RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o contencioso comercial entre o Brasil e as Comunidades Europeias (CE) relativo aos subsídios à exportação de açúcar, caso DS266 na Organização Mundial do Comércio (OMC). O problema central envolve a alegação do Brasil de que a CE violou compromissos da Rodada Uruguai ao conceder subsídios que permitiam a exportação de açúcar em quantidades e preços que distorciam o mercado global, prejudicando economias de países em desenvolvimento. A justificativa reside na relevância de assegurar práticas comerciais justas e competitivas, especialmente para economias dependentes do setor açucareiro. A metodologia adotada envolve análise documental e estudo de caso, com base nos relatórios do painel da OMC e do Órgão de Apelação. A hipótese é de que os subsídios da CE eram incompatíveis com os compromissos internacionais, justificando a necessidade de reforma em sua política açucareira. Após a decisão, a CE realizou reformas que beneficiaram a entrada de países em desenvolvimento, como o Brasil, em novos mercados.
Palavras-chave: Organização Mundial do Comércio; subsídios à exportação; direito da concorrência; comércio internacional; açúcar; Brasil; Comunidades Europeias.
1.INTRODUÇÃO
Em 27 de setembro de 2002, o Brasil (caso DS266) e a Austrália (caso DS265) protocolaram solicitação de consultas, junto ao Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, doravante OMC, frente às Comunidades Europeias[1], com a intenção de questionar seu regime de subsídios à exportação do açúcar.
A principal alegação consubstanciava-se em os subsídios concedidos superarem os níveis de compromisso de redução acordados ao final da Rodada do Uruguai[2] (BRASIL, 2013b).
Posteriormente, em 14 de março de 2013, a Tailândia (caso DS283) solicitou consulta em razão do mesmo fato, motivo pelo qual “[...] os três membros figuraram como codemandantes contra a Comunidade Europeia (CE).” (LIMA; ROSENBERG, 2009a).
A presente exposição terá por objeto a apresentação dessa controvérsia, sob o enfoque dado pelo Brasil, no contencioso de número DS266. Apesar de tratarem da mesma matéria e terem sido analisados por um único painel, salienta-se, a instauração de casos separados para os diferentes codemandantes possui por escopo possibilitar a escolha individualizada e de forma independente, sobre o rumo a ser seguido na disputa, como, por exemplo, retaliar ou realizar acordo.
Iniciar-se-á pela explanação do contexto de políticas de subsídios ao regime açucareiro adotado pelas Comunidades Europeias (doravante CE) e suas consequências negativas no plano da concorrência internacional, seguida pela descrição das etapas do contencioso junto ao Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, com as principais alegações de ambas as partes, e seu desfecho nos âmbitos do painel e Órgão de Apelação, para, por fim, expor como se deu a execução das recomendações pela parte sucumbente.
Desse modo, objetiva-se analisar o papel da Organização Mundial do Comércio, especialmente por meio de seus acordos e Órgão de Solução de Controvérsias, para a manutenção do equilíbrio concorrencial no âmbito internacional.
2.O CONTEXTO ANTERIOR À INSTAURAÇÃO DO CASO DS266 – REGIME AÇUCAREIRO EUROPEU
Em 1962, com o fito de concretizar os objetivos traçados pela Política Agrícola Comum (PAC)[3], a Comunidade Europeia instituiu as denominadas Organizações Comuns de Mercado (OCM), as quais, por sua vez, municiadas de instrumentos de intervenção, regeriam a produção e a comercialização dos mais diversos produtos agrícolas.
Nesse contexto, surgiu, em 1968, a Organização Comum do Mercado de Açúcar, com o escopo de garantir um rendimento equitativo aos produtores comunitários e abastecer o mercado com sua própria produção (COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 2003).
Para tanto, conforme Regulamento CE 1260/2001, uma das principais ferramentas utilizadas era o denominado preço de intervenção do açúcar, que, por meio de um sistema de cotas, garantia aos produtores um preço mínimo de venda do produto (CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA, 2001). Conforme apontam Lima e Rosenberg (2009a), esse valor era, se comparado à cotação do açúcar no mercado mundial, três vezes superior, e suportado pelo consumidor europeu.
Funcionava da seguinte forma: cotas de produção eram estabelecidas para cada um dos países-Membros da Comunidade Europeia, que, por sua vez, dividiam-nas entre os produtores individuais. A estes era garantido um preço mínimo (denominado preço de intervenção) por sua produção de açúcar, caso realizada dentro dos limites de quantidade das denominadas cotas A e B:
Essas quantidades correspondiam a uma quota de produção por região para a qual a garantia de preço era quase total (quota A) e uma outra quota para a qual a garantia de preço era parcial (quota B). Dessa maneira, o açúcar de quota A recebia preço de garantia mais alto que o açúcar de quota B. (Lima; Rosenberg, 2009a, p. 328)
Se o consumo da Comunidade Europeia fosse, em um determinado período, inferior à produção de cotas A e B, os produtores poderiam exportar o açúcar excedente, recebendo, para tanto, os denominados subsídios à exportação, cuja função era a de igualar a diferença existente entre os altos preços praticados no âmbito comunitário e os consideravelmente inferiores do mercado internacional[4] (BRASIL, 2009a). Esse subsídio era financiado, majoritariamente, “[...] com fundos do orçamento comunitário, sendo uma parte arrecadada com as contribuições (levies) dos produtores e agricultores.” (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 330).
Já no âmbito do mercado interno, a principal medida utilizada para protegê-lo de produtos estrangeiros eram as altas tarifas de importação, composta por um “[...] valor fixo e um adicional variável, conforme a cotação internacional do açúcar.” (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 330).
