RESUMO: Esse artigo vem analisar, a partir da perspectiva da codificação e desenvolvimento progressivo das normas de Direito Internacional, o caso da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela inércia no que tange à fiscalização, resolução e punição dos criminosos envolvidos na implementação de trabalhos forçados e análogos à escravidão. Cumpre examinar em que medida a codificação e desenvolvimento progressivo solidificam os direitos, a ponto de relativizar a soberania dos Estados, com o objetivo de proteger as garantias dos indivíduos a nível internacional.
Palavras-chave: Codificação. Desenvolvimento Progressivo. Corte Interamericana. Soberania dos Estados. Fazenda Brasil Verde. Inércia do Estado.
ABSTRACT: This article intends to analyze, through the perspective of codification and progressive development of the rules of International Law, the case involving Brazil’s condemnation by the Inter-American Court, occurred because of its inertia on inspecting, solving and punishing the criminals involved on the practice of forced labor and in conditions analogous to slavery. It is up to examine to what extent the codification and progressive development solidifies the rights, to the point of relativizing the states sovereignty, objectifying the individual guaranties protection at an international level.
Key-words: Codification. Progressive Development. Inter-American Court. States Sovereignty. Brasil Verde Farm. State Inertia.
Introdução
Visando a proteção dos direitos dos membros da sociedade internacional, assim como a solução pacífica de conflitos, fora necessário a criação de uma ordem pública internacional, que, no entanto, careceria da criação de normas expressas para que os objetivos fins fossem plenamente alcançados. Tais normas foram sistematizadas e interpretadas a partir da codificação e desenvolvimento progressivo, os quais consistem em métodos imprescindíveis para a concretização do Direito Internacional e que acabaram por ampliar o campo da aplicação das normas do Direito Internacional, ultrapassando os limites internos do estado.
Tal ampliação foi provocada por meio da produção escrita das normas do Direito Internacional, bem como dos princípios e costumes, o que, consequentemente, proporcionou mais clareza e segurança jurídica. Além disso, muito embora a intensificação desses métodos tenha se intensificado somente após a Segunda Guerra Mundial, sendo uma sistematização lenta, houve demasiado ganho para os membros da comunidade internacional, possibilitando que as práticas internacionais desviantes fossem submetidas as cortes internacionais, como a Corte Interamericana, por exemplo.
Sobre a Corte Interamericana, cabe ressaltar que ela é um dos três tribunais judiciais autônomos, cujo objetivo é aplicar e interpretar a Convenção Americana. Esse tribunal possui entre suas atribuições, a função contenciosa, ou seja, imputa responsabilidade internacional, caso haja eventual descumprimento das normas devidamente codificadas. Porém, para que haja a devida imputação, deve ser observado se o país está sujeito a função contenciosa da corte, como no caso do Brasil.
Como o Brasil está devidamente submetido a essa função, foi condenado a nível internacional no que tange às práticas de trabalho forçado, mais especificamente as ocorridas na Fazenda Brasil Verde, no interior do estado do Pará. O caso ficou conhecido como Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde versus Brasil, pois foi constatado que nessa fazenda, localizada município de Sapucaia, existiam práticas de labor forçado devido a quase inexistência de salário ou liberdade do empregado.
Porém, o que merece ser destacado no caso mencionado é o fato de que, embora a Corte Interamericana seja um tribunal autônomo, tal condenação só foi viabilizada devido à noção bem definida de Direito Internacional, o qual foi concretizado por meio dos institutos da codificação e desenvolvimento progressivo. Diante disso, o presente trabalho visa demonstrar em que proporção tais institutos cooperam para a proteção dos indivíduos frente às práticas que negam vigência constitucional aos direitos humanos, enfatizando sua aplicação no que se refere ao trabalho forçado constatado no caso Fazenda Brasil Verde.
1.Codificação e Desenvolvimento Progressivo no Direito Internacional
Antes de qualquer análise mais aprofundada a respeito do caso em comento, resta necessário discorrer brevemente sobre como se deu a evolução dos direitos universais em âmbito internacional.
Inicialmente, as primeiras menções a direitos individuais, sob a perspectiva de limitação dos poderes do soberano para sua proteção, ocorreram na Magna Carta da Inglaterra, no século XVI. Entretanto, inobstante o ineditismo nesse contexto, ainda eram direitos que circunscreviam apenas os cidadãos ingleses, não se estendendo à condição humana em seu sentido geral.
