Desenvolvo o presente texto com prazer porque penso estar correto ao criticar a expansão do Direito Criminal. Durkheim me ensinou que que uma sociedade, quanto mais atrasada, mais tende ao Direito Criminal, o qual predomina em relação aos demais ramos do Direito, isso com o apoio popular.[1] Então, fico apreensivo quanto à possibilidade de estarmos involuindo, razão de estarmos recrudescendo o tratamento jurídico-criminal.
Escrevi um texto intitulado “O rigor jurídico-criminal crescente nos trinta anos de vigência da Constituição da República Federativa do Brasil”.[2] Nele, demonstrei que a nossa Constituição Cidadã não era tão boa assim.[3] Ao contrário, ela é má, tem sangue de vulneráveis nas suas entranhas.
Já vi, ouvi e li muitas pessoas que elogiam as intervenções jurídico-criminais dos últimos anos, em nosso País, polarizando o ambiente político e o transferindo para o nosso meio científico (vejo o Direito como ciência) toda solução dos imbróglios gerados especialmente pelos (sub)sistemas cultural (não temos cultura democrática, preferimos ditaduras – isso a nossa história demonstra), político (polarização extrema), econômico (não há boa perspectiva econômica para o mundo consumista – capitalista – em 2024), religioso (cristãos defendem o genocídio que judeus estão praticando genocídio na faixa de gaza, como se cristianismo e judaísmo fossem aliados) etc. Em meio a essa comunicação sistêmica complexa, predominam os ruídos, as alopoiesis na comunicação.
Luhmann me ensinou que a comunicação autopoiética, dada pela tradição, é a desejável.[4] O mesmo posso dizer de Habermas e sua ação comunicativa.[5] Quando há excesso de intromissão de um (sub)sistema social em outro, há corrupção na comunicação (alopoiese), o que não é desejável. É o que estamos vivendo, ante a politização do (sub)sistema jurídico-criminal.
Estamos emendando a Constituição para criminalizar condutas. Em oposição ao sistema jurídico, o político diz que o porte de qualquer quantidade de substância psicotrópica ilícita será crime.[6] A iniciativa é Senador da República Rodrigo Pacheco, o qual propõe a seguinte emenda à Constituição:
Art. 1º O caput do artigo 5º da Constituição Federal passa a viger acrescido do seguinte inciso LXXX:
Art. 5º ...................................................................................
LXXX – a lei considerará crime a posse e o porte independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar.
Vê-se um crime de perigo abstrato cujo risco de dano é presumido de forma absoluta. Isso é um equívoco. Logo que a Lei n. 11.343, de 23.8.2006, foi editada, desenvolvi um livro no qual critiquei a jurisprudência do momento, no sentido de não admitir a incidência do princípio da insignificância para deixar de punir a conduta do seu art. 28 (anterior art. 16 da Lei n. 6.368, de 21.10.1976).[7]
Há quem defenda essa iniciativa parlamentar,[8] a qual é evidente tentativa de barrar a posição que o STF vem tendendo a adotar no julgamento Recurso Extraordinário (RE) n. 635659 (Tema 506 do STF), no qual há indicativo de descriminalização de pequeno porte de maconha para uso pessoal.[9]
A Constituição ter mandado de criminalização já é estranho. Mais estranho é ela se tornar uma espécie de Código Criminal. Porém, tudo passa pela predominância de discursos religiosos e econômicos sobre os de outros sistemas.
Ao lado dos que criticam a expansão do Direito Criminal, havida nos últimos anos,[10] eu tenho lutado por um Direito Criminal de intervenção mínima.[11] Ao revisitar o livro Zaffaroni e Pierangeli, recentemente publicado em nova edição (após a morte de Pierangeli – veja-se a nota de rodapé n. 4),[12] deixo esse pequeno alerta contra a expansão exagerada da repressão jurídico-criminal.
[1] DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 46. Para não deturpar o seu pensamento, transcrevo:
Nas sociedades primitivas, em que, como veremos, o direito é inteiramente penal, é a assembleia do povo quem administra a justiça.
[2] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. O rigor jurídico-criminal crescente nos 30 anos de vigência da Constituição da República Federativa do Brasil. In SANTANA, Paulo Campanha; LEMOS, Maria Cecília de Almeida Monteiro. 30 anos da Constituição: análises contemporâneas e necessárias: uma homenagem dos 50 anos do curso de Direito do UDF. Brasília: Praeceptor, 2018. p. 263-278.
