LISSA APARECIDA MARQUES STAINO[1]
(coautora)
NATÁLIA SILVA TEIXEIRA RODRIGUES DE OLIVEIRA.
(orientadora)
Resumo: O presente artigo analisa a temática do tratamento penal conferido ao psicopata, na doutrina e na jurisprudência, em face do Código Penal Brasileiro. Desta forma, será demonstrado o conceito de psicopatia, tanto sob o aspecto médico quanto jurídico, o tema no contexto histórico, relatando alguns tipos de transtornos de personalidade, no contexto da criminologia e dos elementos dogmático-penais. No escopo do trabalho, também será abordado o tema em outros ordenamentos jurídico-penais, utilizando-se do método do direito comparado. Por fim, será realizada uma reflexão acerca de uma possível readequação do tratamento penal conferido aos psicopatas, qual seja, a semi-imputabilidade, prevista no art. 26, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro.
Palavras-chave: psicopatia, transtorno, comportamento, tratamento penal
Abstract: This article analyzes the theme of criminal treatment given to psychopaths, in doctrine and jurisprudence, in the face of the Brazilian Penal Code. In this way, the concept of psychopathy will be demonstrated, both under the medical and legal aspects, the theme in the historical context, reporting some types of personality disorders, in the context of criminology and dogmatic-criminal elements. In the scope of the work, the topic will also be addressed in other legal and penal systems, using the method of comparative law. Finally, there will be a reflection on a possible readjustment of the penal treatment given to psychopaths, that is, the semi-imputability, provided for in art. 26, sole paragraph, of the Brazilian Penal Code.
Key words: psychopathy, disorder, behavior, penal treatment
Sumário: 1 Introdução. 2 A psicopatia na medicina: conceito e aspectos históricos. 3 A psicopatia no Direito Penal. 3.1 O psicopata à luz do art. 26, do Código Penal Brasileiro: imputável ou inimputável. 3.2 O tema no direito comparado. 4 O tema na jurisprudência: pena ou medida de segurança? 5 Considerações finais. 6 Referências
1 Introdução
A psiquiatria e a ciência são capazes de estabelecer um perfil da psicopatia, justificando sua potencialidade criminosa[2]. Já no âmbito do direito penal, a psicopatia encontra-se, por vezes sim, por vezes não, dentre as hipóteses normativas que excluem a imputabilidade, ou seja, em determinados contextos, podem ser considerados até mesmo inimputáveis.
Assim, apesar dos psicopatas, que cometem fatos definidos como crimes, poderem ser encaixados dentre aquelas hipóteses de inimputabilidade, para a psicanálise, todo agir quer dizer algo e, por isso, todo sujeito, independentemente de sua estrutura clínica, deve ser responsabilizados por seus atos. Ainda que ele não entenda o caráter ilícito do ato praticado, terá ‘’algo a dizer’’ em face do cometimento do delito, tendo em vista que tem conhecimento do caráter ilícito de sua conduta, sendo questionável, pois, a exclusão das consequências penais dela decorrentes.
É conhecida a existência de uma série de casos concretos famosos na história e na mídia, resultado de fatos tidos como criminosos, praticados por indivíduos frios, calculistas, sedutores, dissimulados, desprovidos de emoções, muitas vezes consideradas pessoas fora de qualquer suspeita, mas que, no entanto, são psicopatas.
Diante desse contexto, o presente artigo tem, como objetivo, refletir sobre essa ‟(in)consciência” do indivíduo, considerado psicopata, acerca da conduta cometida, ou seja, compreender a que limite os portadores de psicopatias são realmente incapazes de compreender o caráter ilícito de seu ato ou de se conduzir de acordo com esse entendimento.
Além disso, o presente estudo pretende “montar” um perfil do psicopata diante de fatos considerados criminosos, cometidos de forma reiterada e cruel, e, por fim, questionar a posição da legislação penal brasileira no que concerne à (in)imputabilidade de tais indivíduos.
A presente questão mostra-se relevante, pois, na sociedade contemporânea, a cada dia que passa, aumenta o número de casos “bárbaros”, com alto grau de manipulação e frieza, cometidos por agentes considerados psicopatas[3]. De acordo com a psiquiatra e escritora Ana Beatriz Barbosa Silva, de cada 25 pessoas no Brasil, uma é psicopata, somando ao todo um percentual de 4% da população mundial[4].
Para agravar a situação, demonstrar-se-á que esses indivíduos, em sua maioria, não estão “acautelados” em presídios, mas transitam livremente na sociedade e, em razão de uma possível impunidade, as pessoas podem se tornar vulneráveis a eles.
Diante a reiteração de condutas tidas como criminosas, cometidas por indivíduos portadores de psicopatia, é de especial relevância a análise e a reflexão sobre o perfil e a potencialidade dos psicopatas diante de sua (ir)responsabilidade penal, evidenciando-se o seguinte problema: O direito penal brasileiro deveria alterar o tratamento legal conferido ao psicopata em razão da prática de condutas tidas como criminosas?
Tendo em vista o referido problema, a hipótese metodológica vincula-se à necessidade de se alterar o tratamento penal conferido aos psicopatas no ordenamento jurídico-penal brasileiro, já que, neste, muitas vezes, eles são considerados inimputáveis, nos termos do art. 26, caput, do Código Penal, para serem considerados imputáveis e, portanto, responsáveis penalmente.
Para viabilizar a presente reflexão, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, a saber: leitura de livros, revistas científicas, reportagens e jornais, pesquisas na internet, etc., que dará suporte para esta pesquisa. Salienta-se a importância da realização de revisão da literatura em torno dos conceitos de ‘’ psicopatologia’’ e ‘’imputabilidade/inimputabilidade’’.