Foi apenas com a Declaração de Direitos da Virgínia, nos EUA do século XVIII, e a Declaração de Direitos do Homem da França, em contexto de revolução liberalista, que surgiram as primeiras previsões legais da existência de direitos inteira e exclusivamente ligados à condição do indivíduo, enquanto seres humanos. Ou seja, direitos que abrangem qualquer ser humano, independentemente de suas condições físicas ou de origem.
A partir dessa lógica, nos períodos entre e pós guerras mundiais, houve a necessidade de criação de uma comunidade internacional que pudesse solidificar direitos e garantias humanas de alcance mundial, a ponto de relativizar a soberania dos Estados e vinculá-los às normas internacionais, podendo os mesmos serem monitorados e cobrados em caso de desrespeito dos direitos previstos, ou falta de punição das suas respectivas violações dentro seu âmbito de atuação estatal.
A princípio, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) não trazia força de obrigação aos Estados membros, que só assinavam e concordavam com as disposições. Porém, não sentiam a carga de uma força jurídica vinculante, que efetivamente ensejasse a proteção fática dos direitos estabelecidos. Nesse momento, a comunidade entendeu pela necessidade de positivação e codificação dos direitos já existentes, trazendo outros efeitos além do da mera declaração, com a formulação e sistematização mais precisas das normas do Direito Internacional, criando, portanto, o Pacto dos Direitos Sociais e Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Estes instituíram, pela primeira vez, possibilidades de monitoramento dos Estados.
O sistema acima apresentado se concretizou como um sistema de documentos generalistas de proteção dos Direitos Humanos. De outro lado, instituiu-se o sistema especial de proteção global dos Direitos Humanos, trazendo novos direitos, consolidados especificamente em relação a determinados indivíduos, como a Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio e a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a mulher, dentre outras.
Nessa esfera de criação de direitos e afirmação de regras novas, ocorre o chamado desenvolvimento progressivo, pelo qual há uma interpretação das normas internacionais para além do que está linearmente positivado, resultando na preparação para implementação de novas normas, já de acordo com a evolução do direito costumeiro, incluindo a criação de novos tratados e convenções, tal qual a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e Práticas Análogas à Escravidão, que será trabalhado mais adiante. Acrescente-se que a própria criação de convenções e tratados decorre do chamado efeito cristalizador da codificação, que concentra e impulsiona a força jurídica das normas sob a forma de acordos e pactos internacionais.
Permanecendo nesta lógica, de abrangência da necessidade de monitoramento e punição dos Estados, surgem os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos, incluindo o Sistema Interamericano de proteção, tendo o Brasil reconhecido a competência da respectiva Corte Interamericana, para a submissão de casos violadores dos direitos humanos, no ano de 1998.
1.1 Panorama da Codificação e Desenvolvimento Progressivo no âmbito do Trabalho e Escravidão
Pode-se concluir, portanto, por meio da noção de Direito Internacional, que este consiste em um conjunto de normas jurídicas que regulam os estados, organizações e o próprio indivíduo, na posição jurídica/público/político das relações internacionais e, por meio dos institutos já mencionados, são elencados objetivos comuns dos membros, para poder, assim, expressá-los de forma escrita.
Os doutrinadores universalistas já asseguravam a intrínseca relação entre o Direito Internacional e esses métodos de codificação e desenvolvimento progressivo, uma vez que, para eles, a partir da noção do Direito Internacional, há um núcleo fundamental de direitos, comum aos atores e instituições internacionais. Estes, por sua vez, devem agir mediante ação coletiva em prol de objetivos universais, ou seja, aqueles princípios e aspirações que são o núcleo essencial do Direito Internacional. Essa formação se dá, sobretudo, a partir da própria codificação e desenvolvimento progressivo, visto que esses objetivos assumem forma escrita, em tratados, por exemplo, conferindo maior rigor, segurança jurídica e certeza, e intensificando o espaço de aplicação.
Como já mencionado anteriormente, em 1948 foi criada a Declaração Internacional dos Direitos Humanos e, juntamente a ela, estabelecida a Comissão de Direito Internacional, composta por 34 membros independentes, que propagam a diversidade dos sistemas jurídicos, promovendo o desenvolvimento progressivo e a codificação do Direito Internacional, de tal modo que preparam projetos de artigos sobre temas que ainda não foram regulados pela legislação.