À quantidade fabricada além das cotas A e B, atribuía-se o nome de açúcar C, conforme artigo 1.2 do Regulamento EC 1260/2001:
2. Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:
[...]
e) Açúcar A ou isoglicose A: qualquer quantidade de açúcar ou de isoglicose produzida por conta de uma campanha de comercialização determinada dentro do limite da quota A da empresa em causa;
f) Açúcar B ou isoglicose B: qualquer quantidade de açúcar ou de isoglicose produzida por conta de uma campanha de comercialização determinada e que ultrapasse a quota A sem ultrapassar a soma das quotas A e B da empresa em causa;
g) Açúcar C ou isoglicose C: qualquer quantidade de açúcar ou de isoglicose produzida por conta de uma campanha de comercialização determinada e que ultrapasse a soma das quotas A e B da empresa em causa ou seja produzida por uma empresa não detentora de quotas; (CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA, 2001).
Ao contrário do açúcar produzido sob as cotas A e B, a produção da modalidade C era ilimitada. Entretanto, sua comercialização não era permitida no âmbito do mercado comunitário, não sendo, assim, beneficiado pela política do preço de intervenção, além de ser impedido de receber reembolsos à exportação (BRASIL, 2013a). Deveria, sim, ser exportado ou estocado para cômputo na cota A do próximo ano.
Apesar disso, ainda que não recebesse subsídios diretamente, o regime de concessão de subsídios às cotas A e B criava uma situação excepcionalmente favorável à exportação do açúcar C.
Como a Organização Comum do Mercado de Açúcar exigia que fosse pago aos plantadores de beterraba um valor mínimo elevado para as produções de cotas A e B, isso permitia que, posteriormente, por ocasião do fabrico do açúcar C, a matéria-prima fosse adquirida pelos produtores a um valor consideravelmente inferior aos seus custos de produção, reduzindo, como consequência, o valor do produto final (BRASIL, 2013a). A produção de açúcar além das cotas determinadas era, na verdade, ainda que indiretamente, estimulada.
Desse modo, por meio do denominado efeito spillover[5], os benefícios concedidos ao produto cotizado faziam-se “[...] suficientes para cobrir os custos fixos de produção do açúcar ‘C’, tornando-o rentável para exportação” (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 328).
Como consequência, aproximadamente 3,6 milhões de toneladas de açúcar C eram despejadas no mercado internacional (FURTADO; MARIOTONI, 2013), a preços artificialmente competitivos, resultando em queda do valor do produto no mercado[6], o que prejudicava especialmente os países em desenvolvimento cuja principal atividade consistia na economia açucareira. Além disso, diminuíam-se as chances de expansão desses países para terceiros mercados, os quais adquiriam o açúcar subsidiado europeu (OFXAM INTERNATIONAL apud LIMA; ROSENBERG, 2009a).
As Comunidades Europeias produziam, ainda, o denominado açúcar ACP[7], cuja matéria prima, importada sob um regime de acordos preferenciais, com isenção de taxas de importação e preço de compra garantido, advinha de ex-colônias de países europeus, localizadas na África, Caribe, Pacífico, e Índia (BRASIL, 2013a). Possuía, portanto, o mesmo tratamento do conferido ao produto integralmente produzido em solo europeu[8].
Conforme explanam Lima e Rosenberg (2009a, p. 329), uma vez adentrado em território europeu, o “[...] açúcar era refinado, acompanhando o padrão de açúcar colonial”.
Tendo em vista que as cotas A e B supriam e excediam, por si sós, as demandas do mercado europeu, outro não era o destino do açúcar ACP senão a exportação. Partilhava, para tanto, dos mesmos mecanismos conferidos às cotas A e B, ou seja, subsídios de exportação (BRASIL, 2013a).
Nesse esquema, a quantidade de matéria-prima importada por força dos acordos preferenciais, aproximadamente 1,6 milhão de toneladas ao ano, era, ao final, equivalente ao açúcar ACP exportado, nada sendo comercializado no mercado europeu (BRASIL, 2013a).
Dado todo esse contexto, considerando o preço excessivo do açúcar praticado em solo europeu, com a figura do preço mínimo garantido, as altas taxas impostas ao produto importado, o efeito spillover sobre o açúcar C, as importações preferenciais de cana bruta dos países ACP e Índia, bem como os subsídios à exportação, em poucos anos, a Comunidade Europeia passou da posição de país importador para a de “[...] maior país exportador de açúcar refinado do mundo até a safra 2000-2001” (GROSSO apud LIMA; ROSENBERG, 2009a), com uma venda de, aproximadamente, 5,2 milhões de toneladas no mercado internacional (FURTADO; MARIOTONI, 2013).
2.1 Dos compromissos de redução de subsídios assumidos durante a Rodada Uruguai
Dentre os acordos firmados ao final da Rodada Uruguai, havia o chamado Acordo sobre a Agricultura, cujos objetivos declarados, entre outros, residia no alcance de compromissos relativos a acesso aos mercados, a apoio interno e a concorrência na exportação.
Estabeleceu-se, desse modo, em seu preâmbulo, que uma de suas metas de longo prazo seria “[...] conseguir, de um modo contínuo durante um período acordado, reduções progressivas e substanciais do apoio e da proteção à agricultura, com vistas a remediar e a prevenir as restrições e distorções que afetam os mercados agrícolas mundiais.” (ACORDO SOBRE..., 1994).
A respeito dessas reduções de subsídios, ficaram acordadas as seguintes quantidades:
Os Países-Membro desenvolvidos concordaram em reduzir suas tarifas sobre produtos agrícolas em 36 por cento de média, com um corte mínimo de 15 por cento para qualquer produto, no prazo de seis anos a começar em 1995.
Para os Países-Membro em desenvolvimento, os cortes foram de 24 por cento e 10 por cento, respectivamente, a serem implementados no prazo de 10 anos.
Exigiu-se dos Países-Membro de menor desenvolvimento relativo a consolidação de todas as tarifas agrícolas, mas não o compromisso de reduções tarifárias. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2013).