Num segundo momento, estabelecer-se-á uma correlação entre a doutrina e a jurisprudência acerca do tema, analisando as diversas correntes, lançando mão, inclusive, do direito comparado, de modo a melhor fundamentar o artigo.
Ressalta-se que o direito penal brasileiro parece ainda não estar suficientemente preparado para analisar as particularidades de tais casos, haja visto que os estudos e os métodos aplicáveis aos psicopatas são insuficientes, urgindo que o legislador busque se adequar aos avanços que a psiquiatria tem alcançado na definição do perfil da psicopatologia.
2 A psicopatia na Medicina: conceito e aspectos históricos
Conceituar o que é um psicopata e a psicopatia são tarefas complexas, visto que esse assunto foi e ainda é tratado de formas muito diferentes tanto na medicina, quanto pela sociedade. Algumas pessoas não sabem o real significado do que é uma ‘’pessoa louca’’ e enxergam psicopatas como loucos também. Influenciam no conceito desses termos o local, a legislação respectiva, a tradição científica, entre outros aspectos, portanto, não há uma definição padrão.
Atualmente, "psicopatia" (ou "sociopatia") é sinônimo de "personalidade antissocial", que denota uma disposição permanente do caráter no sentido da agressividade, da crueldade e da malignidade, determinando inexoravelmente o mal de outrem.
A partir de 1994, com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM5) criado pela American Psychological Association (APA), a psicopatia passou a ser conceituada pelo termo “Transtorno de Personalidade Antissocial”.
Esse transtorno trata-se de uma doença, que tem, como principal característica, um padrão difuso de indiferença e violação dos direitos das outras pessoas, o qual surge na infância ou no início da adolescência, perdurando pela vida adulta (APA, 2014).
Para ser diagnosticado com tal transtorno, o indivíduo deve ter, no mínimo, 18 anos e deve ter apresentado alguns sintomas do transtorno de conduta antes dos 15 anos de idade. Esse transtorno de conduta envolve um padrão repetitivo e persistente de comportamento, no qual as regras básicas inerentes à idade são violadas, bem como direitos básicos de outros cidadãos. Comportamentos específicos desse transtorno de conduta se encaixam em uma das quatro categorias: agressão a pessoas e animais, destruição de propriedade, fraude ou roubo ou grave violação de regras (APA, 2014).
No citado transtorno de personalidade, como disposto no Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais (APA, 2014), o indivíduo apresenta três ou mais dos comportamentos listados a seguir:
1. Fracasso em ajustar-se às normas sociais relativas a comportamentos legais, conforme indicado pela repetição de atos que constituem motivos de detenção.
2. Tendência à falsidade, conforme indicado por mentiras repetidas, uso de nomes falsos ou de trapaça para ganho ou prazer pessoal.
3. Impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro.
4. Irritabilidade e agressividade, conforme indicado por repetidas lutas corporais ou agressões físicas.
5. Descaso pela segurança de si ou de outros.
6. Irresponsabilidade reiterada, conforme indicado por falha repetida em manter uma conduta consistente no trabalho ou honrar obrigações financeiras.
7. Ausência de remorso, conforme indicado pela indiferença ou racionalização em relação a ter ferido, maltratado ou roubado outras pessoas.
Dessa forma, podemos apontar que esses indivíduos possuem pré-disposição para cometer condutas tipificadas como crime.
Outras características que costumam ser presentes nesses indivíduos são a falta de empatia, falta de sensibilidade, arrogância, autoconfiança, charme desinibido e superficial, além de apresentar disforia, incapacidade de tolerar e humor deprimido. Podem, ainda, apresentar outros transtornos, tais como, transtorno de ansiedade, transtorno depressivo, transtorno por uso de substância, entre outros (APA, 2014).
No passado, o termo “psicopatia” foi utilizado para indicar os comportamentos que eram vistos pela sociedade como moralmente repugnantes. Essa discussão sobre psicopatia começou quando alguns filósofos e psiquiatras passaram a questionar se os indivíduos praticantes de atitudes imorais seriam capazes de, no momento da conduta, entender seus atos.
O referido termo originou-se no grego e significa “psiquicamente doente”. Foi nos séculos XIX e XX que o tema ganhou relevância e os estudos tiveram consideráveis avanços. Tendo em vista, as pesquisas clínicas desenvolvidas, mais precisamente no campo da neurobiologia, sobretudo referente à personalidade, permitiu-se detectar alguns pontos que possam denunciar um traço psicopático.
Entretanto, somente essa análise não é suficiente para diagnosticá-lo, mas, a partir dela, somada a um estudo antropológico, sociológico e, até mesmo, filosófico, é possível estabelecer uma base para o que se entende por “psicopatia”.
Com o intuito de demonstrar a evolução histórica do termo, destacam-se as seguintes visões e estudiosos[5]:
- Girolano Cardamo (1501-1596), professor de medicina da Universidade de Pavia, deu início à identificação do traço psicopata. Ele fala em "improbidade", o que não alcançava a insanidade total, porque as pessoas que sofriam disso mantinham a aptidão para dirigir sua vontade.
- Pablo Zacchia (1584-1654), considerado por muitos como o fundador da Psiquiatria Médico-Legal, descreve, em “Questões Médico-Legais”, importantes concepções que logo conceituariam as "psicopatias" e os "transtornos de personalidade".
- Philippe Pinel que, em 1801, publica o “Tratado Médico-Filosófico” sobre a alienação mental e descreve as manias que todas as pessoas possuem, mas não criam a face ao delírio. Pinel chamava de mania os estados de furor persistentes e comportamento florido, distinto do conceito atual de mania (BERRIOS, 1993a, p. 98).
