Neste momento que o tema “pirataria” permeia na mídia com uma abordagem sectária e unilateral, momento em que os EUA nos ameaça com as mais diversa sanções econômicas (face a cópia de produtos comerciais), uma pergunta se faz necessária: Quem é o “Pirata”?
O que é biopirataria?
Segundo o site www.amazonlink.org, a biopirataria tem o seguinte conceito:
“O termo "biopirataria foi lançado em 1993 pela ONG RAFI (hoje ETC-Group) para alertar sobre o fato que recursos biológicos e conhecimento indígena estavam sendo apanhados e patenteados por empresas multinacionais e instituições cientificas e que as comunidades que durante séculos usam estes recursos e geraram estes conhecimentos, não estão participando nos lucros.
De modo geral, biopirataria significa a apropriação de conhecimento e de recursos genéticos de comunidades de agricultores e comunidades indígenas por indivíduos ou por instituições que procuram o controle exclusivo do monopólio sobre estes recursos e conhecimentos.
Por enquanto, ainda não existe uma definição padrão sobre o termo biopirataria (baseado no relatório final da Comissão sobre direitos de propriedade intelectual -CIPR).”
O tema biopirataria tem significativa importância para nós, pois o Brasil, com a maior biodiversidade do planeta, está seriamente ameaçado de sua extinção pela própria biopirataria, pelo desmatamento e pela poluição da atmosfera e dos rios pelos agrotóxicos. A região amazônica é responsável por cerca de 70 por cento da biodiversidade do planeta, tem uma extensão de aproximadamente cinco milhões, cento e dez mil quilômetros quadrados, representando o equivalente a quase 70 por cento da área total da região e 60 por cento da área do Brasil, tem a maior área desmatada proporcionalmente ao seu imenso tamanho.
A biodiversidade em passado remoto despertava o interesse dos ecologistas, naturalistas e amantes românticos da natureza, descoberta pelo Capital, significa hoje lucro com um valor estimado na casa de trilhões de dólares por ano; as espécies já estudadas que giram em torno de apenas 2% da sua totalidade são utilizadas como matéria-prima na produção de alimentos, produtos agrícolas, produtos químicos e principalmente medicamentos, onde cerca de 30% da sua totalidade têm seu principio ativo extraído da natureza, gerando uma movimentação na casa de 40 bilhões de dólares, dos quais uma boa parte é proveniente da biopirataria.
A importância de conhecimento tradicional pode ser percebida pelo olhar de um fato simples: 85 % a 90% das necessidades básicas de sustento dos pobres do mundo (mais da metade da população do mundo, incluindo comunidades locais nativas) são baseados em uso direto de recursos biológicos (e conhecimento tradicional relacionado) para alimentos, medicina, abrigo, transporte, etc.; mais de 1,4 bilhão de pequenos fazendeiros pobres se utilizam de sementes conservadas na sua própria fazenda e em técnicas locais para produção de plantas e sementes* ; 57 % da 150 maiores marcas de drogas, durante o período de seis meses de 1993, continha ao menos um importante composto ativo derivado de componentes resultantes da diversidade biológica e das 35 plantas derivadas de drogas incluídas no “top” de venda das 150 melhores drogas, 94% continha ao menos um componente comprovado de uso em práticas medicinais tradicionais por comunidades locais nativas**.
* See: The Crucible II Group. Seedling Solutions. Volume 1: Policy options for genetic resources. People, Plants and Patents revisited. IDRC, IPGRI and Dag Hammarskjold Foundation. Italy, 2000, p.1
** For further information see: Grifo, Francesca. The Origins of Prescription Drugs. In: Fracesca Grifo and Joshua Rosenthal (eds.) Biodiversity and Human Health. Washington DC, Island Press, 1997.
”Biopirataria consiste no ato de aceder a ou transferir recurso genético (animal ou vegetal) e/ou conhecimento tradicional associado à biodiversidade, sem a expressa autorização do Estado de onde fora extraído o recurso ou da comunidade tradicional que desenvolveu e manteve determinado conhecimento ao longo dos tempos (prática esta que infringe as disposições vinculantes da Convenção das Organizações das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica). A biopirataria envolve ainda a não-repartição justa e eqüitativa - entre Estados, corporações e comunidades tradicionais - dos recursos advindos da exploração comercial ou não dos recursos e conhecimentos transferidos.”