Dessa forma, resta claro que, no âmbito internacional, são de extrema importância os métodos da codificação e desenvolvimento progressivo, os quais possuem notório papel na proteção de direitos, tendo inclusive, previsão na Carta das Nações Unidas, a qual incentiva a utilização dos institutos:
Artigo 13:
1. A Assembleia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a promover cooperação internacional no terreno político e incentivar o desenvolvimento progressivo do Direito Internacional e a sua codificação.
Tais métodos são imprescindíveis, pois regulam e interpretam princípios gerais, costume internacional, tratados, jurisprudência e doutrina, sendo esses últimos meios auxiliares. Ajudam, além disso, na proteção do trabalhador frente a práticas que negam vigência constitucional aos direitos fundamentais, como o trabalho forçado. No caso do trabalho forçado, essas aspirações comuns de proteção da dignidade e liberdade do trabalhador iniciaram-se, no âmbito internacional, por meio do amadurecimento de concepções, sobretudo, econômicas e religiosas ao longo do século XIX, tendo em vista a proibição do tráfico de escravos para as colônias.
No que diz respeito às concepções religiosas, pode-se mencionar o autor Francisco de Vitória que, desde o século XVI, discorreu sobre noções inovadoras no que tange aos direitos inerentes ao ser humano e que, aliás, respaldam a lógica do Direito Internacional. Frisamos, como exemplo, o congresso de Viena de 1815, que proibiu a escravidão, tratando das relações internacionais acerca dos Direitos Humanos e da secularização das estruturas político- jurídicas (separação entre estado e igreja).
Na doutrina, Francisco de Vitória é um verdadeiro revolucionário, visto que representou a transição entre as concepções medievais e as modernas. Afirmava que os seres humanos detinham “dignidade inviolável e não passíveis de instrumentalização, sejam castelhanos, crianças, doutos ou ignorantes” (MONTES FERNANDO, 2012, p.23), de modo que há a possibilidade de construção de uma relação entre a proibição da escravidão com a noção de Direitos Humanos, ou seja, seres humanos portadores de dignidade inviolável e domínio.
Posteriormente, ocorreu outra codificação importante, a exposta na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, que teve como finalidade proteger os direitos do ser humano nas relações de trabalho. Sobre isso, todos os itens do artigo em destaque abaixo são imprescindíveis, porém, merece atenção o item 1, uma vez que explicitamente assegura direitos aos indivíduos, tendo como pressuposto evitar o trabalho forçados, vejamos:
Artigo 23:
1. Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todo o homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Todo o homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Todo o homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.
Mais tarde, em 1919 foi criada a OIT (Organização Internacional do Trabalho), decorrente do tratado de Versalhes, que tem como objetivo a promoção da justiça social. Dentre os objetivos, visa garantir dignidade ao trabalho, evitando o trabalho forçado que por si só, além de ser violação aos direitos humanos, intensifica a pobreza e impede o progresso econômico.
A codificação do trabalho forçado pelo OIT se deu, pela primeira vez em 1930, com a convenção sobre o trabalho forçado, a qual define que essa prática consiste em todo labor ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual ela não se tenha oferecido espontaneamente.
Já no ano de 1956, outra sistematização relacionada a esses tipos de práticas foi ratificada, qual seja a Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, já referido anteriormente, que estendeu a quantidade de práticas a serem punidas.
Porém, a codificação não foi suficiente para a eliminação do trabalho escravo, necessitando de medidas preventivas a serem adotas, medidas essas que foram possíveis a partir do desenvolvimento progressivo, pois interpretando a norma, foi possível em 2014, a ratificação de medidas por parte da OIT.
Dentre as recomendações, cabe destacar o item “d”, da quarta recomendação, que dispõe sobre a necessidade de adotar medidas que informem as pessoas mais vulneráveis (afrodescendentes, analfabetos, pessoas oriundas da parte mais pobre do país) acerca do trabalho escravo, seja por meio da conscientização, proteção de práticas fraudulentas, entre outras:
Diante do exposto, pode-se perceber o já existente movimento focado em tratar de questões relacionadas especificamente com os direitos da esfera do trabalho, repugnando e punindo práticas que destoem dessa lógica, sejam elas caracterizadoras óbvias da escravidão ou condutas análogas ou próximas a esse conceito.