Com a finalidade voltada à consecução dessas metas, o Acordo sobre Agricultura previra que seus signatários se absteriam de conceder subsídios à exportação em desconformidade com seus termos, ou com as disposições expressas em suas respectivas “Listas de Países”, detentoras do rol de compromissos assumidos por cada uma das nações, membros da OMC, ao final da Rodada Uruguai:
Artigo 8.º
Compromissos em matéria de concorrência na exportação
Os Membros comprometem-se a não conceder subsídios à exportação que não estejam em conformidade com o presente Acordo e com os compromissos especificados nas suas listas. (ACORDO SOBRE..., 1994).
As Comunidades Europeias não foram exceção, comprometendo-se, em sua própria Lista, a reduzir a quantidade de subsídios à exportação de açúcar, até o ano de 2001, para 499,1 milhões de euros ao ano, ou 1.273,5 mil toneladas de açúcar por safra (SCHEDULE CXL: EUROPEAN COMMUNITIES apud LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 345).
Apesar disso, em todas as safras, desde 1995, até o início do contencioso, sem exceção, as Comunidades Europeias haviam exportado quantidades de açúcar de três a quatro vezes superiores a seus compromissos de redução de subsídios[9], cuja ocorrência era fruto, em especial, do fato de não ser computado, nos valores acima expostos, o montante relativo ao açúcar C, beneficiário indireto de subsídios, e o açúcar ACP, ao qual era conferido o reembolso à exportação (BRASIL, 2013a).
Especificamente em relação ao açúcar ACP, havia uma nota de rodapé, inserida pela Comunidade Europeia ao final de sua tabela de compromissos, que, segundo acreditava, a eximiria do cômputo desse produto, ao afirmar que a redução proposta “[...] não inclui exportação de açúcar de origem ACP e Índia, relativo ao qual a Comunidade não firmará nenhum compromisso de redução. A média de exportação no período de 1986 a 1990 totalizou 1,6 milhão de tonelada.” (BRASIL, 2013a).[10]
3.O PROCESSO DECISÓRIO DO CASO DS266
3.1 Principais argumentos da parte demandante – Brasil
Dada a clara violação, por parte das Comunidades Europeias, de seus compromissos de redução de subsídios, bem como suas nefastas consequências para o mercado mundial de açúcar e para a economia de diversos países, o Brasil, no caso de número DS266, solicitou ao Órgão de Solução de Controvérsias a apreciação e um julgamento a respeito da matéria.
Sobre o tema, afirmam Lima e Rosenberg (2009a):
O Regulamento do Conselho Europeu n. 1.260/2001, que estabelece as regras do regime europeu de açúcar, foi a principal medida sob análise no contencioso da OMC. Além desse regulamento, foram também questionados regulamentos e políticas administrativas em relação ao setor açucareiro europeu.
Conforme já apontado, as Comunidades Europeias não incluíam, no cálculo relativo à quantidade de açúcar subsidiado para exportação, nem o denominado açúcar C, e nem o produto cuja matéria-prima advinha dos países ACP e da Índia.
Para o Brasil, estava, assim, constituída uma situação de completa irregularidade, porquanto o contexto de políticas do regime açucareiro europeu permitia à CE a exportação de quantidades irrestritas de açúcar subsidiado, concorrendo, de forma desleal, com os demais países-Membros da OMC, e ignorando os compromissos firmados ao final da Rodada Uruguai.
Por essas razões, apontava ter ocorrido violação reiterada e direta aos artigos 3º[11] e 8º do Acordo sobre Agricultura (BRASIL, 2013a).
Em relação à nota de rodapé anexa à lista de compromissos da CE, a excluir o açúcar ACP das quantias relativas ao acordo de redução de subsídios à exportação, alegou o Brasil se tratar de texto incompatível com a conjuntura concebida pelo Acordo sobre Agricultura.
Mera nota de rodapé não poderia ser utilizada para eximir determinado país de obrigações inscritas em acordos da OMC, salvo se houvesse expressa previsão para tanto, conforme interpretação do artigo XVI:5 do Acordo de Marrakesh:
5 – Não poderão ser formuladas reservas relativamente a nenhuma disposição do presente Acordo. Só poderão ser formuladas reservas relativamente a disposições dos acordos comerciais multilaterais na medida do previsto nesses acordos. As reservas respeitantes a uma disposição de um acordo comercial plurilateral serão regidas pelas disposições desse acordo. (ACORDO DE..., 1994).
Ademais, de acordo com a jurisprudência da Organização Mundial do Comércio[12], apesar de os Membros poderem ceder direitos e conceder benefícios por meio de suas listas de compromissos, não poderiam delas se utilizar para diminuir ou minar suas obrigações, o que, de acordo com o Brasil, havia sido feito pela CE (BRASIL, 2013a).
No tocante ao açúcar C, a fim de ser evidenciada a violação, foi necessário, primeiro, ser comprovada a existência de subsídio (pagamento, benefício e nexo causal). (LIMA; ROSENBERG, 2009a). Com isso, estabelecer-se-ia a incidência do Acordo sobre Agricultura.
Em relação à palavra “pagamento”, inscrita no artigo 9.1 (c) do referido acordo[13], foi apresentada jurisprudência[14] na qual o Órgão de Apelação entendeu que o termo engloba uma série de práticas relativas à transferência de recursos, “[...] não só remuneração monetária, mas também outras formas de pagamento (payment-in-kind), como, por exemplo, uma ‘receita descartada’ (revenue forgone).” (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 346).
Para o Brasil, o esquema regulatório estabelecido pela Organização Comum do Mercado de Açúcar proveria, pelo menos, três distintos e independentes “pagamentos” ao açúcar C. (BRASIL, 2013a).