A biopirataria no Brasil vem de longe, com a invasão e tomada do território silvícola pelos portugueses em 1500, quando os mesmos roubaram dos povos da região o conhecimento da extração do pigmento avermelhado do Pau Brasil e teve inicio a sua exploração predatória, tendo como irônica conseqüência que a madeira que deu seu nome ao território ocupado, hoje só existe em alguns jardins botânicos, o pirateamento continuou com a seringueira que teve suas sementes pirateadas em 1876 para as colônias Britânicas na Malásia, que após algumas décadas tornou a Malásia o principal exportador de látex, arruinando a economia da Amazônia. Ainda poderíamos citar muitos exemplos, como o quinino e o curare, até chegarmos as formas sofisticadas de biopirataria com suas ONGs e pseudos-explorações, sempre travestidas de excelentes propósitos.
Segue alguns exemplos de apropriação e monopolização dos conhecimentos das populações tradicionais através da Propriedade Industrial, a maioria tendo origem no exterior:
ANDIROBA (Carapa guianensis Aubl).
É uma árvore alta com uma altura de até 25 metros. As suas sementes fornecem um óleo que apresenta propriedades insetífugas e medicinais. É um repelente natural.
Patente: US5958421
Titular: ROCHER YVES BIOLOG VEGETALE.
Trata de uma Composição cosmética ou farmacêutica contendo extrato de Andiroba para inibição do “glucose-6-phosphate dehydrogenase”.
CIPÓ DA ALMA (Ayahuasca - Banisteriopsis caapi)
Os pajés da Amazônia ocidental se utilizam desta planta para produzir uma bebida cerimonial em cerimônias religiosas de cura, para diagnosticar e tratar doenças.
Patente: US 5751P
Titular: MILLER LOREN S
Trata do Banisteriopsis caapi (cv) 'Da Vine'.
COPAÍBA (Copaifera sp).
Fornece um óleo transparente, viscoso e fluido e terapêutico de sabor amargo, que é a sua seiva extraída. É usualmente utilizada como remédio anti-inflamatório e anti-cancerígeno.
Patente: WO9400105
Titular: TECHNICO FLOR SA
Trata de composições cosméticas ou alimentares incluindo Copaíba, em forma de cremes, sabonetes, gels, shampoos, etc.
CUPUAÇU (Theobroma Grandiflorum).
É uma árvore de pequeno a médio porte, é uma fonte primária de alimento na floresta Amazônica, tanto para as populações indígenas, quanto para a fauna. Sua polpa é utilizada no Brasil e Peru para a fabricação de sucos, sorvetes, e tortas.
Patente: WO02081606
Titular: CUPUACU INTERNATIONAL INC
Trata da Produção e utilização da gordura da semente do Cupuaçu, em produtos similar ao chocolate, com a vantagem de ser livre de estimulantes como a cafeína.
CUNANI (Clibatium sylvestre).
É utilizado pelas comunidades nativas na pesca.
Patente: US5786385
Titular: GORINSKY CONRAD
Trata de um poliacetileno, utilizado como pesticida e de forma terapêutica como ativador neuromuscular.
CURARE destacam-se as espécies (Chondrodendron e Strychnos).
É utilizada como veneno.
Patente: US2581903
Titular: LILLY CO ELI
Trata de um preparado ativo derivado do alcalóide.
ESPINHEIRA SANTA (Maytenus ilicifolia)
Utilizada pelas comunidades do Paraná como antiasmática, anticonceptiva, gastrite crônica, indigestão, tratamento de úlceras e em tumores estomacais.
Patente: EP0776667
Titular: NIPPON MEKTRON KK
Trata de um droga para combater úlceras na mucosa gástrica causadas especialmente pelo etanol.
JABORANDI (Pilocarpus jaborandi)
Os índios brasileiros preparam um chá com suas folhas e bebem-no como diurético ou para induzir o suor.
Patente: US5059531
Titular: MERCK PATENT GMBH
Trata de um processo para o preparo de pilicarpina através do isolamento do pilocarpus em culturas in vitro.
KAMBÔ – (Vacina do Sapo - phyllomedusa bicolor)
Utilizada entre os povos indígenas do Brasil e do Peru a vacina do sapo é uma prática antiga com fins medicinais.
