Resumo: O presente artigo versa acerca da possibilidade de incidência da teoria da internalização das externalidades negativas, típica do direito ambiental, à seara laboral. Realiza-se um apanhado conceitual dos principais institutos jurídicos afetos à questão; examinam-se as correntes doutrinárias sobre a responsabilização objetiva do empregador e, por fim, na esteira de uma dogmática constitucional emancipatória e pautando-se em uma interpretação sistemática, conclui-se pela ampla possibilidade de aplicação dos princípios de prevenção e precaução, poluidor-pagador e melhoria contínua, bem como da teoria da internalização das externalidades negativas à área trabalhista, abrindo caminho para se imputar aos infratores a responsabilidade civil objetiva e solidária, além de estipular a prioridade da reparação específica do dano.
Palavras-chave: Meio ambiente laboral. Responsabilidade objetiva do empregador. Prevenção e precaução. Poluidor-pagador. Melhoria contínua. Teoria da internalização das externalidades negativas.
Abstract: This article deals with the possibility of application the theory of internalization of negative externalities, typical of environmental law, to the labor field. It carries out a conceptual survey of the main legal institutes related to the issue, examines doctrines about the employer's objective liability. Finally, based in the modern approach, called emancipatory, of the constitutional dogma, and guided by a systematic interpretation, concluded by the wide variety of possibilities for the application of the principles of prevention and precaution, polluter-payer and continuous improvement, as well as the theory of internalization of negative externalities to the labor field.
Keywords: Working environment. Employer’s objective liability. Prevention and precaution. Polluter-payer principle. Continuous improvement. Theory of internalization of negative externalities.
Sumário: Introdução. 1 Meio ambiente laboral hígido, seguro e sadio: direito fundamental difuso. 2 Possibilidade da responsabilização objetiva do empregador nos casos de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais. 3 Internalização das externalidades negativas; princípio do poluidor-pagador, princípio do aprimoramento contínuo e princípios da prevenção e precaução. 4 O neoconstitucionalismo, a interpretação sistemática do ordenamento e a aplicabilidade de teoria da internalização das externalidades negativas ao direito laboral. 5 Consequências da aplicação da teoria da internalização das externalidades negativas no âmbito laboral. Conclusão. Referências.
1 Introdução
A Lei no 6.938/1981 traz a conceituação legal de meio ambiente, assim estabelecendo, em seu artigo 3º: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. (BRASIL, 1981)
Observa-se a opção do legislador pela adoção de um conceito aberto de meio ambiente, de modo a abarcar elementos naturais, artificias e culturais.
Nesse sentido leciona José Afonso da Silva:
O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico. O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. (SILVA, 2013)
O meio ambiente laboral insere-se, inegavelmente, nesse conceito globalizante, traduzindo-se, em apertada síntese, como o conjunto de condições físicas, químicas, biológicas, psíquico-mentais e interpessoais observadas no contexto em que as relações laborais ocorrem, cujo equilíbrio é imprescindível à capacidade laboral dos indivíduos que dele participam.