Primeiramente, a combinação dos preços garantidos, cotas de produção e restrições à importação limitariam as quantidades de produto A e B a serem vendidos no mercado interno, ocasionando um aumento, consequentemente, no preço do açúcar para os consumidores europeus. O valor pago aos produtores, portanto, acima do preço de mercado, constituiria uma primeira hipótese de “pagamento”, nos moldes do artigo 9.1. (BRASIL, 2013a).
A segunda forma de pagamento ocorreria como resultado direto da transferência de parte dessa renda auferida pelos produtores aos agricultores das beterrabas A e B, por intermédio do pagamento mínimo compulsório pela matéria-prima. Por essa razão, de acordo com o alegado, os agricultores seriam capazes de fornecer a beterraba para confecção do açúcar C a um preço menor[15] que seus custos de produção, reduzindo o valor final do produto. (BRASIL, 2013a).
A diferença entre o valor cobrado pelos agricultores e o custo real da produção seria financiado pelos altos retornos obtidos com a venda de beterraba relativa às cotas A e B. Desse modo, estaria, mais uma vez, caracterizado o “pagamento”.
Por fim, a terceira forma seria consequência da venda do açúcar C no mercado internacional. Segundo asseverado pelo Brasil, ao adquirirem um produto que não refletia seu valor real de produção, os consumidores estariam, também, realizando “pagamento”.
Assim, de acordo com a interpretação dada pelo Órgão de Apelação, haveria ocorrido o denominado “pagamento”, e, nos termos do artigo 9.1 (c) do Acordo sobre Agricultura, o açúcar C seria, portanto, objeto de compromisso de redução de subsídios. (ACORDO SOBRE..., 1994).
Além disso, como a legislação europeia não permitia o consumo interno do açúcar C, deveria, segundo considerou-se também, ser exportado (ou, no máximo, estocado), “[...] qualquer forma de pagamento que beneficiasse os produtores/ exportadores do açúcar C seria destinado à exportação de um produto agrícola, ou seja, o açúcar C”. (LIMA; ROSENBERG, 2009ª, p. 347).
Em acréscimo, apontou-se que o ônus de comprovar que o açúcar exportado além do valor acordado na Lista de Países não era subsidiado seria da Comunidade Europeia (inversão do ônus da prova), em respeito ao artigo 10.3 do Acordo sobre Agricultura:
Qualquer Membro que pretenda que uma quantidade exportada em superação do nível de um compromisso de redução não foi subvencionada deve demonstrar que nenhum subsídio à exportação, constante ou não da lista do artigo 9.º, foi concedido para a quantidade exportada em causa (ACORDO SOBRE..., 1994).
Ante todo o exposto, era inaceitável para o Brasil e demais demandantes que as Comunidades Europeias continuassem a se eximir de computar o açúcar ACP e C no valor relativo à redução de subsídios pactuada ao final da Rodada Uruguai, razão pela qual teria sido instaurada a controvérsia.
3.2 Principais argumentos da parte demandada – Comunidades Europeias
Relativamente ao açúcar ACP, as Comunidades Europeias alegaram ter sido realizada uma má interpretação dos termos de sua tabela de compromissos, pois não estariam, por meio da nota de rodapé, eximindo-se de computar o produto nas reduções de subsídios, mas apenas o separando da contagem geral (COMUNIDADES EUROPEIAS, 2013).
Portanto, para a CE, que não negou a incidência de subsídios sobre o açúcar ACP, o valor de redução geral (aplicável ao produto de cota A e B), estaria expresso na tabela, e o valor de redução específico estaria inscrito na nota de rodapé, apenas aplicável ao produto ACP.
Explanam Lima e Rosenberg (2009a, p. 348):
[...] para a CE, a nota de rodapé dividiu os compromissos em duas partes: (i) estabelecia limite em quantidade e em valor para o uso de subsídios à exportação, no caso os $449,1 milhões de euros e as 1.273,5 toneladas de açúcar e (ii) estabelecia um teto de 1.600.000 toneladas de açúcar equivalente à quantidade importada de açúcar dos países ACP que não fazia parte dos compromissos de redução de subsídios.
O parâmetro de redução de açúcar ACP, segundo os argumentos apresentados, seria o período tomado como base na nota de rodapé, ou seja, 1986 a 1990.
Quanto ao argumento de que o apoio prestado às cotas A e B seria utilizado por produtores e exportadores com o propósito de financiar a exportação da mercadoria extracota, e, por esse motivo, todos os pagamentos realizados a esses entes deveriam ser automaticamente tratados como destinado à exportação, a CE rebateu afirmando ser facultativa a exportação do açúcar C, pois a produção excedente poderia ser estocada para cômputo na cota A do ano seguinte (COMUNIDADES EUROPEIAS, 2013).
Desse modo, afirmaram, “[...] se havia algum benefício das quotas ‘A’ e ‘B’ auferido pelos produtores de açúcar ‘C’, ele não dependia das exportações do açúcar ‘C’ [...]”. (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 351).
3.3 Relatório apresentado pelo painel
Primeiramente, quanto ao ônus da prova, o painel adotou o entendimento de que, em razão de as partes terem obtido sucesso em comprovar que as exportações da CE ultrapassavam os limites de seus compromissos, o ônus seria invertido no tocante à prova de que essas exportações não seriam subsidiadas. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
Em seguida, passou à análise da nota de rodapé inscrita na Lista de compromissos das Comunidades Europeias, e a possibilidade de interpretá-la harmoniosamente com os termos do Acordo sobre Agricultura:
Para tanto, decidiu analisar a questão em quatro etapas: primeiro, o painel considerou ser necessário estabelecer quais seriam as obrigações da CE em relação aos artigos 3, 8 e 9 do AA; em seguida, procurou buscar o que cada membro da OMC poderia fazer em seu quadro de compromissos e como o teor deveria ser interpretado; a terceira tarefa foi discutir a relação entre as obrigações da CE no que se refere aos artigos 3, 8 e 9 do AA e à nota de rodapé, com particular atenção para a possibilidade de conflito ou interpretação harmoniosa entre ambas, e, finalmente, o painel examinou a natureza do compromisso, se existisse algum, no tocante à referida nota de rodapé. (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 351).