- James Cowles Prichard que, em 1835, publica sua obra Treatise on insanity and other disorders affecting the mind, que tratava da “insanidade moral”. A partir dessa obra, o historiador G. Berrios (1993c, p. 102) discute o referido conceito como o equivalente ao atual conceito de psicopatia.
- Kraepelin, quando faz a classificação das doenças mentais em 1904, usa o termo “personalidade psicopática” para se referir às pessoas que não são neuróticos nem psicóticos, não estão incluídas no esquema de mania-depressão, mas que se mantêm em choque contundente com os parâmetros sociais vigentes. Incluiu, aí, os criminosos congênitos, a homossexualidade, os estados obsessivos, a loucura impulsiva, os inconstantes, os embusteiros e farsantes e os querelantes (SCHNEIDER, 1980b, p. 59). Para ele, as personalidades psicopáticas são formas frustras de psicose, classificadas segundo um critério fundamentalmente genético e considera que seus defeitos se limitam essencialmente à vida afetiva e à vontade.
- Schneider que, em 1923, elabora um conceito e classificação do que é, na sua concepção, a “personalidade psicopática”. Schneider (1980c, p. 64) descarta, no conjunto classificatório da personalidade atributos, tais como, a inteligência, os instintos e sentimentos corporais e valoriza como elementos distintivos o conjunto dos sentimentos e valores, das tendências e vontades. Para Kurt Schneider, as Personalidades psicopáticas formam um subtipo daquilo que classificava como personalidades anormais, de acordo com o critério estatístico e da particularidade de sofrerem por sua anormalidade e/ou fazerem outros sofrer (SCHNEIDER, 1980d, p. 65). A classificação de “personalidade psicopática” não pode ser reconhecida ou aceita pelo próprio paciente e, às vezes, nem mesmo por algum grupo social, pois, a característica de fazer sofrer os outros ou a sociedade é demasiadamente relativo e subjetiva: um revolucionário, por exemplo, é um psicopata para alguns e um herói para outros.
- Cleckley escreveu, em 1941, um livro chamado "A máscara da saúde", que se referia a esse tipo de pessoas. Em 1964, descreveu as características mais frequentes do que hoje chamamos de “psicopatas”, estabelecendo alguns critérios para o diagnóstico, tendo sido complementado por Hare, Hart e Harpur, em 1976.
Somando-se as duas listas podemos relacionar as seguintes características (BRUNO, 1996, p. 152):
Problemas de conduta na infância; Inexistência de alucinações e delírio; Ausência de manifestações neuróticas; Impulsividade e ausência de autocontrole; Irresponsabilidade; Encanto superficial, notável inteligência e loquacidade; Egocentrismo patológico, autovalorização e arrogância; Incapacidade de amar; Grande pobreza de relações afetivas básicas; Vida sexual impessoal, trivial e pouco integrada; Falta de sentimentos de culpa e de vergonha; Indigno de confiança, falta de empatia nas relações pessoais; Manipulação do outro com recursos enganosos; Mentiras e insinceridade; Perda específica da intuição; Incapacidade para seguir qualquer plano de vida; Conduta antissocial sem aparente arrependimento; Ameaças de suicídio raramente cumpridas e Falta de capacidade para aprender com a experiência vivida.
Portanto, foi-se definindo, aos longos dos anos, os traços característicos da psicopatia com termos como: perturbações afetivas, perturbações do instinto, deficiência superegóica, tendência a viver só o presente, baixa tolerância a frustrações. Esse transtorno apresenta anomalias do caráter e da personalidade, ressaltando sempre a impulsividade e a propensão para condutas anti-sociais (KOLB, 1976, p. 41).
Com base nos trechos das obras destacadas acima, pode-se dizer que a psicopatia não é, portanto, exógena, sendo sua essência constitucional e inata, no sentido de ser pré-existente e emancipada das vivências. A conduta do psicopata nem sempre é toda psicopática, existindo momentos, fases e circunstâncias de condutas adaptadas, as quais permitem que ele passe despercebido em muitas áreas do desempenho social, por seus atos possuírem uma margem de ‘’normalidade’’ emocional e comportamental.
Assim, pode-se ‘’caracterizar’’ o indivíduo chamado “psicopata”, apresentando as características inerentes ao seu transtorno, e se “construir”, por meio das visões históricas dos estudiosos citados, um paralelo entre a forma como o transtorno de comportamento antissocial era visto na antiguidade e como é visto hoje, com o intuito de iniciar o estudo acerca da (in)imputabilidade do indivíduo psicopata em consonância com o Direito Penal Brasileiro.
3 A psicopatia no Direito Penal
3.1 O psicopata à luz do art. 26, do Código Penal Brasileiro: imputável ou inimputável?
Antes de enfrentar o problema proposto acima, importante esclarecer os conceitos de imputabilidade e inimputabilidade.
A imputabilidade é a condição do indivíduo considerado responsável penalmente, ou seja, que detém a capacidade de realizar uma conduta descrita como típica na lei, com pleno discernimento para compreender o seu caráter ilícito e de se portar de acordo com esse entendimento:
A imputabilidade é a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. O agente deve ter condições físicas, psicológicas, morais e mentais de saber que está realizando um ilícito penal. Mas não é só. Além dessa capacidade plena de entendimento, deve ter totais condições de controle sobre sua vontade. Em outras palavras, imputável é não apenas aquele que tem capacidade de intelecção sobre o significado de sua conduta, mas também de comando da própria vontade, de acordo com esse entendimento. (Capez, 2016, p. 332-3)
Já a inimputabilidade, conforme esclarece Damásio E. de Jesus (1999, p. 499), é o contrário, a ausência de capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou, ainda que o compreenda, não consegue se porta de acordo com essa compreensão:
não havendo a imputabilidade, primeiro elemento da culpabilidade, não há culpabilidade e, em consequência, não há pena. Assim, em caso de inimputabilidade, o agente que praticou o fato típico e antijurídico deve ser absolvido, aplicando-se medida de segurança.