[3] Não estou isolado. Ao contrário, estou muito bem acompanhado, visto Alberto Silva Franco afirma:
Na própria Constituição Federal, de 1988, o modelo garantístico e o princípio da intervenção penal mínima, que são, sem dúvida, dados caracterizadores do Estado Democrático de Direito, não o foram colhidos em sua inteireza, admitindo nocivas interferências. (FRANCO, Alberto Silva. Prefácio à 1ª edição. In ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 15. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2023. p. 15).
Esclareço que esse prefácio foi atualizado, uma vez que cita a Lei n. 12.850, de 2.8.2013, quando tive um exemplar da 1ª edição, publicada em 1997. Aliás, Pierangeli morreu 10.4.2012, antes da edição da referida lei.
[4] LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. v. 1 e 2.
[5] HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría de discurso. 2. ed. Madrid: Trotta, 2000.
[6] SENADO FEDERAL. CCJ aprova PEC sobre as drogas que criminaliza porte e posse em qualquer quantidade. Brasília: TV Senado, 13.3.2024. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/tv/programas/noticias-1/2024/03/ccj-aprova-pec-sobre-as-drogas-que-criminaliza-porte-e-posse-em-qualquer-quantidade#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20e,qualquer%20quantidade%2C%20na%20Carta%20Maior.>. Acesso em: 23.3.2024, às 14h15. O Senado Federal afirma:
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou nesta quarta-feira (13) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 45/2023), que inclui a criminalização da posse e do porte de drogas, em qualquer quantidsade, na Carta Maior. Na visão do relator da PEC Senador Efraim Filho (União-PB), o texto mantém a interpretação da Constituição que considera tráfico de drogas como crime hediondo. É inquestionável, que liberar asx drogas leva ao aumento do consumo”, destacou ele. A proposta segue para o Plenário do Senado.
[7] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Comentários à lei antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006. São Paulo: Atlas, 2007. p. 32.
[8] SILVA, César Dario Mariano da. Criminalização da posse e do porte de drogas como direito fundamental. Consultor Jurídico, Opinião, 30.11.2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-nov-30/criminalizacao-da-posse-e-do-porte-de-drogas-como-direito-fundamental/>. Acesso em: 24.3.2024, às 10h06.
[9] Esse é um recurso que se arrasta no tempo perante o STF. O relator votou dando provimento a ele, em 20.8.2015. A repercussão geral foi reconhecida em julgamento de 9.12.2011 (STF. Tribunal Pleno. RE 635.659-SP. Relator Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4034145>. Acesso em: 24.3.2024, às 11h19).
[10] ROSA, Wndell Luís; LUCCHESI, Érika Rubião; GUEDES, Márcio Bulgarelli. A expansão do direito penal e a perigosa mitigação do princípio da taxatividade: breves considerações sobre o crime de gestão temerária (parágrafo único, do art. 4º da Lei n. 7.492/1986. Ribeirão Preto: Revista Reflexão e Crítica do Direito, ano I, n. 1, p. 2-12, Jan-Dez2013. Disponível em: <https://revistas.unaerp.br/rcd/article/download/349/pdf/1312#:~:text=A%20expans%C3%A3o%20do%20Direito%20Penal,lucro%2C%20inventa%20novas%20formas%20de>. Acesso em: 24.3.2024, às 10h30.
[11] Essa é uma luta acadêmica que tem pequeno eco porque o (sub)sistema jurídico-criminal, enquanto expande em repressão, é reduzido às falácias de outros (sub)sistemas da sociedade complexa, os quais impõem as suas idiossincrasias a ele.
[12] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 15. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2023.
Procurador Federal; Concluiu o Curso de Formação de Oficiais (APMG) e Graduou-se em Direito (UniCEUB); Especialista em Direito Penal e Criminologia (UniCEUB); e em Metodologia do Ensino Superior (UniCEUB); Mestre (UFPE) e Doutor em Direito (UNZL); Professor, Procurador Federal e Advogado; Autor dos livros "Prescrição Penal", "Execução Criminal: Teoria e Prática" e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (Editora Atlas); e de vários artigos jurídicos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIDIO ROSA DE MESQUITA JúNIOR, . Um Brasil que se torna pior em matéria jurídico-criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 abr 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3684/um-brasil-que-se-torna-pior-em-matria-jurdico-criminal. Acesso em: 26 dez 2024.
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