Conforme Amauri Mascaro Nascimento:
[...] o complexo máquina-trabalho; as edificações do estabelecimento, equipamentos de proteção individual, iluminação, conforto térmico, instalações elétricas, condições de salubridade ou insalubridade, de periculosidade ou não, meios de prevenção à fadiga, outras medidas de proteção ao trabalhador, jornadas de trabalho e horas extras, intervalos, descansos, férias, movimentação, armazenagem e manuseio de materiais que formam o conjunto de condições de trabalho. (NASCIMENTO, 1999, p. 583-587)
Na mesma linha, dispõe Celso Antônio Pacheco Fiorillo:
Meio ambiente do trabalho é o local onde o homem exerce suas atividades laborais, remuneradas ou não, cujo equilíbrio baseia-se na salubridade do meio e na ausência de fatores nocivos à incolumidade não apenas física, mas também psíquica dos trabalhadores, independentemente se homens ou mulheres, maiores ou menores, celetistas, autônomos ou servidores públicos. (FIORILLO, 2013)
1 MEIO AMBIENTE LABORAL HÍGIDO, SEGURO E SADIO: DIREITO FUNDAMENTAL DIFUSO
A Constituição da República (CRFB) de 1988 erigiu o meio ambiente equilibrado – incluso o laboral (Art.200, VIII) – à condição de direito fundamental difuso, Art.225), na esteira da normativa internacional acerca do tema (Item III da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU; Art.7º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas - ONU; Convenções no 155 e 161 da Organização Internacional do Trabalho - OIT; Art.7º do Protocolo de San Salvador, da Organização dos Estados Americanos - OEA; Diretiva 89/391/CE da Comunidade Econômica Europeia – CEE). (ONU, 1948; ONU, 1966 ; OIT, 1981; OIT, 1986; OEA, 1988; CEE, 1989)
Nesse sentido é a lição de Sebastião Geraldo de Oliveira:
O meio ambiente do trabalho está inserido no meio ambiente geral (Art.200, VIII, da Constituição da República), de modo que é impossível alcançar qualidade de vida sem ter qualidade de trabalho, nem se pode atingir meio ambiente equilibrado e sustentável ignorando o meio ambiente do trabalho. Dentro desse espírito, a Constituição de 1988 estabeleceu expressamente que a ordem econômica deve observar o princípio de defesa do meio ambiente (Art.170, inciso VI). (OLIVEIRA, 2011)
Já no plano infraconstitucional, a proteção ao meio ambiente laboral viabiliza-se especialmente por meio das regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (BRASIL, 1943), Art.154 e ss., das Normas Regulamentadoras (NR) do extinto Ministério do Trabalho e Emprego (BRASIL, 1978) e das leis federais no 6.938/1981, 8.080/1990 e 8.231/1991, que absorvem a definição da Organização Mundial da Saúde ao considerar “saúde” não somente ausência de enfermidades, mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e buscam assegurar ao obreiro a fruição do mais elevado nível de tal direito social (visão holística do homem-trabalhador).
Nessa senda, dada a dimensão objetiva e eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Art. 5º, §1º, CRFB/1988) e levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana - vetor axiológico de todo o ordenamento jurídico pátrio, é dever do empregador proporcionar um meio ambiente de trabalho sadio, hígido e seguro (Art.157, CLT), de modo a evitar a sinistralidade laboral e resguardar – acima dos seus interesses meramente privados – a incolumidade daqueles que lhes prestam serviços.
Havendo, portanto, adoecimento laboral ou acidentes de trabalho, deve ser o empregador responsabilizado.
2 A POSSIBILIDADE DA RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA DO EMPREGADOR NOS CASOS DE ACIDENTES DE TRABALHO E DOENÇAS OCUPACIONAIS
A Carta Magna, em seu Art.7º, XXVIII, assegura aos trabalhadores urbanos e rurais o direito ao “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”.
A doutrina trabalhista majoritária, levando em consideração a previsão in fine do supracitado dispositivo, defende que a CRFB/1988 adotou, como regra, a responsabilidade subjetiva do empregador.
Nesse contexto, durante muitos anos houve intensa celeuma doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de atribuição excepcional de responsabilidade objetiva ao empregador, com arrimo na previsão do parágrafo único do Art.927 do Código Civil (CC), que assim dispõe: “Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”(BRASIL, 2002)
Sobre o tema, verifica-se a existência de duas principais linhas argumentativas.
Para uma primeira corrente, denominada de “negativista” por Fernando José Cunha Belfort (2010), a teoria, se bem que aplicável ao Direito Civil, não teria campo para atuação no Direito do Trabalho, tendo em vista que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, XXVIII, somente prevê a indenização quando o acidente ocorre por dolo ou culpa do empregador. Defende esta corrente que o Código Civil (lei ordinária) não pode contrariar dispositivo expresso da Constituição com relação à responsabilidade proveniente do acidente do trabalho.