O Código Penal Brasileiro, em seu art. 26, caput, adota o sistema biopsicológico (ou biopsicológico normativo ou misto), que se traduz numa junção dos sistemas biológicos (etiológico) e psicológico.
Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Assim, considera-se inimputável aquele que, em razão de uma causa biológica (= doença mental ou desenvolvimento mental retardado ou incompleto), é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito da conduta praticada ou de portar-se de acordo com esse entendimento, vale dizer, uma consequência psicológica (= ausência total de discernimento).
No sistema biopsicológico, para se concluir pela inimputabilidade ou não do agente, faz-se uma investigação da capacidade mental do indivíduo ao tempo do cometimento da conduta típica, verificando se entendia o caráter ilícito do fato.
Com isso, se não possui tal capacidade, será considerado inimputável e deverá ser, pois, absolvido, conforme determina o art. 386, VI, do Código de Processo Penal, aplicando-se, no caso, uma medida de segurança, a denominada “absolvição imprópria”.
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: [...]
VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência; [...]
Já os psicopatas, em princípio, são considerados, pelo sistema penal brasileiro, como semi-imputáveis, ou seja, portadores de uma perturbação da saúde mental, não sendo, assim, inteiramente capaz de compreender o caráter ilícito do fato. É uma espécie de capacidade parcial, ressalvando-se, entretanto, que, sob o ponto de vista penal, não gera a sua irresponsabilidade. É o que prevê o artigo 26, Parágrafo único, do Código Penal Brasileiro:
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
A doutrina majoritária se insere na compreensão de que os psicopatas estariam inseridos na hipótese da culpabilidade reduzida da semi-imputabilidade:
Entre a imputabilidade e a inimputabilidade existe um estado intermediário com reflexos na culpabilidade e, por consequência, na responsabilidade do agente. Situam-se nessa faixa os denominados demi-fous ou demi-responsables, compreendendo os casos benignos ou fugidios de certas doenças mentais, as formas menos graves de debilidade mental, os estados incipientes, estacionários ou residuais de certas psicoses, os estados Inter paroxísticos dos epiléticos e histéricos, certos intervalos lúcidos ou períodos de remissão, certos estados psíquicos decorrentes de especiais estados fisiológicos (gravidez, puerpério, climatério, etc.) e as chamadas personalidades psicopáticas. Atendendo à circunstância de o agente, em face dessas causas, não possuir a plena capacidade intelectiva ou volitiva, o Direito Penal atenua sua severidade, diminuindo a pena ou somente impondo medida de segurança. (Jesus, 2010, p. 143)
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Júlio Fabbrini Mirabete (2010, p. 140) classifica os psicopatas como semi-imputáveis, ou seja, os colocando na mesma categoria dos portadores de neurose profunda, como escrito a seguir:
Os psicopatas, as personalidades psicopáticas, os portadores de neuroses profundas etc. em geral têm capacidade de entendimento e determinação, embora não plena. [...] Em todas as hipóteses, comprovada por exame pericial, o agente será condenado, mas, tendo em vista a menor reprovabilidade de sua conduta, terá sua pena reduzida entre um e dois terços, conforme art. 26, parágrafo único. A percentagem de redução deve levar em conta a maior ou menor intensidade de perturbação mental, ou quando for o caso, pela graduação do desenvolvimento mental, e não pelas circunstâncias do crime, já consideradas na fixação da pena antes da redução. Entretanto, tendo o Código adotado o sistema unitário ou vicariante, em substituição ao sistema duplo binário de aplicação cumulativa da pena 19 e medida de segurança, necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena pode ser substituída pela internação ou tratamento ambulatorial.
Em nossa jurisprudência, também é corrente majoritária o entendimento onde a psicopatia deve ser tratada sob a ótica da semi-imputabilidade, com a aplicação do benefício da diminuição da pena, como se vê no julgado a seguir:
A personalidade psicopática não se inclui na categoria das moléstias mentais acarretadoras de irresponsabilidade do agente. Inscreve-se no elenco das perturbações de saúde mental, em sentido estrito, determinantes da redução da pena. (TJMT – AP. Crim – Relator Des. Costa Lima – RT 462/409).
Entretanto, nota-se que a utilização direta de tal entendimento ao psicopata, sem uma análise mais criteriosa, pode gerar graves e irreparáveis prejuízos sociais, uma vez que, se condenado, não será realizado o exame de sanidade mental, sendo esse essencial para se constatar a psicopatia, cumprindo pena normalmente, inclusive juntamente com os demais presos.
Para além da própria periculosidade em si, o portador da psicopatia poderá ter, no período de cumprimento da pena, um fortalecimento de seu transtorno, já que não foi diagnosticado, de forma adequada, por profissionais qualificados na área. Inclusive, se faz necessário o diagnóstico desse condenado, visto que, estando cumprindo pena juntamente com outros presos, poderão ser esses manipulados por aquele, contribuindo, ainda mais, para o incremento da periculosidade.
De acordo com o conceito analítico de crime, esse é o fato típico, antijurídico (ilícito) e culpável, e, ausente qualquer um destes elementos, ausente estará o crime, de modo que o agente não poderá ser por ele condenado e submetido à punição estatal correlata, vale dizer, a pena.