Na primeira etapa, com o fito de avaliar se as Comunidades Europeias haviam, realmente, excedido os valores pactuados para exportação de açúcar, observou-se que o painel deveria fazer um juízo de interpretação, porquanto o artigo 3º do Acordo sobre Agricultura não define o termo “níveis de compromisso”, os artigos 9º e 10.3 não definiam “compromisso de redução”, e o artigo 8º não tratava do que poderia significar “compromissos especificados nas suas listas”. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
Quanto aos artigos 3º e 8º, o painel interpretou que os países-Membros, indubitavelmente, não poderiam conceder subsídios à exportação, caso estivessem em desconformidade tanto com o Acordo sobre Agricultura quanto com suas respectivas Listas de compromissos. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
Ademais, afirmou-se que, para que a exportação de um produto constante da Lista de compromissos estivesse em consonância com o artigo 3.3 do referido Acordo, deveria cumprir dois requisitos:
[...] (i) os subsídios à exportação devem ser concedidos dentro da quantidade limitada pelo quadro de compromissos e (ii) a sua correspondente despesa deve estar dentro dos limites orçamentários impostos pela previsão de redução de subsídios estipulada em seu quadro de compromissos. (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 352).
Dessa forma, tendo em vista que a nota de rodapé prevê mera limitação quantitativa, no valor de 1,6 milhão de toneladas, o fato de inexistir limite orçamentário a tornaria conflitante com o Acordo sobre Agricultura, motivo pelo qual se determinou que apenas poderiam ser concedidos subsídios à exportação aos produtos elencados na Seção II, Parte IV das Listas de compromissos de cada país, e somente para quantidades e valores iguais ou inferiores aos ali constantes. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d, p. 151).
Na segunda etapa do exame, considerando que as Listas de compromissos, em consonância com o artigo 3.1 do Acordo sobre Agricultura[16], compõem parte integral do GATT 1994, aplicam-se a elas as regras de interpretação de tratados estabelecidas pela Convenção de Viena.
Dentre essas regras, encontra-se a determinação de que um tratado deva ser sempre interpretado com base na boa-fé[17], da qual decorre o princípio da efetiva interpretação do tratado[18]. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
O painel, então, estabeleceu a necessidade de se interpretar a nota de rodapé tanto como parte integral do GATT 1994, e sob o princípio da efetiva interpretação do tratado.
Na terceira etapa da análise, avaliou-se o suposto conflito suscitado entre os termos inscritos na lista de compromissos e o Acordo sobre Agricultura.
Em consonância com a posição adotada pela jurisprudência da OMC, apenas haverá conflito de normas quando suas disposições forem mutuamente excludentes, ou seja, quando, a um caso, apenas uma diretriz for cabível. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d). Ainda, de acordo com entendimento consolidado, “[...] membros podem inserir notas para ‘esclarecer ou qualificar’ uma concessão, mas não poderão reduzir obrigações assumidas, o que causaria um conflito de normas”. (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 353).
Assim, observar-se-ia se a inscrição da nota de rodapé seria compatível com as disposições do Acordo sobre Agricultura, ou se, caso contrário, conflitaria com os compromissos assumidos pelas Comunidades Europeias, e, como consequência, seria desprovida de efeito legal.
Já na etapa final do exame, buscou-se avaliar a natureza do compromisso estabelecido na nota de rodapé.
Tendo em vista que, conforme já mencionado, as Comunidades Europeias não adicionaram as quantidades nem valores das exportações de açúcar ACP à sua lista de obrigações, anexa ao Acordo sobre Agricultura, o painel entendeu que a CE jamais tivera a intenção de tratar os termos da nota de rodapé como um compromisso (ao contrário do alegado durante sua defesa), e jamais fora, também, tratado dessa forma pelos demais membros.
Conforme Lima e Rosenberg (2009a, p. 355):
A nota de rodapé seria, na verdade, uma tentativa de reduzir e modificar as obrigações da CE, materializadas nos Artigos 3, 8, 9.1 e 9.2 (b) (iv) do AA. Em decorrência disso, os painelistas declararam que a nota de rodapé e as disposições do AA sobre subsídios à exportação são mutually inconsistent.
Por todo o exposto, o painel, em relação à nota de rodapé gravada junto aos compromissos de redução de subsídios das Comunidades Europeias, concluiu que seu conteúdo carecia de efeito legal, visto conflitar diretamente com os artigos 3, 8 e 9 do Acordo sobre Agricultura, sendo impossível realizar uma interpretação harmoniosa entre ambos. Afirmou:
Consequentemente, o Painel conclui que o conteúdo da Nota de Rodapé 1 não possui efeito legal, bem como não amplia ou modifica os valores dos compromissos especificados na Seção II, Parte IV da lista de obrigações das Comunidades Europeias, quais sejam 1.273.500 toneladas de açúcar por ano, ou orçamento de € 499.100.000 por ano, com efeitos a partir de 2000/2001. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d, p. 165, tradução nossa).[19]
Em seguida, dado o fato de o ônus da prova ter sido invertido, em consonância com a aplicação do artigo 10.3 do Acordo sobre Agricultura, caberia às CE a comprovação de que o açúcar ACP não era subsidiado.
As partes demandantes demonstraram ter ocorrido a exportação de produto ACP acima dos níveis compromissados. As CE, contudo, sequer negaram esse fato, o painel decidiu que, desde 1995, houve excesso na concessão de subsídios à exportação desse produto, e que, por isso, houvera reiterada violação aos artigos 3 e 8 do Acordo sobre Agricultura. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
Ultrapassada a questão do açúcar ACP, passou-se à análise de se o pagamento feito através da venda da beterraba C, a valores abaixo do custo de produção, poderia ser considerado como destinado à exportação de produto agrícola.