Contudo, uma segunda linha de pensamento, chamada “positivista”, sustenta a plena aplicação do instituto ao Direito do Trabalho, uma vez que a própria Constituição prevê, em seu artigo 7º, a inclusão de outros direitos além daqueles nele relacionados, quando em benefício do trabalhador, positivando apenas um “piso” de direitos, e não um “teto”: “Art. 7º. São direitos dos trabalhadores (...) além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...)” (grifo nosso).
Nesse passo, não haveria que se falar em conflito entre o Art.927, parágrafo único, do Código Civil e o Art.7º, XXVIII da CRFB/1988, uma vez que o próprio dispositivo constitucional permite que se incluam no rol de direitos dos trabalhadores “outros que visem à melhoria de sua condição social”, expressão que, segundo Arnaldo Sussekind (1999), não só fundamenta a vigência de direitos não previstos no Art.7º da CRFB/1988, como também “justifica a instituição de normas, seja por lei, seja por convenção ou acordo coletivo, seja, enfim, por laudo arbitral ou sentença normativa”.
Noutro giro, ostenta essa expressão uma dimensão mandamental, pois “estabelece um objetivo a ser perseguido pelo Poder Público, que é a melhoria da condição social do trabalhador”. (LAURINO, 2003)
Com efeito, o caput do Art.7º da Constituição Cidadã introduz em nosso ordenamento jurídico o princípio da progressividade (já positivado no Art.26 do Pacto San Jose da Costa Rica), em relação ao qual enuncia Daniela Muradas:
[...] o princípio da progressividade dos direitos sociais, concebido no domínio teórico do Direito Internacional dos direitos humanos, enuncia o compromisso internacional dos Estados promoverem, no máximo de seus recursos disponíveis, a proteção da pessoa humana em sua dimensão econômica, social e cultural. Pelo Princípio da progressividade dos direitos humanos de caráter econômico, social e cultura, vincula-se a atividade legiferante nacional ao progresso ininterrupto das condições de proteção à pessoa humana na sua dimensão social, sendo juridicamente inviável a eliminação dos padrões sociais já estabelecidos, sem a correspondente criação de um conjunto normativo compensatório e qualitativamente mais vantajoso. (MURADAS, 2010)
Para Antônio Elias de Queiroga e Carlos Roberto Gonçalves, há necessidade de aprimoramento e evolução do conceito de responsabilidade civil, devendo o Art.7º, XXVIII, da CRFB/1988, ser interpretado levando-se em conta a finalidade e a razão de ser do ordenamento jurídico como um todo. (GONÇAVES, 2002; QUEIROGA, 2003)
Jorge Luiz Souto Maior arremata:
A obrigação de indenizar por acidente de trabalho não depende de prova de culpa. A responsabilidade é objetiva, conforme prevê o artigo 927 do Código Civil. A previsão constitucional, por óbvio, não limita esse direito do acidentado, na medida em que a norma constitucional é de caráter mínimo, podendo, portanto, ser ampliada pela lei infraconstitucional, como se dá na presente situação. (MAIOR, 2005)
Na mesma toada, na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, em 2006, foi aprovado o Enunciado 377, com a seguinte disposição: “o Art.7º, XXVIII da Constituição Federal não é impedimento para a aplicação do disposto no Art.927, parágrafo único, do Código Civil quando se tratar de atividade de risco”. (BRASIL, 2006)
Também o Enunciado 37 da I Jornada de Direito do Trabalho realizada em Brasília em 2007 conclui:
A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade (BRASIL, 2007).
Finalmente, em 2019, a questão restou pacificada pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, que firmou entendimento no sentido de que é constitucional a imputação da responsabilidade civil objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho em atividades de risco.