Inexistindo, pois, discussão acerca da possibilidade, a priori, do indivíduo psicopata realizar condutas penalmente típicas e ilícitas, subsistem, contudo, questionamentos acerca de sua culpabilidade, vez que controvertida a possibilidade de preenchimento de todos os seus requisitos pelo indivíduo que ostenta personalidade psicopática.
Assim, a partir do explanado no parágrafo anterior, pode-se inferir que, salvo se presentes outros fatores ou circunstâncias capazes de justificar que se chegue a uma conclusão distinta, é seguro afirmar que o psicopata é, de modo geral, apto a preencher pelo menos dois dos requisitos da culpabilidade: a exigibilidade de conduta conforme o direito e a potencial consciência da ilicitude. Resta, portanto, concluir em que medida ele é, ou não, imputável.[6]
Feitas todas essas considerações, cumpre assinalar que o Código Penal Brasileiro se manteve ‘’ inerte’’ desde a reforma ocorrida em 1984, que suprimiu da exposição de motivos da parte geral o item 19 que lhe fazia menção, deixando para o intérprete, a tarefa de enquadrar o psicopata entre os penalmente imputáveis, entre os inimputáveis ou a meio caminho entre um e outro, isto é, entre os semi-imputáveis do parágrafo único do art. 26. [7]
3.2 O tema no direito comparado
Diferente do Brasil, é possível identificar, no direito comparado, sistemas jurídicos que apresentam leis específicas e individuais acerca do tratamento penal dos psicopatas, destacando-os dos demais agentes. Há um extremo cuidado para separar os agentes com características da psicopatia para os que não têm, possibilitando, assim, que regulamentações distintas.
Nesse sentido, países como EUA, Austrália, Holanda, Noruega, China utilizam o instrumento denominado “Psychopathy checklist” ou PCL-R. Segundo Robert Hare, países que o instituíram apresentam redução da reincidência criminal considerável (HARE, 1998). É composto de um teste com 20 itens a fim de verificar a psicopatia por meio da estrutura da personalidade. o PCL-R (Psychopathy Checklist Revised) é um instrumento de pesquisa criado por Robert Hare para auferir o nível de psicopatia de uma pessoa. Nesse método, utiliza-se uma lista com 20 perguntas, tendo um total de 40 pontos:
A administração do PCL-R provê um método padronizado para quantificar e organizar atitudes e comportamentos observáveis [...] O Rorschach acrescenta e refina a hipótese sugerida pelo PCL-R [...] os itens do PCL-R quantificam atitudes observáveis e documentam comportamentos, enquanto os dados do Rorchach os correlacionam. O PCLR e o Rorschach avaliam diferentes dimensões da personalidade, mas que se complementam. (GACONO, 1998)
No cenário brasileiro, houve a tentativa, por meio de um projeto de lei, de se adaptar o referido diagnóstico psicopático, a partir de uma validação da Escala Hare feita por Hilda Morana (2003, p.76-104), que traduziu todo o checklist em sua tese de doutorado. Assim, as pontuações do PCL-R para a população brasileira são: não criminoso 0 a 11; transtorno parcial 12 a 22; e transtorno dissocial 23 a 40. A psiquiatra Ana Beatriz Silva (2008) assevera sobre a temática:
A psiquiatra forense Hilda Morana, responsável pela tradução, adaptação e validação do PCL para o Brasil, além de tentar aplicar o teste para a identificação de psicopatas nos nossos presídios, lutou para convencer deputados a criar prisões especiais para eles. A ideia virou um projeto de lei que, lamentavelmente, não foi aprovado.
Com isso em mente, casos notórios relacionados a psicopatas que aconteceram no Brasil causam revolta na população, pois muitos desses indivíduos cruéis, ardilosos e extremamente inteligentes, tiveram suas penas reduzidas devido ao disposto no art. 26, Parágrafo único, do Código Penal Brasileiro.
Outro mecanismo, utilizado nos Estados Unidos, em vários de seus estados, bem como no Canadá, é a criação de leis específicas para psicopatas. Isso demonstra que esses países já entenderam que a gravidade das condutas, que podem ser cometidas por pessoas portadoras de transtorno da psicopatia e que, por este motivo, merecem uma visão individualizada, a fim de se proteger a sociedade da periculosidade de tais agentes.
4. O tema na jurisprudência: pena ou medida de segurança?
Como foi tratado no tópico anterior, há correntes doutrinárias que consideram que o indivíduo psicopata é portador do denominado Transtorno da Personalidade Antissocial e, por esse fundamento, deveria ser considerado semi-imputável. Assim, o juiz tem a faculdade de aplicar, ao agente, a pena cominada ao delito, com a sua redução prevista no Parágrafo único, do art. 26 do Código Penal, ou determinar-lhe uma medida de segurança, caso fosse constatada a sua periculosidade.
Portanto, caso for constatado que o agente é imputável, aplicar-se-á uma pena prevista na lei de forma plena, sem redução; se constatar que o agente é semi-imputável, será facultado ao juiz decidir se aplicará a pena reduzida ou uma medida de segurança levando em consideração o caso concreto, vale dizer, se há necessidade de especial tratamento; e, caso seja o agente considerado inimputável, aplicar-se-á uma medida de segurança. Dessa forma, o sistema penal brasileiro não permite, de acordo o sistema vicariante, a aplicação conjunta de pena e de medida de segurança, sendo autorizada apenas uma ou outra.