Patente: WO9956766
Titular: UNIV KENTUCKY RES FOUND
Trata de um método para o tratamento de Isquemia.
SANGUE DE DRAGO (Croton lechleri)
Sua seiva é usada principalmente sobre feridas para estancar sangramentos, acelerar a cura e prevenir infecções.
Patente: US5211944
Titular: SHAMAN PHARMACEUTICALS INC
Trata de produto antiviral e processo de obtenção do polímero de proanto cianadina, utilizado no tratamento de gripe e herpes.
UNHA DE GATO (Uncaria ssp.)
Utilizado pelos Asháninka no tratamento de asma e inflamações urinárias.
Patente: US5302611
Titular: KEPLINGER KLAUS
Trata de um alcalóide para estimular o sistema imunológico.
Fonte: http://www.amazonlink.org/
Da andiroba à unha de gato, todos esses produtos já foram patenteados no mercado internacional. Se o Brasil não tiver uma postura nacionalista e visão do futuro, não alterar a legislação, de forma a proteger nossos recursos e conhecimentos tradicionais, a biodiversidade do nosso ecossistema estará comprometida de forma irremediável, seja pela utilização dos mecanismos de propriedade Intelectual seja pela exploração predatória destes recursos sem que nada recebamos pelo conhecimento revelado e explorado.
A discussão sobre a biodiversidade se dá com maior ênfase a partir do início da década de 90, com a Rio-92, com a conscientização da necessidade da defesa das populações indígenas e tradicionais e de seus recursos tangíveis e intangíveis, os recursos genéticos e os conhecimentos a estes associados. Outro fato de importância significativa, em Kuala Lumpur, capital da Malásia, foi a sétima conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)*, ou seja, dos países signatários de um dos mais importantes acordos derivados da Rio-92 tendo como principais objetivos a conservação e uso sustentável da biodiversidade, assim como a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso de recursos genéticos.
*A Convenção da Diversidade Biológica -CDB, documento assinado pelo governo brasileiro durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento - a ECO 92, no Rio de Janeiro, e ratificado em 1994, estabelece normas e princípios que devem reger o uso e a proteção da diversidade biológica em cada país signatário. Em linhas gerais, a Convenção propõe regras para assegurar a conservação da biodiversidade, o seu uso sustentável e a justa repartição dos benefícios provenientes do uso econômico dos recursos genéticos, respeitada a soberania de cada nação sobre o patrimôniozexistentezzemxxxseussterritório. O Artigo 8(j) da Convenção da Diversidade Biológica obriga os países signatários a "respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e utilização sustentável da diversidade biológica", bem como "encorajar a repartição justa e equitativa dos benefícios oriundos da utilização dessexxconhecimento,xxinovaçõesxxexxpráticas".
Fonte: www.socioambiental.org
Este assunto passa necessariamente pela discussão de temas, entre outros, como: Propriedade Intelectual, Direitos Intelectuais Coletivos, a figura “sui generis”, a Convenção sobre Diversidade Biológica, (CDB), os acordos GATT-Trips, a Organização Mundial do Comércio, os contratos de acesso, etc.
A Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada em 1994, como resultado da Rodada Uruguai de negociações sobre o comércio internacional, e hoje conta com a participação de mais de 140 países (incluindo o Brasil e a grande maioria dos seus parceiros comerciais). A OMC cuida das regras do comércio internacional, baseadas em acordos multilaterais entre seus membros, referendados pelo legislativo de cada país individual. Também, como resultado da Rodada Uruguai de negociações sobre o comércio internacional, foi estabelecido, no final de 1994, o Acordo Sobre Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs), que aumentou direitos relacionados a propriedade intelectual, dentre eles, o direito de patenteamento para produtos e processos químicos, farmacêuticos e alimentícios.
Em função do acordo TRIPs, o Brasil e muitos países do Terceiro Mundo que não permitiam o patenteamento destes produtos e processos, foram pressionados pelos países hegemônicos a introduzirem em suas leis nacionais o estabelecido no acordo TRIPS, tudo em nome da “harmonização” do direito da propriedade intelectual. Na lógica do TRIPs, havia um ganho (?) para os países em desenvolvimento:o acordo reduzia o peso das retaliações unilaterais, especialmente por parte dos EUA. Todavia, esse ganho tem sido ameaçado pela pressão norte-americana para que os países em desenvolvimento assinem acordos bilaterais e regionais relativos à propriedade intelectual".