Primeiramente, estabeleceu-se que houve pagamento, pois a venda sob um valor inferior ao custo de produção constituiria pagamento, nos moldes do artigo 9.1 (c) do Acordo sobre Agricultura. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
Esse pagamento não precisaria depender da exportação, conforme observado pelo painel, mas apenas destinar-se à exportação para ser submetido aos termos do Acordo sobre Agricultura. Explanam Lima e Rosenberg (2009a, p. 354-355):
[...] como a beterraba “C” destinava-se à produção de açúcar “C” que, por sua vez, destinava-se à exportação, o pagamento feito pela transferência de renda dos agricultores de beterraba “C” aos produtores/ exportadores de açúcar “C” era feito para exportação de um produto agrícola nos termos do artigo 9.1 (c) do AA.
Incidindo, portanto, o referido acordo, buscara-se estabelecer se, em consonância com o artigo 9.1, haveria relação entre financiamento de pagamentos e ação governamental.
Concluiu-se, em análise da Organização Comum do Mercado de Açúcar, que havia “[...] tanto incentivos legais para que o agricultor e o produtor excedessem suas quotas quanto controle governamental da oferta e dos preços no mercado interno”. Por essa razão, fora inequívoco o juízo de que o açúcar C receberia pagamento para a exportação financiado por ações governamentais. (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 355).
Além disso, assim como ocorrera em relação ao açúcar ACP, o ônus da prova havia sido invertido, e as Comunidades Europeias, mais uma vez, falharam em demonstrar a não incidência de subsídios sobre o açúcar C, ante aos fortes argumentos apresentados pelas partes adversas. Por essa razão, julgou-se que o produto C recebia subsídios e, consequentemente, as ações da CE eram absolutamente incompatíveis com os compromissos de redução firmados ao final da Rodada do Uruguai. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
Encerrado o relatório do painel, em consonância com o artigo 19.1[20] do Entendimento sobre Solução de Controvérsias, fora recomendado, primeiramente, que a CE alterasse tanto o seu Regulamento de número 1260/2001, quanto demais determinações relativas ao regime europeu de açúcar, a fim de se adequarem às disposições sobre redução de subsídios à exportação inscritas no Acordo sobre Agricultura. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
Ato contínuo, determinou-se que as Comunidades Europeias considerassem a adoção de medidas que adequassem sua produção de açúcar ao seu consumo doméstico, tudo com respeito aos compromissos relativos à importação e para com países em desenvolvimento. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d).
3.4 Conclusões do Órgão de Apelação
As Comunidades Europeias recorreram das interpretações realizadas pelo painel, submetendo a matéria à apreciação do Órgão de Apelação (OAp).
Em geral, foi mantido o entendimento expresso pelos painelistas, divergindo apenas no tocante à carência de análise, pelo painel, do artigo 3 do Agreement on Subsidies and Countervailing Measures (ASCM), em razão de economia processual.[21]
O Órgão de Apelação criticou a aplicação desse instituto ao caso, porque, se a demanda houvesse sido analisada à luz do ASCM, seria cabível o remédio previsto em seu artigo 4.7, permissivo à retirada imediata dos subsídios proibidos.
Entretanto, dada a falta de exame pelo painel, o OAp ficou desprovido de fundamentos suficientes para realizar uma análise legal, motivo pelo qual, em suas conclusões, negou-se a completar a apreciação da matéria. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013c).
3.5 Implementação das recomendações
Como resultado do processo, fora dado início a uma profunda reforma no regime açucareiro europeu, que, por meio da edição de uma nova Organização Comum do Mercado de Açúcar, fora reformulado e disciplinado no Regulamento n. 318/2006.
Lima e Rosenberg (2009a, p. 361-362) apontam as principais inovações do novo regime:
(a) Transformação do “preço de intervenção” em “preço de referência” – Trata-se de gatilho que aciona mecanismos de: a) estocagem; b) carry-forward; e c) retirada do açúcar do mercado doméstico europeu.
(b) Diminuição das quotas em 2,5 milhões de toneladas.
(c) Unificação das quotas “A” e “B” (Artigo 7 do Regulamento 318/2006).
(d) “quota adicional de 1 milhão de toneladas distribuídas entre países produtores de açúcar C. Para produzir a quota adicional, as unidades deverão pagar 730 Euros/ tonelada (Artigo 8.3 do Regulamento n. 318/2006).
(e) Fim da obrigação de exportar o açúcar excedente, antigo açúcar C; e
(f)Taxação à produção de açúcar de quota a partir da safra 2007/2008 de 12 euros/ tonelada (Artigo 16 do Regulamento n. 318/2006).
Além dessas, foram adotadas medidas para administrar a quantidade de produto exportado pelas Comunidades Europeias, destacando-se, entre elas, a proibição da venda no mercado interno do açúcar extracota (antes denominado açúcar C), atribuição de novo destino ao produto excedente, e previsão de que, o que exceder as cotas nacionais será tratado como produção extracota. (LIMA; ROSENBERG, 2009a).
Nos termos do artigo 12 do Regulamento 318/2006, o destino dessa produção excedente será:
O açúcar, a isoglicose e o xarope de inulina produzidos além da quota referida no artigo 7º durante uma campanha de comercialização podem ser:
a) Utilizados na elaboração de determinados produtos, em conformidade com o artigo 13º;
b) Objecto de reporte para a quota de produção da campanha de comercialização seguinte, em conformidade com o artigo 14º;
c) Utilizados no âmbito do regime específico de abastecimento das regiões ultraperiféricas, em conformidade com o Título II do Regulamento (CE) nº 247/2006; ou
d) Exportados, dentro dos limites quantitativos fixados de acordo com o procedimento a que se refere o nº 2 do artigo 39º, no respeito dos compromissos decorrentes dos acordos celebrados ao abrigo do artigo 300º do Tratado.
