RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o voto obrigatório, bem como a sua natureza jurídica. Fez-se uma análise histórica da obrigatoriedade do voto e desse sistema. Assim, buscou-se analisar como surgiu este instituto e o seu decorrer na legislação constitucional e infraconstitucional. Realizou-se, para tanto, uma pesquisa bibliográfica e se expôs as visões teóricas de Alexandre de Moraes, José Jairo Gomes, Djalma Pinto, José Afonso da Silva, entre outros, sobre o assunto. Conclui-se que o voto tem uma natureza jurídica de direito/dever e que em um determinado momento histórico, fez-se necessário tornar o ato de votar obrigatório, porém, a sociedade atual não permanece a mesma daquela, o que traz à tona a discussão sobre a real necessidade de manter tal instituto.
Palavras-chave: Voto. Obrigatório. Direito. Dever. Necessidade.
Introdução
O presente trabalho tem como tema o voto obrigatório e sua natureza jurídica para a doutrina nacional, bem como a análise da necessidade dessa obrigatoriedade no atual cenário social.
Nesse seguimento, será demonstrado como surgiu tal instituto no direito nacional e repassado como foi abordado o tema nas legislações constitucionais e infraconstitucionais.
Neste contexto, o principal objetivo deste estudo é demonstrar o que a doutrina diz sobre a natureza jurídica do voto, como também que a sociedade não é mais a mesma de quando motivou a implantação de tal instituto.
Para chegar ao objetivo proposto, utilizou-se como recurso metodológico a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise das opiniões dos doutrinadores sobre o tema já publicadas na literatura nacional e artigos científicos divulgados por meio eletrônico.
No mais, escorou-se nos embasamentos teóricos de Alexandre de Moraes, José Jairo Gomes, Djalma Pinto, José Afonso da Silva, entre outros.
Desenvolvimento
A atual Constituição Federal prevê o voto no Capitulo dos Direitos Políticos (Capítulo IV) e determina que ele é, em regra, obrigatório para todos os cidadãos.
Ante a essa obrigatoriedade, surge a discussão acerca da natureza jurídica do voto, se ele seria um direito do cidadão, um dever desse para com o Estado ou até mesmo um misto desses dois primeiros, bem como sobre a necessidade dessa obrigatoriedade hoje em dia.
É importante destacar que, no Brasil, nem sempre houve a obrigatoriedade de votar.
Em 1824, a Constituição Imperial não fazia qualquer menção sobre a obrigatoriedade de votar, aliás, naquela época, não havia um real poder por parte do povo, pois as eleições eram indiretas para a Câmara dos Deputados e para o Senado, com dois turnos. Para votar, era necessário que o eleitor possuísse uma certa renda anual.
Embora a Constituição Imperial não estabelecesse a obrigatoriedade de votar, a lei orgânica dos municípios daquela época estabelecia uma pena pecuniária aos eleitores que não votassem.
De 1889 a 1930, fase da Primeira República, a democracia começou a se tornar mais evidente. Nessa época, houve a abolição da exigência de renda para participar do processo eleitoral, contudo, o voto ainda não era obrigatório e só era possível para os homens com 21 anos ou mais, que soubessem ler e escrever.
No entanto, o comparecimento dos eleitores às eleições era pequeno. Na eleição para a Câmara dos Deputados, em 1912, somente 2,6% da população votou. Em 1930, na eleição presidencial, pouco mais de 5% dos eleitores foram às urnas.
Com a criação da Justiça Eleitoral no Brasil, em 1932, e a consequente promulgação do Código Eleitoral, o voto passou a ser obrigatório e trouxe, também, outras inovações, como o voto da mulher, com o especial objetivo de mostrar uma maior legitimidade do novo processo eleitoral e garantir uma maior participação do eleitor, que mostrou reduzida participação nos anos anteriores, como exposto no último parágrafo.
O princípio da obrigatoriedade de votar ganhou status constitucional em 1934, quando a Constituição da República estabeleceu em seu artigo 109:
Art 109 - O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar. (BRASIL, 1934).
Em seguida, as Constituições de 1946, 1967, 1969 e de 1988, adotaram a obrigatoriedade de votar.
A atual Constituição Federal, de 1988, exalta o voto obrigatório no parágrafo primeiro do artigo 14, que estabelece a obrigatoriedade de votar para os maiores de dezoito anos e o torna facultativo para determinadas pessoas. É o texto do mencionado artigo da Carta Magna:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
(...)