Na oportunidade, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral:
O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade. (RE 828040, BRASIL, 2019)
3 INTERNALIZAÇÃO DAS EXTERNALIDADES NEGATIVAS; PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR; PRINCÍPIO DO APRIMORAMENTO CONTÍNUO E PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO
Enuncia o Princípio 16 da Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ONU, 1992):
As autoridades nacionais deveriam procurar fomentar a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em conta o critério de que o causador da contaminação deveria, por princípio, arcar com os seus respectivos custos de reabilitação, considerando o interesse público, e sem distorcer o comércio e as inversões internacionais.
O princípio supratranscrito positiva a teoria da internalização das externalidades negativas, que se baseia na premissa de que os custos externos que acompanham o processo produtivo - a exemplo da poluição - devem ser internalizados, ou seja, assumidos por aqueles que auferem lucro com a exploração da atividade. É dizer: os agentes econômicos devem levar em conta os custos externos de sua produção.
Combate-se, pois, a ideia de “privatização dos lucros e socialização dos riscos”, de modo a se evitar que os efeitos negativos da produção sejam suportados pela coletividade e que o produtor receba somente o lucro.
A internalização das externalidades negativas é intrinsecamente ligada ao princípio do poluidor-pagador, que possui assento constitucional no Art.225, §3º, segundo o qual: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”, sendo previsto, outrossim, na Lei da Política Nacional de Meio Ambiente (6.938/1981), que estabelece como um de seus fins a “imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados” e complementa dispondo ser “o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade” (Art.4º, VII c/c Art.14, §1º).
O princípio do poluidor-pagador visa, assim, imputar ao poluidor os custos e riscos da atividade poluente: quem polui responde pelos prejuízos.
Nessa mesma toada despontam a prevenção e a precaução.
Prevista implicitamente no Art.225 da CRFB/1988, a prevenção veicula a ideia de que, em havendo base científica para prever os futuros danos ambientais consequentes do desenvolvimento de determinada atividade lesiva ao meio ambiente, ao empreendedor devem ser impostos limites, condicionantes e restrições (por exemplo, de licenciamento ambiental), de forma a mitigar ou mesmo afastar os prejuízos.
Há, aqui, um risco certo, concreto, conhecido.
Destaca-se, sobre o tema, o Princípio 17 da Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ONU, 1992):
Princípio 17. A avaliação de impacto ambiental, como instrumento nacional, deve ser empreendida para atividades planejadas que possam vir a ter impacto negativo considerável sobre o meio ambiente, e que dependam de uma decisão da autoridade nacional competente.
Na mesma linha, enuncia o Art.4º, item 2, da Convenção 155 da OIT (1981):
PARTE II. PRINCÍPIO DE UMA POLÍTICA NACIONAL
Art. 4 — 1. Todo Membro deverá, em consulta com as organizações mais representativas de empregadores e de trabalhadores, e levando em conta as condições e as práticas nacionais, formular, pôr em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio-ambiente de trabalho.
2. Essa política terá como objetivo prevenir os acidentes e os danos à saúde que forem conseqüência do trabalho tenham relação com a atividade de trabalho, ou se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio-ambiente de trabalho.
Também a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente faz alusão à manutenção e proteção ambiental (Art.2º, Lei 6.938/1981) e a Carta Fundamental, em seu Art.225, §1º, IV, determina a obrigatoriedade de estudo prévio de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação.
A precaução, por outro lado, antecipa-se ao risco, trabalhando num juízo de probabilidade, no qual incide a máxima in dubio pro natura ou in dubio pro salute.
Dessa forma, se determinado empreendimento, dentro de uma base científica razoável de probabilidade, puder gerar danos ambientais, ainda que não exista certeza em relação a seus efeitos e sua extensão, o empreendedor deverá ser compelido a adotar medidas de precaução para reduzir ou elidir tais riscos.