2.Caso Fazenda Brasil Verde sob a Ótica da Codificação e Desenvolvimento Progressivo
O Brasil, já assinante da Carta Internacional do Direitos Humanos e, consequentemente, integrante do Sistema Geral de Proteção Global aos Direitos Humanos, também passou a ser membro do Sistema Interamericano de proteção, a nível regional.
Nesse contexto, foi descoberto, mediante diversas ações de investigação e fiscalização, que a denominada Fazenda Brasil Verde continha trabalhadores que estavam em condições irregulares e completamente degradantes, estando, ainda, em situações características de trabalho escravo. Alguns trabalhadores que conseguiram fugir da referida fazenda relataram fatos que possibilitaram a constatação de que havia práticas de trabalho forçado, bem como, situações de servidão por dívidas.
Concluiu-se que era uma formação contemporânea de relação de escravidão, com a implementação de salários em valor irrisório, ou inexistência de qualquer contraprestação pecuniária; ameaças de morte em caso de fuga da fazenda; cerceamento da liberdade de ir e vir dos trabalhadores; relação de endividamento com o fazendeiro; e ausência de condições mínimas de moradia, alimentação e saúde, ensejando a violação da principal garantia integrante dos Direitos Humanos: a dignidade da pessoa humana.
Inobstante existirem relatos de violações dos direitos dos trabalhadores na fazenda desde a década de 1980, o sistema interamericano só foi acionado para atuar no caso no ano de 1998, mediante a apresentação de denúncia e petição nesse sentido. Vale enfatizar que a possibilidade da interposição de petição é uma das formas de monitoramento permitidas no contexto do Sistema Regional Interamericano, tendo esta sido realizada através de alegações de que o Estado estava ciente das atrocidades ocorridas na fazenda, entretanto, permanecia inerte, sem tomar as providências adequadas e cabíveis a respeito.
A petição foi encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que elaborou recomendações, a serem metas de cumprimento que o Brasil deveria adotar e pôr em prática, devendo o Estado apresentar relatórios que demonstrassem a evolução do país nesse sentido. O prazo dado para tal fora de dois meses, prorrogado por dez vezes, não tendo ocorrido mudança positiva relevante nas investigações, reparação de danos morais ou materiais relativas às vítimas, bem como, os relatórios não trouxeram elementos que possibilitassem a constatação de uma ação positiva do Estado para resolver o caso concreto, nem para implementação de políticas de combate a esses tipos de crimes.
Sendo assim, visualizada a clara falta de atuação do Estado na resolução da demanda, a Comissão Interamericana enviou o caso para julgamento na Corte Interamericana, no ano de 2015.
Percebe-se, nessa narrativa, como a positivação e codificação dos dispositivos de vedação à violação dos direitos do homem, especificamente sob a perspectiva do trabalho em condições degradantes e em situação análoga ao trabalho escravo, é indispensável para a possibilidade real de cobrança da proteção dos referidos direitos pelo Estado. Ainda, quanto mais específicas as normas, no sentido de discriminação detalhada das condutas e sujeitos, mais óbvia fica a necessidade de cumprimento das mesmas pelo Estado.
Isso podemos ver através da gama de conceitos trazidos pela Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, que facilitam o enquadramento da situação ocorrida no Brasil como violação dos direitos assegurados, trazendo outras práticas, que não apenas as de escravidão em seu sentido histórico, como também ações violadoras diversas, mas que também devem ser punidas como tal:
Artigo 1º
Cada um dos Estados Membros à presente Convenção tomará todas as medidas, legislativas e de outra natureza, que sejam viáveis e necessárias, para obter progressivamente e logo que possível a abolição completa ou o abandono das instituições e práticas seguintes, onde quer ainda subsistam, enquadrem-se ou não na definição de escravidão assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926:
§1. A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for eqüitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida.
§2. A servidão, isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição.
§3. Toda instituição ou prática em virtude da qual:
§4. Uma mulher é, sem que tenha o direito de recusa, prometida ou dada em casamento, mediante remuneração em dinheiro ou espécie entregue a seus pais, tutor, família ou a qualquer outra pessoa ou grupo de pessoas.
§5. O marido de uma mulher, a família ou clã deste têm o direito de cedê-la a um terceiro, a título oneroso ou não.
