoral. A análise de tais questões - inclusive no que tange ao eventual oferecimento de valores e vantagens para que as candidatas renunciassem - é matéria que, evidentemente, não pode ser aferida, nem mesmo apontada no início do processo de registro de candidaturas, pois os fatos que apontariam para a caracterização da alegada fraude teriam ocorrido também em período posterior ao do registro das candidatas. [...]
Assim, no presente caso, os fatos apontados pelos recorrentes não podem ser considerados, a priori, como insuficientes para configurar hipótese de cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo.
A doutrina assim se expressa sobre o alcance do objeto da AIME, explicando que as candidaturas fictícias são uma espécie de fraude, passíveis de serem impugnadas via tal ação constitucional:
“A AIME também pode veicular o fato fraude, expressão que deve ser entendida como toda conduta capaz de desvirtuar ou alterar os elementos e as condições da disputa ou inserindo fator estranho ao processo eleitoral, tudo para beneficiar o candidato, em detrimento dos demais. [...]
Como mencionado no Capítulo II (Registro de Candidatura) – Item 4 (Reserva de Gênero), os partidos devem compor suas listas de candidatos às eleições proporcionais (vereadores e deputados) com observância dos percentuais mínimo (30%) e máximo (70%) para cada um dos sexos. Diante da dificuldade que alguns enfrentam para apresentar pelo menos 30% de mulheres, candidaturas fictas são levadas a registro, daí decorrendo renúncias ou completa inexistência de campanha.
A manobra, como se vê, acaba possibilitando a participação do partido na eleição, já que, sem se desincumbir dessa ação afirmativa de participação das mulheres, o partido não teria sequer seu DRAP deferido, ficando prejudicados os registros de todos os seus candidatos, porque devolvida a lista.
Com essa fraude, o partido obtém votação capaz de eleger um ou mais candidatos.”
(Edson de Resende Castro, Curso de Direito Eleitoral, pág. 465, Editora Del Rey, 2016)
Replicando a conceituação clássica do doutrinador Pontes de Miranda, transcrita originalmente no REspE n.º 1-49 (TSE), cabe mencionar que “fraude consiste em se praticar o ato de tal maneira que eventualmente possa ser aplicada outra regra jurídica e deixar de ser aplicada a regra jurídica fraudada. Aquela não incidiu, porque incidiu essa; a fraude à lei põe diante do juiz o suporte fático, de modo tal que pode o juiz errar. A fraude à lei é infração à lei, confiando o infrator em que o juiz erre. O juiz aplica a sanção, por ser seu dever de respeitar a incidência da lei (de não errar)”.
A partir da doutrina e jurisprudência pátria, extrai-se a firme conclusão de que não é possível interpretar restritivamente o conceito de “fraude” tratado pelo art. 14, §10 da CF/1988. Não se deve restringir o que o próprio constituinte não restringiu. Tal premissa gera a necessidade de admissibilidade da AIME para combater fraudes não apenas em relação ao processo de votação, mas também no que se refere ao escorreito cumprimento das regras de todo o processo eleitoral.
Vale salientar que, no caso do registro de candidaturas de mulheres para cumprir a regra da cota de gênero, o poder decorrente do monopólio das candidaturas exercido pelos partidos políticos não se limita ao mero lançamento formal de candidaturas, pois a regra - como ação afirmativa - impõe que o seu conteúdo seja efetivamente respeitado de modo que as postulações eleitorais lançadas sejam efetivas e reais.
A partir de todas essas razões, sendo a AIME uma ação constitucional admissível na hipótese de fraude “lato sensu”, e, considerando-se que a burla às regras legais de proteção à representatividade feminina na política é considerada uma hipótese de fraude às regras do processo eleitoral, confirma-se a admissibilidade processual da ação de impugnação ao mandato eletivo, como via repressiva para combater fraudes na cota de gênero.
Firmada a conclusão que é admissível ação de impugnação ao mandato eletivo com relação à fraude à aplicação da lei eleitoral, notadamente no que diz respeito à regra da reserva de cota de gênero, cabe avançar esse estudo para as consequências práticas de tal entendimento, passando a investigar os efeitos de um julgamento de procedência desta ação eleitoral.
Regressando à primeira premissa normativa sobre o tema, vale repisar que a Lei n.º 12.034, de 2009, estabeleceu que “cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”. A partir daí, para dar proteção imediata à universalização das chances da postulação eleitoral entre brasileiros, criou-se regra da cota de gênero.
Ainda no início do procedimento eleitoral, se a indigitada participação de gênero for inferior a 30%, estará configurada irregularidade por violação à Lei das Eleições, e, por consequência, o partido/coligação não terá o DRAP deferido, prejudicando todas as demais candidaturas integrantes da coligação. Nesta situação em que o DRAP é indeferido pela Justiça Eleitoral, todos os candidatos da coligação terão seus pedidos individuais de registro de candidatura prejudicados, o que deve importar na queda total da coligação e candidaturas que a compõem, conforme jurisprudência pacífica do TSE.