Esse princípio se volta ao risco incerto, desconhecido ou abstrato.
Consoante magistério de Cristiane Derani:
O princípio da precaução está ligado aos conceitos de afastamento de perigo e segurança das gerações futuras, como também de sustentabilidade ambiental das atividades humanas. Este princípio é a tradução da busca da proteção da existência humana, seja pela proteção de seu ambiente como pelo asseguramento da integridade da vida humana. A partir desta premissa, deve-se também considerar não só o risco iminente de uma determinada atividade como também os riscos futuros decorrentes de empreendimentos humanos, os quais nossa compreensão e o atual estágio de desenvolvimento da ciência jamais conseguem captar em toda densidade. (DERANI, 2001)
Encontra-se ainda previsto de forma expressa no Princípio 15 da Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento:
De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com as suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (ONU, 1992).
Por fim, tais princípios encontram íntima ligação também com o chamado “aprimoramento contínuo” ou “melhoria contínua”, que se encontra implícito na mesma Declaração do Rio e na leitura conjunta dos incisos XXII e XXIII do Art.7º da CRFB/1988, além de estar expresso no Art.6º do Anexo XIII-A (Benzeno) da NR 15.
6. Valor de Referência Tecnológico - VRT se refere à concentração de benzeno no ar considerada exeqüível do ponto de vista técnico, definido em processo de negociação tripartite. O VRT deve ser considerado como referência para os programas de melhoria contínua das condições dos ambientes de trabalho. O cumprimento do VRT é obrigatório e não exclui risco à saúde. (BRASIL, 1978)
A melhoria contínua, na acepção de Guilherme Guimarães Feliciano é “um desdobramento específico do princípio da prevenção” que “indica que a exploração de uma atividade acarretadora de riscos para a integridade física e psíquica dos trabalhadores deve acompanhar a evolução das técnicas e dos métodos voltados para a redução ou para a neutralização daquelas ameaças” (FELICIANO, 2005.)
O autor cuida, ainda, de exemplificar uma aplicação do princípio em questão: diante da disponibilização, no mercado, de um novo equipamento de proteção coletiva, os empregadores devem envidar todos os esforços para adquiri-los e implantá-los em suas unidades produtivas.
Preconiza-se, portanto, um esforço contínuo das empresas no sentido de melhoria das condições laboroambientais.
4 O NEOCONSTITUCIONALISMO, A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO ORDENAMENTO E A APLICABILIDADE DE TEORIA DA INTERNALIZAÇÃO DAS EXTERNALIDADES NEGATIVAS AO DIREITO LABORAL
As constituições da chamada pós-modernidade, assim entendida como o momento histórico-filosófico posterior à 2ª Guerra Mundial, marcado pelos processos de redemocratização dos países ocidentais, possuem o traço comum de, em um resgate da moral Kantiana, reaproximar o Direito da ideia de Justiça, afastando-se da razão prática iluminista dominante até então, que se mostrou incapaz de impedir as atrocidades cometidas pelo nazifascismo.
Destarte, plasmando a ideia de dignidade da pessoa humana no centro do ordenamento jurídico e sob forte influência da Teoria Crítica (Escola de Frankfurt), o chamado neoconstitucionalismo propõe uma rematerialização das constituições, caracterizada pelo reconhecimento da normatividade dos princípios, previsão de amplos catálogos de direitos fundamentais, contemplação de regras programáticas e enaltecimento da superioridade e da força normativa da constituição.
Ensina Barroso:
A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2a. Grande Guerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. A aproximação das idéias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático. Seria mau investimento de tempo e energia especular sobre sutilezas semânticas na matéria. (BARROSO, 2005)
Segundo o autor, a principal referência no desenvolvimento do novo direito constitucional é a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã), de 1949, e, especialmente, a criação do Tribunal Constitucional Federal, instalado em 1951. A partir daí teve início uma fecunda produção teórica e jurisprudencial, responsável pela ascensão científica do direito constitucional no âmbito dos países de tradição romano-germânica. A segunda referência de destaque é a da Constituição da Itália, de 1947, e a subseqüente instalação da Corte Constitucional, em 1956. Ao longo da década de 70, a redemocratização e a reconstitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978) agregaram valor e volume ao debate sobre o novo direito constitucional.