§6. A mulher pode, por morte do marido, ser transmitida por sucessão a outra pessoa.
§7. Toda instituição ou prática em virtude da qual uma criança ou um adolescente de menos de dezoito anos é entregue, quer por seus pais ou um deles, quer por seu tutor, a um terceiro, mediante remuneração ou sem ela, com o fim da exploração da pessoa ou do trabalho da referida criança ou adolescente.
A codificação e o desenvolvimento progressivo redimensionam e expandem a área de atuação do Direito Internacional, bem como, fortificam suas previsões, atribuindo força normativa suficiente para intervir, perpassando a soberania de um país, em vista da promoção do cumprimento de suas normas, em favor de todos os indivíduos que têm seus direitos fundamentais desrespeitados.
É interessante perceber como a Ordem Internacional não se limita a reproduzir os costumes e núcleo essencial dos direitos a nível internacional, ela também determina e cria direitos novos, mediante seu desenvolvimento progressivo que, por sua vez, influenciam o Direito interno dos Estados, fortificando-se ainda mais. Nota-se essa modificação interna na situação em comento, quando percebemos que, enquanto signatário da Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, o Brasil internalizou os direitos ali descritos e acrescentou o art. 149 ao Código Penal Brasileiro:
Art. 148 - Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado: (Vide Lei nº 10.446, de 2002)
Pena - reclusão, de um a três anos.
Sendo assim, é um movimento de desenvolvimento progressivo contínuo e ilimitado que transpassa o liame do internacional para o nacional, a partir do momento que ele não apenas inclui normas no âmbito internacional, mas também toma proporções muito maiores, adentrando os ordenamentos jurídicos dos países ratificadores das convenções, declarações, tratados etc. Tal fenômeno fortalece a vinculação do Estado ao cumprimento dos estabelecimentos legais, visto que estes tornam-se presentes tanto externa, quanto internamente.
Isto posto, há o que se chama de efeito clarificador, através do qual as normas internacionais, baseadas em regras costumeiras, passam a basear, elas mesmas, novos costumes, em uma atuação inversa da usual, visto que majoritariamente, as normas internacionais apenas replicam os referidos costumes, ao invés de inspirá-los. In verbis:
(...) uma vez codificada, isto é, passada a escrito (ou transcrita), a norma preexistente, na sua nova roupagem, poderá espoletar processos costumeiros ulteriores, de harmonia com as solicitações da comunidade internacional em cada momento, ou até servir de “guiding light” para a jurisprudência internacional. Com o que, aliás, se demonstra que, ao contrário do que pretendem certos autores, a codificação não “para o tempo”; bem ao invés, ela cadencia o tempo do desenvolvimento do direito (...) (grifo nosso) (ALMEIDA, 2012, p. Pág. 08).
Diante de todo o exposto, percebe-se que não poderia haver um monitoramento e cobrança do Brasil, em relação aos direitos dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, se não houvesse a codificação prévia vedando a caracterização de relação de trabalho próxima à escravidão. Assim, sua obrigação frente à Corte Interamericana se dá em função de o país ser um signatário dos dispositivos globais gerais e específicos, bem como, por estar duplamente vinculado ao Direito interno e ao externo
Prosseguindo, já em sede da Corte Interamericana, o Estado apresentou sua defesa, contendo dez exceções preliminares, tendo algumas sido parcialmente acatadas pela Corte. Destaquemos a preliminar que versava sobre a incompetência ratione temporis, pela qual o Brasil alegava que não poderia ser condenado a respeito de fatos ocorridos antes do reconhecimento de jurisdição da Corte Interamericana, feito na data de 10 de dezembro de 1998. Nesse sentido, e focando no pressuposto de voluntariedade dos Estados à assinatura de quaisquer que sejam as convenções ou tratados, segue o entendimento da Corte a esse respeito:
O Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana em 10 de dezembro de 1998 e, em sua declaração, afirmou que o Tribunal teria competência sobre “fatos posteriores” a este reconhecimento. 43 Com base no anterior e no princípio de irretroatividade, a Corte não pode exercer sua competência contenciosa para aplicar a Convenção e declarar uma violação a suas normas quando os fatos alegados ou a conduta do Estado que poderiam representar sua responsabilidade internacional são anteriores a este reconhecimento da competência. 44 Por essa razão, permanecem fora da competência do Tribunal os fatos ocorridos antes do reconhecimento da competência contenciosa da Corte por parte do Brasil (grifo nosso) (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016).