A medida de segurança é uma espécie de resposta tratativa do Estado, ou seja, não é uma pena, mas um tratamento preventivo diante da doença ou da perturbação mental do agente. Isso é o que a distingue de uma pena:
A pena é sanção penal, imposta pelo Estado, em execução de uma sentença ao culpado pela prática de infração penal, consistente na restrição ou na privação de um bem jurídico, com finalidade de retribuir o mal injusto causado à vítima e à sociedade bem como a readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à coletividade e as penas podem ser, pena privativa de liberdade; pena restritiva de direito e penas pecuniárias” [8]
Já a medida de segurança é uma sanção de caráter preventivo, aplicada ao sujeito que não tem plena ou parcial capacidade de culpabilidade, em decorrência da prática de um injusto penal, com a finalidade de retirá-lo do convívio social e submetê-lo a tratamento com o intuito de cessar a sua periculosidade.[9]
Percebe-se, entretanto, que falta, no ordenamento jurídico brasileiro, uma aplicação mais segura de uma pena ou de uma medida de segurança, a partir de uma análise psiquiátrica do agente portador de psicopatia, como o PCL-R. Como visto, países que aplicam o sistema do PCL-R e que possuem leis específicas para os psicopatas, conseguem ter uma precisão maior do nível de consciência que o agente possuía no momento da conduta, podendo, assim, adequar a melhor medida ao caso concreto.
Com base nas jurisprudências a seguir, pode-se verificar como está sendo feito essa aplicação de pena ou medida de segurança em relação a esses indivíduos:
INCAPACIDADE CIVIL POR PSICOPATIA. O SÓ FATO DO INTERNAMENTO DA PESSOA EM ESTABELECIMENTO PSIQUIATRICO, SEM DECLARAÇÃO MEDICO-PERICIAL DE SER ELA PSICOPATA, NÃO INDUZ PRESUNÇÃO LEGAL ABSOLUTA DE SUA INCAPACIDADE PARA ATOS POSTERIORES A CESSAÇÃO DO INTERNAMENTO. INTERPRETAÇÃO ADEQUADA DO ART. 27, PAR. 1 DO DECRETO N. 24.559/34. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. (AI 72060 AgR, Relator(a): XAVIER DE ALBUQUERQUE, Primeira Turma, julgado em 18/04/1978, DJ 05-05-1978 PP-02978 EMENT VOL-01094-01 PP-00256) PROCESSUAL CIVIL. CIVIL.RECURSO ESPECIAL. INTERDIÇÃO. CURATELA. PSICOPATA. POSSIBILIDADE. 1. Ação de interdição ajuizada pelo recorrente em outubro de 2009. Agravo em recurso especial distribuído em 07/10/2011. Decisão determinando a reautuação do agravo em recurso especial publicada em 14/02/2012. Despacho determinando a realização de nova perícia psiquiátrica no recorrido publicado em 18/12/2012. 2. Recurso especial no qual se discute se pessoa que praticou atos infracionais equivalentes aos crimes tipificados no art. 121, §2º, II, III e IV (homicídios triplamente qualificados), dos quais foram vítimas o padrasto, a mãe de criação e seu irmão de 03 (três) anos de idade, e que ostenta condição psiquiátrica descrita como transtorno não especificado da personalidade (CID 10 - F 60.9), está sujeito à curatela, em processo de interdição promovido pelo Ministério Público Estadual. 3. A reincidência criminal, prevista pela psiquiatria forense para as hipóteses de sociopatia, é o cerne do presente debate, que não reflete apenas a situação do interditando, mas de todos aqueles que, diagnosticados como sociopatas, já cometeram crimes violentos. 4. A psicopatia está na zona fronteiriça entre a sanidade mental e a loucura, onde os instrumentos legais disponíveis mostram-se ineficientes, tanto para a proteção social como a própria garantia de vida digna aos sociopatas, razão pela qual deve ser buscar alternativas, dentro do arcabouço legal para, de um lado, não vulnerar as liberdades e direitos constitucionalmente assegurados a todos e, de outro turno, não deixar a sociedade refém de pessoas, hoje, incontroláveis nas suas ações, que tendem à recorrência criminosa. 5. Tanto na hipótese do apenamento quanto na medida socioeducativa - ontologicamente distintas, mas intrinsecamente iguais - a repressão do Estado traduzida no encarceramento ou na internação dos sociopatas criminosos, apenas postergam a questão quanto à exposição da sociedade e do próprio sociopata à violência produzida por ele mesmo, que provavelmente, em algum outro momento, será replicada, pois na atual evolução das ciências médicas não há controle medicamentoso ou terapêutico para essas pessoas. 6. A possibilidade de interdição de sociopatas que já cometeram crimes violentos deve ser analisada sob o mesmo enfoque que a legislação dá à possibilidade de interdição - ainda que parcial - dos deficientes mentais, ébrios habituais e os viciados em tóxicos (art. 1767, III, do CC-02). 7. Em todas essas situações o indivíduo tem sua capacidade civil crispada, de maneira súbita e incontrolável, com riscos para si, que extrapolam o universo da patrimonialidade, e que podem atingir até a sua própria integridade física sendo também ratio não expressa, desse excerto legal, a segurança do grupo social, mormente na hipótese de reconhecida violência daqueles acometidos por uma das hipóteses anteriormente descritas, tanto assim, que não raras vezes, sucede à interdição, pedido de internação compulsória. 8. Com igual motivação, a medida da capacidade civil, em hipóteses excepcionais, não pode ser ditada apenas pela mediana capacidade de realizar os atos da vida civil, mas, antes disso, deve ela ser aferida pelo risco existente nos estados crepusculares de qualquer natureza, do interditando, onde é possível se avaliar, com precisão, o potencial de auto-lesividade ou de agressão aos valores sociais que o indivíduo pode manifestar, para daí se extrair sua capacidade de gerir a própria vida, isto porquê, a mente psicótica não pendula entre sanidade e demência, mas há perenidade etiológica nas ações do sociopata. 