Nesse contexto, desenvolve-se uma nova dogmática constitucional, que busca potencializar, principalmente, a normatividade dos capítulos condensadores de direitos sociais. A interpretação, portanto, deve ser aberta, sistemática e voltada à efetividade.
Assim, a interpenetração de disciplinas jurídicas coaduna-se com essa nova dogmática e mostra-se como algo desejável com vistas a concretizar os objetivos fundamentais definidos na Constituição e a densificar a vontade constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Do cotejo, portanto, dos princípios de prevenção e precaução, poluidor-pagador e melhoria contínua conclui-se que o legislador objetivou firmar uma nova postura em matéria de meio ambiente (incluso o laboral), sopesando a exploração econômica dos recursos naturais (e humanos) com outros valores fundamentais, a exemplo da saúde dos cidadãos (e do homem-trabalhador), o direito à qualidade de vida e o resguardo das expectativas das futuras gerações.
Nessa linha, ensina Cristiane Derani (2007):
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito à vida e á manutenção das bases que a sustentam, constitucionalmente protegidos. Este bem não pode ser desmembrado em parcelas individuais. Seu desfrute é necessariamente comunitário e reverte ao bem-estar individual. Já se disse que o meio ambiente, enquanto bem jurídico, apresenta-se como uma garantia das condições básicas necessárias para a manutenção da vida em geral e da humana em particular.
Destaca-se da garantia fundamental à vida exposta nos primórdios da construção de direitos fundamentais, porque não é simples garantia à vida, mas este direito fundamental é uma conquista prática pela conformação das atividades sociais, que devem garantir a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, abster-se de sua deterioração e construir sua melhoria integral das condições de vida da sociedade.
Logo, os princípios em referência, que, juntamente à teoria da internalização das externalidades negativas, formam um conjunto garantidor da incolumidade do direito fundamental ao meio ambiente de trabalho sadio, mostram-se plenamente aplicáveis ao direito do trabalho, encontrando amparo, inclusive, no rol dos direitos fundamentais trabalhistas da CRFB/1988, Art.7º, XXII, XXIII e XXVIII.
5 CONSEQUÊNCIAS DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA INTERNALIZAÇÃO DAS EXTERNALIDADES NEGATIVAS NO ÂMBITO LABORAL
Admitindo-se a incidência da teoria na seara laboral, insta, por fim, delinear suas principais consequências, a saber, a) a responsabilidade civil objetiva; b) a prioridade da reparação específica do dano ambiental; c) a responsabilidade solidária.
No que tange ao primeiro aspecto, devem ser relembradas as questões acima abordadas, no sentido de que, em se tratando o caput do Art.7º da CRFB/1988 de uma garantia mínima aos trabalhadores, há espaço para a incidência de quaisquer outras, desde que benéficas.
Nesse passo, a responsabilidade objetiva mostra-se condizente com a tutela que o direito fundamental ao meio ambiente de trabalho merece, cumprindo a função de protegê-lo de forma adequada e suficiente. Interpretação em contrário não seria apta a garantir a incolumidade do direito, pelo que incidiria na proibição da proteção deficiente, vertente positiva da máxima da proporcionalidade.
Cite-se, por exemplo, os trabalhadores que laboram em ambiente insalubre ou perigoso, percebendo o respectivo adicional. Não há dúvidas de que a atividade, por sua natureza, implica “risco para os direitos de outrem”, na esteira do que preceitua o Art.927, parágrafo único do CC. Inegável, pois, a incidência da responsabilidade objetiva.