Por fim, tendo assumido incompetência para julgamentos de situações ocorridas antes de 1998, devido ao fato de que o Brasil ainda não havia reconhecido a competência da Corte Interamericana até esse ano, percebe-se mais evidente a indispensabilidade da concordância estatal para que a vinculação venha a ocorrer efetivamente. Essa indispensabilidade que, por sua vez, pressupõe necessariamente a positivação dos direitos, seja mediante tratados, pactos ou convenções, demonstrando novamente a codificação e desenvolvimento progressivo como os principais responsáveis pela obrigatoriedade do cumprimento das normas.
3. Julgamento do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos
Considerando que as recomendações feitas pela Comissão Interamericana não surtiram os efeitos desejados, ela procedeu o envio do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sendo assim, a partir da exposição das codificações ocorridas ao longo dos anos, bem como da influência do desenvolvimento progressivo na proteção efetiva dos direitos, além da noção bem definida entre os estados sobre o Direito Internacional, foi possível a condenação do Brasil em contexto internacional pela Corte Interamericana, a respeito das práticas de trabalho forçado ocorridas dentro da Fazenda Brasil Verde, em que pese a incompetência ratione temporis da Corte.
O Brasil foi condenado por terem sido constatadas, como já explanado, práticas de labor a partir de ameaças, de tal modo que inexistia liberdade por parte do empregado, bem como a existência de remuneração ou salário ínfimo. Além disso, foi observado o endividamento dos trabalhadores com o empregador em troca de moradia, alimentação e saúde, de maneira que tais ações negaram vigência aos dispositivos da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, da OIT, bem como o artigo 1°, §1°, da Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, sem falar do próprio art. 149 do Código Penal Brasileiro.
Um dos pontos que merecem ser elencados da fundamentação da Corte sobre a condenação é o fato de a imputação ter tido como uma das bases a omissão do estado brasileiro em adotar medidas de prevenção e resposta, além do descaso em fornecer mecanismos jurídicos para que houvesse a proteção dos direitos e a devida punição dos responsáveis. Merece atenção por tal argumento ser intrínseco ao desenvolvimento progressivo, já que observou não só as regras do Direito Internacional, mas também os princípios comuns elencados na sua codificação.
Assim, tendo em vista o papel finalístico dos princípios, há no caso em análise dois princípios importantes, a dignidade da pessoa humana e liberdade. Princípios esses que possuem relação com os objetivos comuns das organizações internacionais, o que nos permite dizer que passa a ser papel do estado observar cada vez mais medidas para que esses direitos sejam protegidos. Isso justamente por se tratar de princípios projetados para o futuro, que visam um objetivo em comum, sendo insuficiente apenas a referida punição, mas também um comprometimento do Estado com vistas a mudar a realidade em comento, para garantir a não repetição das práticas violadoras.
Ademais, desde o advento dos direitos econômicos, sociais e culturais, direitos de segunda geração, a Ordem Internacional apresenta uma perspectiva de proteção positiva do Estado, buscando a igualdade material, em contraposição ao ideal liberalista de igualdade formal, que pregava a necessidade de completa abstenção do Estado para garantir a liberdade dos indivíduos. Na lógica atual, o Estado não apenas deve se abster, em respeito aos direitos individuais, mas, principalmente, deve promover políticas de efetivação desses direitos, mediante fiscalização, reparação em relação às vítimas e punição em relação aos autores das práticas violadoras.
Assim, a Corte Interamericana acertadamente decidiu o caso, já que era dever do país promover o princípio, de forma que deveria ter adotado comportamentos que visassem à concretização da dignidade das vítimas do trabalho forçado ocorrido na Fazenda Brasil Verde, face a clara inércia estatal nesse sentido.
A decisão, portanto, de acordo com o viés principiológico prospectivo, obrigou o Brasil a adotar reformas legislativas e políticas públicas que transponham os obstáculos à realização de justiça no âmbito penal, a realizar a investigação e persecução criminal dos envolvidos na prática de crimes de trabalho escravo, trabalho forçado, servidão por dívidas e tráfico de pessoas que venham a ocorrer.
