Exercício importante é visitar a História do Direito, tanto para lembrar as origens dos institutos, como para perceber suas evoluções e, infelizmente, muitas vezes, suas involuções.
Recentemente li uma passagem da obra de Flávia Lages de Castro:
Um outro tipo de pena que não feria fisicamente o condenado era a de “morte civil’, uma das penas mais cruéis e danosas não somente para o apenado como também para todos que o cercavam. Esta suprimia todos e quaisquer direitos do indivíduo. O condenado tornava-se um morto em vida porque todos os direitos eram suspensos: desapareciam os laços jurídicos tanto maritais quanto patriarcais, a cidadania e os direitos patrimoniais eram suprimidos, abria-se o processo de herança para seus sucessores, tudo o que o indivíduo conseguisse daí para frente não poderia ser utilizado por ele.
Outras penas não físicas eram a “infâmia”, as multas e o confisco de bens no qual todo o patrimônio do indivíduo passava para o tesouro Real colocando na miséria não só o condenado, mas também toda a sua família e todos que dependiam dele.
A autora se referia a penas cruéis aplicadas há séculos durante as Inquisições Eclesiásticas (Igreja) e Régias (Estatais).
É claro que seria de se pensar que nada sequer parecido poderia ocorrer na atualidade. Afinal, estamos no século XXI.
Mas a realidade é que a História prega peças e não é marcada por um suposto “progresso” linear. Idas e vindas, bem como contradições são comuns em seu seio.
O caso em geral do chamado “Inquérito do Fim do Mundo” levado a termo pelo Ministro do STF, Alexandre de Moraes, é exemplo prático e concreto desses retrocessos que podem fazer saltar para trás centenas de anos.
Pinçando dois casos emblemáticos, o do jornalista Allan dos Santos e o do Deputado Federal Daniel Silveira, se constata que em pleno século XXI, temos a decretação de confisco geral de bens de pessoas e a inviabilização, salvo a caridade e solidariedade alheias e o apoio familiar, da subsistência não só dos perseguidos, mas de seus entes próximos. E para piorar, surge a notícia de que também todas as contas da esposa do Deputado Daniel Silveira, a Advogada Paola da Silva, foram bloqueadas por decisão até o momento sem acesso sequer à implicada e aos defensores. A morte civil agora se transmite para entes próximos, deixando de lado qualquer resquício do chamado “Princípio da Intranscendência” que impede que a pena passe da pessoa do condenado, o que se agrava quando se tratam de meras medidas cautelares (artigo 5º., XLV, CF – embora indicar artigos da Constituição Federal esteja se tornando algo cansativo e inútil).
O retorno não é explícito e nem totalmente congruente. Não se tem (pelo menos ainda não) a desfaçatez de falar expressamente em “morte civil”, em pena de “infâmia” e “confisco de bens”. Também o alcance das medidas adotadas não chega a integralizar a “morte civil” como antigamente. Não há, por exemplo, ao menos por enquanto, atingimento direto de direitos familiares, conjugais, sucessórios etc. No entanto, indiretamente, é claro que há abalo dessas relações, as quais somente se mantém se forem de extrema consistência.
Por outro lado, inexiste qualquer pudor em bloquear todos os bens dos perseguidos e agora até de seus cônjuges que nem sequer são investigados ou processados, proibir que se apresentem em público, participem de manifestações, atuem em redes sociais, concedam entrevistas e até exerçam sua profissão (no caso do jornalista).
Opera-se uma espécie de apagamento ou exclusão arbitrária dos indivíduos. Naquilo que Arendt chamaria de “Vita Activa”, resta abolida a condição humana de “agir”, de não somente ser um homem, mas estar “entre os homens”.
E se não há um retorno integral das penas cruéis (aliás, proibidas pela Constituição Federal – artigo 5º., XLVII, “e”, mas e daí?) são estas suas modalidades ressurretas de forma mais sutil e disfarçada (insidiosa) hoje aplicadas sem nem mesmo obedecer aos limites da legalidade e a um processo legal, ainda que inquisitório. Nos tempos passados essas penas somente eram aplicadas a condenados, depois de um processo formal, inquisitório sim, mas ao menos somente ao seu final. Não se confundiam providências cautelares com penas. Ademais, quando uma Graça era concedida a um condenado pelo Soberano, esta era integral e imediatamente cumprida. Não havia sequer a hipótese mental de procrastinar seu cumprimento e seguir impondo medidas restritivas aos perseguidos criminalmente, muito menos a ideia nefasta de desconsiderar o perdão concedido. Em suma, o processo inquisitorial e as penas cruéis quando assumidas e institucionalizadas chegam a ser menos arbitrárias do que quando se apresentam de forma hipócrita na condição de um “Direito Penal Subterrâneo”, para usar uma expressão de Zaffaroni, emprestada de Aniyar de Castro. Trata-se agora do exercício de um poder punitivo “à margem de qualquer legalidade ou através de marcos legais bem questionáveis, mas sempre fora do poder jurídico”. A aceitação desse exercício de poder subterrâneo e a ausência de esforço em sua limitação o legitima e fomenta ao mesmo tempo em que soterra qualquer resquício de Democracia que se possa imaginar.
Será que chegará o dia em que sentiremos saudades das garantias do sistema inquisitivo e das mínimas chances de absolvição nas ordálias?
REFERÊNCIAS
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