§ 1º O alistamento eleitoral e o voto são:
I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos;
II - facultativos para:
a) os analfabetos;
b) os maiores de setenta anos;
c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. (BRASIL, 1988).
O Código Eleitoral vigente (Lei 4.737/65) também reforça essa obrigatoriedade em seu artigo 6º, que diz:
Art. 6º O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de um e outro sexo, salvo:
b) os maiores de setenta anos;
c) os que se encontrem fora do país.
b) os que se encontrem fora do seu domicílio;
c) os funcionários civis e os militares, em serviço que os impossibilite de votar. (BRASIL, 1965).
Na sequência, o Código Eleitoral ainda elenca, em seu artigo 7º, algumas penalidades para o eleitor que não votar e que não se justificar em 30 dias. É a redação do mencionado artigo:
Art. 7º O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o juiz eleitoral até 30 (trinta) dias após a realização da eleição, incorrerá na multa de 3 (três) a 10 (dez) por cento sobre o salário-mínimo da região, imposta pelo juiz eleitoral e cobrada na forma prevista no art. 367.
§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor:
I - inscrever-se em concurso ou prova para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles;
II - receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de função ou emprego público, autárquico ou para estatal, bem como fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao segundo mês subsequente ao da eleição;
III - participar de concorrência pública ou administrativa da União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou das respectivas autarquias;
IV - obter empréstimos nas autarquias, sociedades de economia mista, caixas econômicas federais ou estaduais, nos institutos e caixas de previdência social, bem como em qualquer estabelecimento de crédito mantido pelo governo, ou de cuja administração este participe, e com essas entidades celebrar contratos;
V - obter passaporte ou carteira de identidade;
VI - renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo;
VII - praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda. (BRASIL, 1966).
Na doutrina brasileira, ante a análise dessa obrigatoriedade de votar expressamente contida na Constituição e no Código Eleitoral, conforme mencionado acima, prevalece a terceira tese exposta no início, um misto dos dois primeiros polos. Explica que o voto é um direito do cidadão e, ao mesmo tempo, uma obrigação dele para com o Estado. É o que diz Gomes (2008): “Embora expresse um direito público subjetivo, o voto é também um dever cívico e, por isso, é obrigatório para os maiores de 18 anos e menores de 70 anos (CF, art. 14, §1º)”.
Moraes (2010) explica:
O voto é um direito público subjetivo, sem, contudo, deixar de ser uma função política e social de soberania popular na democracia representativa. Além disso, aos maiores de 18 e menos de 70 é um dever, portanto, obrigatório. “Assim, a natureza do voto também se caracteriza por ser um dever sociopolítico, pois o cidadão tem o dever de manifestar sua vontade, por meio do voto, para a escolha de governantes em um regime representativo. (MORAES, 2010, p.232).
Pontes de Miranda também disserta sobre a natureza da obrigatoriedade do voto:
O direito de sufrágio posto que não seja mero reflexo das regras jurídicas constitucionais, como já se pretendeu, não é só direito individual no sentido em que é o habeas corpus e o mandado de segurança, pela colocação que se lhes deu na Constituição. É função pública, função de instrumentação do povo: donde ser direito e dever.
Observa-se, então, que o voto é um instituto misto, pois, de um lado o cidadão é obrigado a comparecer às eleições e, do outro, tem o direito de escolher seus representantes.
Infere-se, portanto, que a obrigação consiste no ato de comparecer às eleições e não no ato da escolha do representante, vez que o eleitor poderá votar em branco ou nulo.
Explica a doutrina pátria que a legitimidade do voto obrigatório está pautada na função social desse, pois é o momento em que o cidadão manifesta a sua vontade na democracia e, por conseguinte, tem o dever cívico de votar.
Acontece que o Brasil não é o mesmo da época que motivou a implantação do sistema de voto obrigatório (1932). A consciência política é diferente e o número de eleitores também. Essa mudança de cenário questiona se a imposição do Estado para com o cidadão, com relação ao voto, ainda é necessária.
Sobre essa mudança de cenário, aponta Portella (2008):
É certo que o Brasil de 1932, quando adotado o voto obrigatório entre nós, era um país eminentemente rural, com pequeno número de eleitores, muito diferente do país em que vivemos nos dias atuais. (PORTELA, 2008, p. 3).