9. A apreciação da possibilidade de interdição civil, quando diz respeito à sociopatas, pede, então, medida inovadora, ação biaxial, com um eixo refletindo os interesses do interditando, suas possibilidades de inserção social e o respeito à sua dignidade pessoal, e outro com foco no coletivo - ditado pelo interesse mais primário de um grupo social: a proteção de seus componentes -, linhas que devem se entrelaçar para, na sua síntese, dizer sobre o necessário discernimento para os atos da vida civil de um sociopata que já cometeu atos de agressão que, in casu, levaram a óbito três pessoas.10. A solução da querela, então, não vem com a completa abstração da análise da capacidade de discernimento do indivíduo, mas pela superposição a essa camada imediata da norma, da mediata proteção do próprio indivíduo e do grupo social no qual está inserido, posicionamento que encontrará, inevitavelmente, como indivíduo passível de interdição, o sociopata que já cometeu crime hediondo, pois aqui, as brumas da dúvida quanto à existência da patologia foram dissipadas pela violência já perpetrada pelo indivíduo. 11. Sob esse eito, a sociopatia, quando há prévia manifestação de violência por parte do sociopata, demonstra, inelutavelmente, percepção desvirtuada das regras sociais, dos limites individuais e da dor e sofrimento alheio, condições que apesar de não infirmarem, per se, a capacidade do indivíduo gerenciar sua vida civil, por colocarem em cheque a própria vida do interditando e de outrem, autorizam a sua curatela para que ele possa ter efetivo acompanhamento psiquiátrico, de forma voluntária ou coercitiva, com ou sem restrições à liberdade, a depender do quadro mental constatado, da evolução - se houver - da patologia, ou de seu tratamento. 12. Recurso especial provido. (REsp 1306687/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/03/2014, DJe 22/04/2014)
HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PACIENTE CUMPRINDO PENA DE 12 ANOS, 9 MESES E 18 DIAS DE RECLUSÃO, EM REGIME FECHADO, POR EXTORSÃO QUALIFICADA E ROUBO QUALIFICADO. ANTERIOR CUMPRIMENTO DE MEDIDA DE SEGURANÇA, EM RAZÃO DE DIVERSOS OUTROS DELITOS. PEDIDOS INDEFERIDOS DE PROGRESSÃO DE REGIME E LIVRAMENTO CONDICIONAL. REALIZAÇÃO DE EXAME PSICOLÓGICO PERICIAL. CONSTATAÇÃO QUE O PACIENTE É PORTADOR DE TRANSTORNO DE PERSONALIDADE ANTI-SOCIAL. NÃO COMPROVADO O MÉRITO SUBJETIVO DO PACIENTE PARA O ALCANCE DOS BENEFÍCIOS PLEITEADOS. EXAME CRIMINOLÓGICO. POSSIBILIDADE DE SUA REALIZAÇÃO. SÚMULA 439/STJ. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DO WRIT, COM CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO, PARA QUE O JUÍZ DA EXECUÇÃO PENAL EXAMINE A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA. ORDEM DENEGADA, COM RECOMENDAÇÃO QUE O JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL AVALIE A NECESSIDADE DE INTERNAÇÃO DO PACIENTE EM HOSPITAL DE CUSTÓDIA PARA FINS DE TRATAMENTO DOS TRANSTORNOS MENTAIS DIAGNOSTICADOS NO LAUDO PERICIAL. 1. Conforme entendimento cristalizado nesta Corte Superior, a realização do exame criminológico pode ser solicitada quando as peculiaridades da causa assim o recomendarem. Súmula 439/STJ. 2. O exame criminológico constitui um instrumento necessário para a formação da convicção do Magistrado, de maneira que deve sempre ser realizado como meio de se obter uma avaliação mais aprofundada acerca do merecimento do apenado para obter a progressão de regime, ocasião em que o terá maior contato com a sociedade. De outra parte, é procedimento que não constrange quem a ele se submete, pois se trata de avaliação não-invasiva da pessoa, já que se efetiva por meio de entrevista com técnico ou especialista, não produzindo qualquer ofensa física ou moral. 3. O paciente foi submetido a exame pericial, onde foi constatado que ele é portador de Transtorno de Personalidade Antissocial (CID-X:F 60.2), e os peritos esclareceram que pessoas portadoras desse tipo de transtorno são de difícil tratamento, pois possuem atitudes persistentes de irresponsabilidade e desrespeito por normas e regras e que o comportamento prisional do sentenciado foi marcado por conduta desafiadora e agressiva. 4. Parecer do MPF pela denegação da ordem; opina pela concessão da ordem de ofício, para que o Juízo das Execuções Penais avalie a possibilidade de internação do ora paciente em hospital de custódia para fins de tratamento dos transtornos metais diagnosticado em laudo pericial. 5. Ordem denegada, com recomendação para que o Juízo da Execução Penal avalie a necessidade de internação do ora paciente em hospital de custódia para fins de tratamento dos transtornos metais diagnosticado em laudo pericial. (HC 141.640/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 22/02/2011, DJe 21/03/2011)
Com base nas jurisprudências, ressalta-se a importância da adoção de um mecanismo eficiente para se medir o grau de consciência dos agentes portadores de transtorno da psicopatia, para uma determinação mais adequada e segura da resposta estatal: se pena ou medida de segurança.
Válido, ainda, chamar a atenção para a questão relativa aos ambientes de execução tanto da pena quanto da medida de segurança, visto que, tanto numa quanto noutra, importante frisar que o sistema penal brasileiro deve focar na recuperação do agente, vislumbrando o não retorno à prática de crime ou de injusto penal, vale dizer, sua recuperação penal, no caso do imputável, ou um tratamento eficaz que viabilize uma possível cura ou o controle da doença mental, no caso do inimputável.