“Os processos de registros de candidaturas individuais vinculam-se ao registro principal da coligação ou do partido (DRAP), cujo indeferimento acarreta, irremediavelmente, a prejudicialidade dos demais. Precedentes. 3. Embargos de declaração não conhecidos”.
(TSE - ED-AgR-REspe nº 92-80/SC, ReI. Min. Dias Toffoli, DJe de 22.10.2013).
“O indeferimento do pedido de registro da coligação, em decisão transitada em julgado, acarreta o prejuízo dos requerimentos individuais de candidatura a ela vinculados.”
(TSE - RESPE: 18768. Rel. Min. Luciana Lóssio. DJE 06/03/2017)
Ou seja, descumprindo-se a reserva de cota de gênero no lançamento das candidaturas, e sendo este fato percebido no julgamento do DRAP, a coligação não será admitida na disputa proporcional e as condições pessoais (condições de elegibilidade e causas de inelegibilidade) de cada um dos candidatos da coligação sequer serão avaliadas e julgadas, prejudicando-se a análise de todos os processos individuais de registro de candidatura atrelados àquela coligação.
Vale ressalvar que desde o ano de 2009, quando houve a alteração da redação da Lei das Eleições para criar a cota de gênero, o TSE manteve-se firme no sentido de que o descumprimento da aludida regra impede a regularidade do registro da coligação interessada em participar das eleições.
“[...]. Eleições 2012. DRAP. Percentuais de gênero. Não observância [...].
1. A norma prevista no art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97 tem caráter objetivo e o seu descumprimento impede a regularidade do registro da coligação ou do partido interessado em participar das eleições.
2. No caso, facultou-se à coligação, no prazo legal, adequar o DRAP aos percentuais de gênero, mas a determinação não foi atendida oportunamente.
3. Inviável a análise documental em recurso de natureza extraordinária para se aferir a suposta adequação do DRAP aos percentuais de gênero. [...]”
(TSE - AgR-REspe nº 11781, rel. Min. Nancy Andrighi, DJE 6.11.2012)
Se o percentual mínimo de 30% é condição para a participação do partido nas eleições e se a uma coligação fraudadora não apresenta candidaturas reais, ao contrário, apresenta candidaturas femininas fictícias, ela sequer poderia ter o seu registro admitido. Assim, todos os candidatos apresentados por ela não teriam sequer buscado e recebido os votos que os elegeram.
Não é possível revirar o julgamento do DRAP no momento de constatação da fraude (em regra, após as eleições), porque neste momento quase que a totalidade dos casos restará transitada em julgado, sem falar que já terá escoado o prazo para impugná-lo, o que deixará a matéria preclusa.
Logo, o ataque à fraude por meio da ação de impugnação do mandato eletivo – cuja admissibilidade já foi demonstrada – é o mecanismo processual adequado para impugnar o mandato dos eleitos, bem como a expectativa de direito dos suplentes assumirem, a fim de que estes não se beneficiem da conduta fraudulenta.
Mais uma vez, cabe registrar que a AIME é a ação constitucional apta a veicular a pretensão da impugnação ao mandato dos eleitos e a pretensão da derrubada de toda coligação, em virtude da fraude à regra da reserva de cota de gênero. E, à luz do art. 14, §10 da CRFB/1988, a “fraude” é compreendida como qualquer manobra que objetive enganar a Justiça Eleitoral e proporcionar resultados diversos daqueles que seriam possíveis fosse regular e imaculado o ambiente da disputa.
Considerando-se que se a fraude não tivesse sido praticada, a coligação sequer existiria, a consequência prática do julgamento da AIME deve ser a anulação de todos os votos destinados à coligação fraudadora – tanto em relação aos candidatos eleitos, como em relação aos candidatos suplentes – porque estas candidaturas também sequer existiriam, ante o indeferimento do DRAP, caso a legislação eleitoral não tivesse sido burlada. O vício, portanto, remete ao registro da coligação, que nasce inválida.
Após um estudo jurisprudencial, detectou-se que no Brasil tramitam várias AIMES com essa matéria meritória, contudo, até a presente data, não se identificou nenhum julgamento de procedência proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, razão porque não se podem consolidar as consequências práticas à impugnação do mandato dos eleitos.
Ante a mácula inarredável que paira sobre uma coligação fraudadora da regra da cota de gênero, propõe-se que a consequência do julgamento de procedência de uma AIME deste quilate seja a nulidade dos votos atribuídos aos candidatos integrantes da coligação, e que, em seguida, os assentos do parlamento sejam redistribuídos para as outras coligações, utilizando-se as regras ordinárias de representação proporcional prevista nos arts. 105 e seguintes do Código Eleitoral Brasileiro.