As outras quantidades excedentárias ficam sujeitas à imposição sobre os excedentes referida no artigo 15º. (CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA, 2006).
Por outro lado, nos termos do mesmo diploma legal, o açúcar ao qual não puder ser dada uma das destinações anteriormente expressas, sendo retirado do mercado ou estocado pelo produtor, estará sujeito a alta taxação, com o objetivo de evitar o acúmulo do produto.
Denota-se, portanto, que o novo sistema corrige os problemas anteriormente causados, por meio do descumprimento do acordo multilateral, ao mercado mundial açucareiro, propiciando uma disputa permeada de maior igualdade, face à livre concorrência.
4.CONCLUSÃO
O antigo regime açucareiro europeu, apesar de possuir o nobre objetivo de prover vida digna a seus agricultores e promover a sustentabilidade alimentar da Comunidade, fazia-o em detrimento das obrigações assumidas no âmbito da Organização Mundial do Comércio, bem como da economia de países não membros.
Não apenas as Comunidades Europeias exportavam produto subsidiado além das quantias estabelecidas em sua lista de compromissos, mas produziam, em razão disso, severas distorções no mercado mundial de açúcar, reduzindo seu valor de venda, e afetando países menos desenvolvidos que tinham nessa commodity grande fonte de renda.
Clarividente era o fato de o produto europeu ser disponibilizado no mercado em uma situação de extrema vantagem, extinguindo, gradualmente, a concorrência no setor.
Dessa forma, com o objetivo de igualar as balanças comerciais e compelir as Comunidades Europeias a cumprirem com seus deveres, Brasil, Austrália e Tailândia utilizaram-se, com muito sucesso, do procedimento inscrito no Entendimento de Solução de Controvérsias.
Tão logo a disputa foi solucionada, e a Organização Comum do Mercado de Açúcar europeu alterada, os frutos começaram a ser colhidos pelos países em desenvolvimento – seu produto tornara-se mais valorizado, e, com o recuo das exportações Comunitárias, novos mercados fizeram-se disponíveis.
O Brasil não constituiu exceção: em apenas um ano após a implementação da decisão do Órgão de Solução de Controvérsias, somente para os países do Oriente Médio, houve um aumento de 170%, em 2006, em relação ao valor exportado no mesmo período do ano anterior. (SECEX apud LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 374-375).
O caso DS266 fora apenas um dos inúmeros casos que corroboram o entendimento de que o Sistema de Solução de Controvérsias da OMC constitui efetivo instrumento de mitigação das desigualdades existentes entre os países menos desenvolvidos e os de maior poder econômico.
As relações econômicas internacionais, certamente, continuam permeadas de injustiças. Entretanto, nesse contexto, um mecanismo tal qual o concebido ao final da Rodada Uruguai transmuta-se em inédita possibilidade de defesa, em grau de igualdade, de nações que, por si sós, não possuiriam condições de fazer frente a abusos contra elas praticados.
A balança que equilibra o mercado concorrencial internacional é, deveras, bastante frágil e, infelizmente, um sistema de solução de controvérsia no qual todas as partes possuam igual poder de barganha, desde a instauração do processo, até efetiva implementação das decisões, constitui, ainda, um ideal utópico.
Os esforços realizados, contudo, no sentido de encurtar o grande vão existente entre nações de maior e menor poder econômico, são motivo de grande louvor, e, dados os seus resultados positivos, conforme na atuação do sistema da Organização Mundial do Comércio no caso DS266, é imprescindível que sejam estimulados. Estar-se-á, assim, um passo mais perto da tão sonhada igualdade no plano da concorrência internacional.
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[1] Até 1º de dezembro de 2009, Comunidade Europeia, por razões jurídicas, era a denominação utilizada pela União Europeia no âmbito da OMC. Atualmente, no entanto, utiliza seu nome real. A União Europeia, assim como os 27 países que a integram, é considerada membro da Organização. Por se tratar de um caso anterior à nova denominação, utilizar-se-á, no presente trabalho, a nomenclatura antiga.
[2] Rodada de negociações multilaterais, iniciadas em 1986, sob o foro do antigo General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), com o objetivo de revigorar o “multilateralismo combalido pela fragmentação causada pelas políticas unilaterais dos governos” (HUDEC apud AMARAL JÚNIOR, 2008, p. 21). Teve por fruto a assinatura de importantes acordos internacionais, dentre eles, o que estabelece a criação da Organização Mundial do Comércio.
[3] A Política Agrícola Comum (PAC), conforme inscrição do artigo 33 do Tratado que institui a Comunidade Europeia, possuía por objetivos: incrementar as atividades da agricultura; assegurar um modo de vida equitativo aos trabalhadores rurais; estabilizar os mercados; garantir a segurança dos abastecimentos alimentares, bem como preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores europeus.
[4] Em torno de 20% de todo o açúcar produzido sob as cotas A e B eram exportados com subsídios para países fora da Comunidade Europeia (NETHERLANDS ECONOMIC INSTITUTE apud LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 334).
[5] O efeito spillover consiste em um resultado secundário de uma atividade ou processo econômico, cuja extensão atinge agentes que não estavam diretamente envolvidos em sua causa primária (SPILLOVER, 2013).
[6] Conforme relatório apresentado pela Corte de Auditores (Court of Auditors) europeia, de número 20/2000, havia forte relação entre o preço do açúcar no mercado internacional e a quantidade de açúcar C produzido em determinado ano. Quanto maior fosse a produção, menor era a cotação média do açúcar refinado no mercado internacional. (LIMA; ROSENBERG, 2009a).
[7] Utilizar-se-á, no presente trabalho, a denominação geral “ACP” para tratar do produto cuja matéria-prima teve origem nos países beneficiados por acordos preferenciais, localizados na África, Caribe, Pacífico e Índia.