5 Considerações finais
A partir desse estudo, foi possível constatar que a psicopatia não consiste em uma doença mental ou tampouco no desenvolvimento mental incompleto ou retardado, vez que não provoca qualquer mudança na capacidade psíquica do indivíduo. Trata-se portanto, de um transtorno de personalidade e não uma enfermidade psíquica.
O psicopata conhece as normas e leis, bem como suas consequências. Por serem indivíduos instáveis e pelo fato de não sentirem medo, frustração, culpa ou remorso, são propensos à reincidência em condutas típicas, fatores que devem ser considerados no momento de reduzir a pena de um indivíduo portador do transtorno de personalidade.
Apesar da existência de pesquisas que buscam respostas para o fenômeno da psicopatia, ainda há muitos posicionamentos controversos no que diz respeito ao seu conceito, origens, diagnóstico e possibilidades de tratamento. A divergência entre as classes médicas e jurídicas pode gerar um debate complexo durante o curso do processo, pois a culpabilidade do agente e a sua responsabilização entram em conflito com a eficaz aplicabilidade da pena.
Por outro lado, a incapacidade de uma prestação jurisdicional plena tem como causas principais o aumento de reincidência delituosa destes agentes, a deficiente reinserção na sociedade, a interação entre psicopatas e não psicopatas, aumentando a propagação deste mal, a possibilidade de sanção infrutífera etc.
É cediço que as leis específicas de ordenamentos jurídicos de outros países produzem resultados com bons efeitos e indicam a possibilidade de uma diminuição nos casos em que agentes psicopatas atuam, conferido, a eles, a devida responsabilização com as respostas adequadas e satisfatórias. Destaca-se positivamente o PCR-L, modelo padrão utilizado em determinados países, o que veio a demonstrar uma diminuição nos episódios mais violentos e grande repercussão midiática.
Assim, pela forma como vêm sendo considerados os autores de condutas, portadores de psicopatia, ou seja, considerados imputáveis sem diferenciá-los dos demais apenados, percebe-se a importância da realização de exames criminológicos de maneira segura e objetiva, não apenas no momento da execução da pena, mas, durante a própria instrução criminal. Vale citar a possibilidade da utilização de métodos de identificação, como o PCL-R, aplicado por profissionais especializados, com autonomia e independência para a elaboração de seus laudos técnicos.
Dessa forma, diante da realidade do sistema penal brasileiro, no qual não existe preparo para enfrentamento desses casos, deixar apenas a cargo do juiz, o destino desses indivíduos não seria a melhor solução.
Por fim, conclui-se que, mesmo que que se denote a necessidade de se aplicar, ao psicopata, uma medida protetiva com a devida internação em hospital de custodia e tratamento psiquiátrico, na prática, não é o que ocorre.
A maioria dos magistrados entende que tais agentes devem ser privados de sua liberdade, em presídios de segurança máxima, em virtude de seu alto grau de periculosidade, mas sem a substituição da pena por uma medida de segurança. Para além disso, por cometerem várias condutas em concurso de crimes, o que culmina em penas demasiadamente longas, acabam sendo mantidos na condição de reclusos por muito tempo, mas, em algum momento, serão colocados em liberdade sem ao certo se saber se terão realmente condições de reinserção na sociedade.
5 Referências
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[1] Discente do 10º período do Curso de Direito do Centro Universitário UNA/BH. Email: [email protected]
[2] DERCIRIER, Freire. Paranoia e crime: do direito à psicanálise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
[3] Disponível em: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude/doencas-e-tratamentos/doenca-mental-eresponsavel- por-10-dos-crimes-diz estudo,7b2b5f5a86e95410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html. Acesso em: 20 out. 2020.
[4] Disponível em: http://www.revistacorpoemente.com.br/noticias/a-cada-25-pessoas-no-brasil-uma-epsicopata- diz-autora-de-best-sellers. Acesso em: 20 out. 2020.
[5] Apud OLIVEIRA, Valéria Santos. O psicopata frente ao Código Penal Brasileiro. 2017. Disponível em: https://alerinha.jusbrasil.com.br/artigos/492181526/o-psicopata-frente-ao-codigo-penal-brasileiro. Acesso em: 14 mar. 2021.
[6] NUNES, Rafaela Pacheco; SILVA, Roberta Christie P. da. et al. A psicopatia no direito penal brasileiro: respostas judiciais, proteção à sociedade e tratamentos adequados aos psicopatas – uma análise interdisciplinar. In: Revista Acadêmica da Escola Superior do Ministério Público do Ceará. Disponível em: www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/07/ARTIGO-9.pdf. Acesso em: 31 mar. 2021.
[7] NUNES, Rafaela Pacheco; SILVA, Roberta Christie P. da. et al. A psicopatia no direito penal brasileiro: respostas judiciais, proteção à sociedade e tratamentos adequados aos psicopatas – uma análise interdisciplinar. In: Revista Acadêmica da Escola Superior do Ministério Público do Ceará. Disponível em: www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/07/ARTIGO-9.pdf. Acesso em: 31 mar. 2021.
[8] JUSBRASIL. Conceito de Pena. 2016. Disponível em: https://jmnassessoria.jusbrasil.com.br/artigos/352321585/conceito-de-pena. Acesso em: 23 mar. 2021.
[9] JUSBRASIL. Medidas de segurança na legislação penal. 2019. Disponível em: https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/652994258/medidas-de-seguranca-na-legislacao-penal. Acesso em: 23 mar. 2021.
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