Em relação ao caso em específico, a Corte condenou o Brasil a indenizar individualmente as 128 vítimas resgatadas durante as fiscalizações do Ministério Público do Trabalho, tendo sido obrigado, também, a restituir os direitos das vítimas, com medidas de satisfação e garantias de não repetição; investigar, processar e responsabilizar todos os envolvidos nas violações de direitos humanos das vítimas do presente caso; publicar e divulgar a sentença; e promover a chamada Reparação Simbólica, nos seguintes termos:
Como medida simbólica de reparação o Estado brasileiro deverá promover a instalação de uma placa localizada em órgão público da cidade de Sapucaia, local dos fatos e região com alto índice de resgate de trabalhadores submetidos a condição análoga à de escravo, com o objetivo de estabelecer um marco que expresse não apenas a memória dos fatos, mas a informação sobre o resultado da denúncia internacional das graves violações de direitos humanos relacionadas ao trabalho escravo, concretizado por meio da sentença dessa honorável Corte Interamericana (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016).
Conclusão
Como já explanado, em outro momento da Ordem Jurídica Internacional não havia a efetiva obrigatoriedade de proteção fática das garantias fundamentais, visto existir apenas o efeito declaratório da codificação, mediante o advento da Declaração Internacional de Direitos Humanos. Tal efeito apenas trazia a reafirmação das garantias, sem, contudo, haver mecanismos de monitoramento e cobrança dos Estados nesse sentido.
Após a criação do Pacto de Direitos Sociais e Políticos e do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os referidos mecanismos foram implementados, incluindo relatórios, comunicações interestatais, inclusive petições individuais, pleiteando a proteção de direitos que estejam sendo violados pelo Estado ou não tendo as respectivas práticas violadoras punidas, em função da inércia estatal.
Nesse contexto, é a codificação e o desenvolvimento progressivo que possibilitam o estabelecimento e solidificação dos direitos enquanto garantias fundamentais, em conjunto com a expressão voluntária de comprometimento dos estados em ratificá-las, e ensejam, dentre outros, a submissão dos estados a julgamento de cortes internacionais.
A codificação e desenvolvimento progressivo também influenciam o próprio Direito Interno dos países signatários, que, em uma atuação inversa, permitem a influência dos fenômenos de codificação na própria implementação de elementos costumeiros, consolidando ainda mais os dispositivos internacionais e trazendo mais imperatividade em relação aos mesmos.
Dentro dessa possibilidade, e já no âmbito do sistema regional de proteção internacional dos direitos, está incluso o caso da Fazenda Brasil Verde, que refletiu a situação de atos violadores da dignidade e liberdade da pessoa humana no norte do país, através da prática de submissão de trabalhadores a contextos análogos à escravidão. Esteve o Brasil, portanto, em julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela inércia em relação aos mencionados acontecimentos, tendo sido condenado pela violação dos estabelecimentos internacionais.
Diante de todo o exposto, fica clara a estreita relação da codificação e desenvolvimento progressivo com a punição estatal no caso Fazenda Brasil Verde. Dentro da sistemática possibilitada por esses elementos do Direito Internacional, juntamente com seus efeitos declaratório, cristalizador e clarificador, surge a possibilidade de vinculação dos Estados em relação à proteção dos direitos humanos previstos tanto no sistema geral, quanto especial, de proteção global dos direitos em comento, viabilizando a proteção dos direitos humanos da forma mais abrangente e eficaz possível.
REFERÊNCIAS
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ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Malheiro Editores. 2014
D’OCA, Fernando Rodrigues Montes. Política, Direito e Relações Internacionais em Francisco de Vitória. Revista Opinião Filosófica, [S.l.], v. 3, n. 1, fev. 2017. ISSN 2178-1176.
KOWALSKI, Mateus. A “Ordem Pública Universal” como o fim da história? Boletim da Faculdade de Direito: Universidade de Coimbra, ISSN 0303-9773, V. 88, 2, 2012, págs. 857-880.
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advogada, pós-graduanda em direito público pela faculdade Legale
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRITO, Patricia Araujo de. A contribuição da codificação e desenvolvimento progressivo no julgamento do Brasil pelo caso Fazenda Brasil Verde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 maio 2023, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61416/a-contribuio-da-codificao-e-desenvolvimento-progressivo-no-julgamento-do-brasil-pelo-caso-fazenda-brasil-verde. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Lucas Soares Oliveira de Melo
Por: Vitor Veloso Barros e Santos
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