[8] Apesar de se denotar, claramente, uma violação ao princípio da Nação Mais Favorecida, no que tange ao regime de importação preferencial de matéria-prima advinda dos países ACP e Índia, fora requisitada ao Conselho Geral da OMC, e, em seguida, concedida à Comunidade Europeia, o direito de manter esses acordos, por meio do denominado waiver (derrogação), inscrito no artigo IX do Acordo Constitutivo da OMC. O Brasil, à época, juntou-se ao consenso geral para concedê-lo (BRASIL, 2009a).
[9] Na safra 2001-2002, foram exportadas 4.097 mil toneladas de açúcar, ou seja, quantidade aproximadamente três vezes superior ao compromisso de redução firmado pelas Comunidades Europeias. (BRASIL, 2013a).
[10] Does not include exports of sugar of ACP and Indian origin on which the Community is not making any reduction commitments. The average export in the period 1986 to 1990 amountes 1.6 mio ton.
[11] O texto do artigo 3º determina: 1 - Os compromissos em matéria de apoio interno e de subsídios à exportação constantes da parte IV da lista de cada Membro são compromissos que limitam a concessão de subsídios e que passam a ser parte integrante do GATT de 1994. 2 - Sob reserva das disposições do artigo 6.º, os Membros não concederão apoios a favor dos produtores nacionais que excedam os níveis de compromisso especificados na secção I da parte IV das suas listas. 3 - Sob reserva das disposições dos n.os 2, alínea b), e 4 do artigo 9.º, os Membros não concederão os subsídios à exportação previstos no n.º 1 do artigo 9.º para os produtos agrícolas ou grupos de produtos especificados na secção II da parte IV das suas listas que excedam os níveis de compromisso em matéria de despesas orçamentais e de quantidades aí especificados, nem concederão esses subsídios para os produtos agrícolas não especificados na mesma secção das suas listas. (ACORDO SOBRE...,1994).
[12] Como, por exemplo, o caso EC – Bananas III, WT/DS27/AB/R.
[13] Artigo 9.1 (c) do Acordo sobre Agricultura: “1 - Por força do presente Acordo, são objeto de compromissos de redução os seguintes subsídios à exportação: [...] c) Pagamentos efetuados para exportação de um produto agrícola financiados através de medidas das entidades públicas, quer representem quer não um encargo para o erário público, incluindo os pagamentos financiados pelas receitas provenientes de um direito nivelador imposto ao produto agrícola em causa ou a um produto agrícola a partir do qual seja obtido o produto exportado;”. (ACORDO SOBRE..., 1994).
[14] Caso Canada-Dairy (WT/DS103/33 e WT/DS113/33).
[15] Segundo estudos apresentados nos relatórios, a beterraba para produção de açúcar C estaria sendo fornecida a uma faixa que varia de 24% a 56% dos custos da produção (LIMA; ROSENBERG, 2009a, p. 347).
[16] Artigo 3.1: Os compromissos em matéria de apoio interno e de subsídios à exportação constantes da parte IV da lista de cada Membro são compromissos que limitam a concessão de subsídios e que passam a ser parte integrante do GATT de 1994. (ACORDO SOBRE..., 1994).
[17] Artigo 31.1 da Convenção de Viena: Um tratado deve ser interpretado de boa fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respectivos objeto e fim. (CONVENÇÃO..., 1969).
[18] Segundo jurisprudência da OMC, o princípio da efetiva interpretação do tratado (principle of effective treaty interpretation) determina que deva ser dado significado a cada um dos termos de um tratado. (WORLD TRADE ORGANIZATION, 2013d, p. 153).
[19] Consequently, the Panel finds that the content of Footnote 1 is of no legal effect and does not enlarge or otherwise modify the European Communities' quantity commitment level specified in Section II, Part IV of its Schedule to be 1,273,500 tonnes of sugar per year, or its budgetary outlay commitment of €499.1 million per year, with effect since 2000/2001.
[20] Artigo 19.1 do ESC: Quando um grupo especial ou o órgão de Apelação concluir que uma medida é incompatível com um acordo abrangido, deverá recomendar que o Membro interessado 9 torne a medida compatível com o acordo. Além de suas recomendações, o grupo especial ou o órgão de Apelação poderá sugerir a maneira pela qual o Membro interessado poderá implementar as recomendações. (ENTENDIMENTO..., 1994).
[21] O referido artigo proíbe a concessão de subsídios à exportação diversos dos já permitidos no Acordo sobre Agricultura. Durante o painel, os demandantes haviam solicitado que, primeiramente, fosse analisada a ilegalidade dos subsídios sob o Acordo sobre Agricultura, para, então, examinar sob a ótica do Agreement on Subsidies and Countervailing Measures (ASCM). O painel, por sua vez, optou, em razão de economia processual, por não apreciar essa segunda parte, alegando, em suma, que o objetivo do Sistema de Solução de Controvérsias é assegurar uma solução positiva para a disputa. Dessa forma, ao recomendar a reforma do regime açucareiro europeu, qualquer violação ao ASCM já estaria sendo sanada, razão pela qual não seria necessário examiná-la.
Graduada em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais, menção em Direito Empresarial, pela Universidade de Coimbra, Portugal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, Marcele Tavares Mathias Lopes. Defesa da concorrência no plano internacional: análise do contencioso entre Brasil e comunidades europeias, relativo aos subsídios à exportação do açúcar – DS 266 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2024, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66994/defesa-da-concorrncia-no-plano-internacional-anlise-do-contencioso-entre-brasil-e-comunidades-europeias-relativo-aos-subsdios-exportao-do-acar-ds-266. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Patricia Araujo de Brito
Por: Lucas Soares Oliveira de Melo
Por: Vitor Veloso Barros e Santos
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