Acrescenta Soares (2004):
[...] o Brasil tem hoje oitenta por cento de sua população morando nas cidades, sendo significativa sua presença nos grandes centros populacionais e regiões metropolitanas e, ainda, que o fácil acesso aos meios de comunicação de massa permite a todos ter acesso fácil a informações do mundo inteiro, influindo, assim, na consciência do cidadão [...] mormente sobre os aspectos de liberdade política, marginalidade social, racismo, comportamento sexual, violência urbana, consumo de drogas pelos jovens, desenvolvimento científico e tecnológico outros temas da atualidade. (SOARES, 2004, p. 9).
Ademais, a obrigatoriedade de votar só se faz necessária quando há uma imaturidade por parte do povo ou a necessidade de fortalecer ou se fazer firmar o modelo democrático do país. Foi o que aconteceu em 1932, quando da instituição do voto obrigatório no Brasil.
Nas palavras de Gomes (2008):
Argumenta-se, ainda, que a obrigatoriedade do voto faz que o cidadão se interesse mais pela vida politica, dela se aproximando, e que a “massa popular” não é preparada para o voto facultativo. (FERREIRA, 1989 apud Gomes, 2008, p. 38).
Todavia, hoje, diante da evolução do cenário do país, onde a maioria da população reside no meio urbano e tem acesso às informações por diversos meios, bem como diante da evolução da própria sociedade em si, como corpo social e consciente dos seus direitos e da necessidade da manifestação desses, principalmente no que diz respeito à escolha dos seus representantes, faz-se necessária essa análise: se o voto, um dos direitos políticos, deve ser exercido por ato de consciência dos cidadãos, de sua livre e pura liberdade, ou mediante a imposição do Estado, como é no momento atual.
Nesse sentido, Canotilho leciona sobre o princípio da liberdade de voto e explica:
O princípio da liberdade de voto significa garantir ao eleitor um voto formado sem qualquer coação física ou psicológica exterior de entidades públicas ou de entidades privadas. Deste princípio da liberdade de voto deriva a doutrina à ilegitimidade da imposição legal do voto obrigatório. A liberdade de voto abrange, assim, o se e o como: a liberdade de votar ou não votar e a liberdade no votar. Desta forma, independentemente de sua caracterização jurídica - direito de liberdade, direito subjetivo -, o direito de voto livre é mais extenso que a proteção do voto livre.
Por essa razão, é de suma importância analisar em qual estágio político o eleitor brasileiro se encontra no pleno exercício da democracia, para determinar se há, de fato, a necessidade do Estado impor esse exercício.
Caso contrário, manter a obrigatoriedade de votar acaba por atentar contra a liberdade do cidadão e a real função do Estado Democrático de Direito, principalmente no que tange às sanções previstas para aquele que não vota, pois, como um direito que é, se não exercido pelo seu titular, não pode gerar prejuízos de tão grande monta.
Impele mencionar que, embora previsto na Constituição Federal, nada impede que o instituto do voto obrigatório seja modificado por uma emenda, eis que não se trata de cláusula pétrea. A Carta Magna consagra como cláusula pétrea somente o voto direto, secreto, universal e periódico (art. 60, § 4º, II), mas nada menciona sobre voto obrigatório.
Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que, da análise do disposto na Constituição, bem como no atual Código Eleitoral, a doutrina pátria se apoia no entendimento de que o voto obrigatório tem natureza jurídica mista, na qual é um direito do cidadão, porém, também uma obrigação/dever desse para com o Estado.
Viu-se que, nem sempre, houve a obrigatoriedade de votar como imposição por parte do Estado, que surgiu em determinado momento histórico em que se fazia necessária a aproximação do eleitorado da vida política.
Entretanto, com o passar dos anos e a mudança do cenário nacional, que não é o mesmo quando da criação do instituto do voto obrigatório, faz-se necessária a análise dessa obrigatoriedade, vez que tal imposição acaba por invadir a liberdade individual do cidadão, que sofre sanções pelo simples fato de não exercer um direito seu.
REFERÊNCIAS
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Graduada em Direito pela UFMG em 2006. Pós-graduada e Analista em Direito no MPMG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SCHUWARTEN, Elaine Sabrina Moreira. O voto obrigatório: natureza jurídica e (des) necessidade no momento atual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 maio 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52955/o-voto-obrigatorio-natureza-juridica-e-des-necessidade-no-momento-atual. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
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