Em complemento, quadra registrar a irrelevância de averiguação do ânimo de candidatos integrantes da coligação, afinal, a matéria em comento (julgamento do DRAP, pela Justiça Eleitoral) é de aferição objetiva: havendo as condições documentais elencadas em lei, o DRAP é deferido. Inexistindo comprovação objetiva dos requisitos normativos, o DRAP é indeferido, derrubando em conjunto o RCAND de todos os candidatos, diante do vínculo de prejudicialidade existente entre eles.
Acredita-se que, com essa abordagem, finalmente, será possível que o Brasil aproxime-se do cenário normativo ideal a viabilizar uma disputa justa, sem desigualdades jurídicas entre os gêneros. Evidentemente, seria utópico crer que já na primeira eleição posterior a tal amadurecimento, o país logre êxito em conseguir a representação feminina plena, afinal, a problemática da sub-representação iniciada há séculos, demandará tempo para que se rompa a cultura de desigualdade.
Não obstante, é imperioso que os aplicadores do direito reconheçam a relevância social dessa pauta e apliquem, com rigor, os expedientes jurídicos mencionados nesse ensaio. Caso contrário, haverá pouca perspectiva de mudança em relação à situação de sub-representativadade das mulheres, já que as agremiações políticas – e os seus dirigentes - já deixaram claro que não têm o interesse em modificar a forma de composição do parlamento brasileiro.
O Brasil vive um gravíssimo cenário de sub-representação feminina na política, tendo sido diagnosticado que essa questão se deve à dificuldade de concorrer a um cargo eletivo com quem dispõe da máquina dos partidos políticos a seu favor, bem como em virtude de uma secular cultura da escolha popular de homens para serem os representantes do povo nos parlamentos. Tal fato é gravoso às mulheres que se quedam em situação de vulnerabilidade legiferante ante a inexistência de vozes que possam debater políticas públicas de seus interesses.
Tentando quebrar o monopólio masculino do acesso aos cargos eletivos, inicialmente, a Lei n.º 12.034, de 2009, estabeleceu que “cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”. A partir daí, para dar proteção imediata à universalização das chances da postulação eleitoral entre brasileiros, criou-se regra da cota de gênero.
Não deveria haver espaços para fuga da determinação da Lei n.º 12.034/2009. Se o legislador impôs a regra da reserva de cota de gênero nas candidaturas proporcionais, é porque essa foi a melhor solução para dar concretude e eficácia às regras constitucionais do sistema democrático brasileiro, como pluralismo político e ampla acessibilidade aos cargos eletivos, por meio de disputa em igualdade de condições entre os postulantes.
Desse modo, o objetivo do legislador foi determinar que fossem efetivamente preenchidas as cotas de gênero, e não que ficassem meramente disponíveis para eventuais candidaturas de mulheres. Contudo, fraudes passaram a ser praticadas pelos partidos políticos no momento da composição das coligações proporcionais: as agremiações criaram a rotina de apresentar nomes de candidatas laranjas, que nunca tiveram uma real postulação eleitoral.
A fraude das candidaturas femininas laranjas se disseminou por todo o país, pois os partidos que formam as coligações eleitorais compreenderam que este seria um método simples para burlar a regra da reserva da cota de gênero. No entanto, tal estratagema partidário vem se apresentando como obstáculo concreto para aumentar a representação feminina nos parlamentos brasileiros, esvaziando os efeitos da tutela protetiva da norma eleitoral.
A fim de inibir tais condutas, cabe à Justiça Eleitoral adotar medidas ríspidas, como forma de fazer valer o comando constitucional do princípio da igualdade de oportunidades. Constando-se a existência de candidaturas femininas fictícias, os interessados dispõem, a título processual, da possibilidade de ajuizamento uma ação de impugnação ao mandato eletivo, baseada no permissivo constitucional de “fraude”, invocando-se burla à aplicação da legislação eleitoral, visando a anulação de todos os votos atribuídos à coligação, impugnando-se o mandato dos beneficiários.
A consequência dessa medida proposta deve ser a impugnação do mandato dos eleitos, a impugnação da expectativa de direito dos suplentes da coligação, anulando-se todos os votos atribuídos aos candidatos integrantes da coligação e redistribuindo-se as vagas às outras coligações, de acordo com os critérios ordinários do Código Eleitoral.
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Advogada. Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, Pós-graduada em Direito Administrativo pela Universidade Anhaguera-Uniderp. Graduada em Direto pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VANESSA GOUVEIA BELTRãO, . Fraudes à regra da cota gênero e os mecanismos jurídicos para defesa da representatividade feminina na política Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52875/fraudes-a-regra-da-cota-genero-e-os-mecanismos-juridicos-para-defesa-da-representatividade-feminina-na-politica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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