Noutro giro, não raro observa-se, como externalidade negativa laboral, a degradação socioambiental, decorrente de atividades, por exemplo, desenvolvidas por meio de cadeias produtivas precarizadas (como a indústria têxtil informal de SP – sistema de sweating shops) ou que envolvam fluxos migratórios desordenados (como a construção de grandes obras públicas em locais ermos – o aeroporto de Guarulhos gerou a favela de Jardim Cumbica).
Em casos como os acima citados, a teoria da internalização das externalidades negativas possibilita a responsabilização dos produtores, detentores do poder econômico relevante. Na indústria têxtil acima citada, por exemplo, da grande marca que absorve a produção dessas pequenas oficinas: o passivo ambiental é incluído dentro da cadeia que se beneficia da atividade.
Com efeito, a “favelização” causada pelas atividades como as acima citadas é englobada pelo conceito de meio ambiente (que abrange o meio ambiente artificial, social e urbano), e se subsome à ideia de degradação (Art.3º, II, da Lei 6.938/1981), de sorte que seu impacto socioambiental traduz a noção de “poluição” (Art.3º, III, da mesma lei), sendo considerado “poluidor” (Art.3º, IV), destarte, aquele que desenvolve a atividade geradora de tal subproduto indesejado.
Quanto ao segundo aspecto, “prioridade da reparação específica do dano”, necessário registrar que a reparação compreende duas formas: o retorno ao status quo ante (Art.225, §2º, da CRFB/1988) e a compensação pecuniária.
Uma vez que o direito ao meio ambiente hígido e saudável se cuida de direito fundamental, deve-se priorizar a recomposição do dano, e, apenas se impossível, fixar-se uma indenização compensatória.
Por fim, no tocante ao terceiro aspecto, “responsabilidade solidária”, incide a previsão do inciso IV do Art.3º da Lei 6.938/1981, segundo o qual considera-se poluidor toda “pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. Na mesma toada, o Art.942 do CC assim dispõe: “os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação”.
É dizer: todo aquele que aufere o bônus, deverá também arcar com o ônus dali decorrente (risco-proveito).
CONCLUSÃO
A Constituição da República de 1988 erigiu o meio ambiente equilibrado – incluso o laboral (Art.200, VIII) – à condição de direito fundamental difuso (Art.225), buscando, ainda, concretizar os princípios da precaução e prevenção, do poluidor-pagador e do aprimoramento contínuo.
O caput do Art.7º da Carta Fundamental prevê um piso de garantias laborais mínimas, ao tempo em que estipula uma cláusula de desenvolvimento progressivo, de modo a assegurar, como objetivo a ser perseguido pelo Poder Público e pelos empregadores, a melhoria da condição social do trabalhador.
Desse modo, tratando-se de caso envolvendo o meio ambiente laboral, a saúde e a segurança do trabalhador, defende-se a aplicação do Art.225, §3º, da CRFB/1988, do Art.14, §1º, da Lei 6.938/1981 e do Princípio 16 da Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), de modo a possibilitar a incidência da teoria da internalização das externalidades negativas à seara laboral e, em consequência, imputar aos infratores a responsabilidade civil objetiva e solidária e estipular a prioridade da reparação específica do dano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011). Especialização em Direito e Processo do Trabalho (2013). Ex-Analista Judiciário, Área Judiciária do TRE-MG (2014-2016). Ex-Analista Judiciário, Área Judiciária do TRF da 2a. Região (2016-2017). Analista Judiciário, Área Judiciária do TRT da 17a. Região (a partir de 2017).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NAVES, FERNANDA BARRETO. A aplicação da teoria da internalização das externalidades negativas no caso de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jul 2020, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54926/a-aplicao-da-teoria-da-internalizao-das-externalidades-negativas-no-caso-de-acidentes-do-trabalho-e-doenas-ocupacionais. Acesso em: 23 dez 2024.
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