Para os países do Terceiro Mundo a “harmonização” das suas leis nacionais ao estabelecido no acordo TRIPs resultou no aumento das desigualdades sociais e econômicas.
A ayahuasca, utilizada em rituais mágico-religiosos por diversas populações amazônicas, foi alvo de tentativas de patenteamento, o que foi prontamente questionado por diversas organizações indígenas, dentre elas, a “Coordinación de las Organizacones Indigenas de la Cuenca Amazonica” (Coica). A ação da Coica impediu a apropriação de um conhecimento coletivo, imemorial e comum à diversos povos. Porém, os EUA conseguiu uma patente de plantas vegetais (US 5.751) que refere-se a ayahuasca.
Na Índia, sementes como a do Basmati, um arroz aromático, que é cultivado por séculos nos campos da região, foi reivindicada e patenteada como uma nova invenção (US 5.663.484) pela empresa norte-americana RiceTec. O óleo da “neem”, uma árvore tradicional, utilizada para fins medicinais e agrícolas há mais de 2000 anos, foi patenteada pela empresa multinacional W.R. Grace em conjunto com o governo dos EUA e posteriormente excluída pelo Instituto Europeu de Patentes (EP 436.257), face o recurso de organismos nacionais e internacionais, entre eles, a “Research Foudation for Cience, Technology and Ecology”, cuja diretora é Vandana Shiva.
A agenda da globalização, conduzida exclusivamente pelos interesses das multinacionais, tenta usar o acordo TRIPs e os regimes de direitos da propriedade intelectual para se apropriar dos recursos da biodiversidade das florestas tropicais (biopirataria) para transformar as sementes, plantas e medicamentos em fontes de lucros inimagináveis para as multinacionais. As sociedades do Terceiro Mundo terão de comprar, a custos elevados, as suas sementes e os seus medicamentos aos concessionários globais da biotecnologia e da industria farmacêutica, o que as empurrará ainda mais para o endividamento e a pobreza. Além disso, verão ainda a inevitável devastação das suas florestas tropicais (mais de 70% das florestas tropicais do planeta estão nos países do Terceiro Mundo).
O art. 8(j) da Convenção da Diversidade Biológica (CDB)* - Tratado Internacional que foi assinado na Conferência da Terra no Rio de Janeiro, em 1992 - obriga os países signatários (quase duzentos países assinaram o Tratado, com exceção de sete países, entre eles os EUA) a "respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e utilização sustentável da diversidade biológica", bem como "encorajar a repartição justa e equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas".
*Artigo 8
Conservação in situ
Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso:
j) Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o
conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas
com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da
diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a
participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a
repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento,
inovações e práticas;
O art. 15 da CDB* dispõe que “o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional; que os recursos genéticos são apenas aqueles providos por Partes Contratantes que sejam países de origem desses recursos ou por Partes que os tenham adquiridos; que o acesso, quando concedido, deverá sê-lo de comum acordo; que deve estar sujeito ao consentimento prévio fundamentado da Parte provedora desses recursos e que cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas para compartilhar de forma justa e eqüitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra natureza com a Parte Contratante provedora desses recursos, sendo que a partilha deve dar-se de comum acordo.”
*Artigo 15
Acesso a Recursos Genéticos
1. Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence a os governos nacionais e está sujeita à legislação nacional.
2. Cada Parte Contratante deve procurar criar condições para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável por outras Partes Contratantes e não impor restrições contrárias aos objetivos desta Convenção.
3. Para os propósitos desta Convenção, os recursos genéticos providos por uma Parte
Contratante, a que se referem este artigo e os artigos 16 e 19, são apenas aqueles
providos por Partes Contratantes que sejam países de origem desses recursos ou
por Partes que os tenham adquirido em conformidade com esta Convenção.
4. O acesso, quando concedido, deverá sê-lo de comum acordo e sujeito ao disposto
no presente artigo.
5. O acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao consentimento prévio
fundamentado da Parte Contratante provedora desses recursos, a menos que de
outra forma determinado por essa Parte.
6. Cada Parte Contratante deve procurar conceber e realizar pesquisas científicas baseadas em recursos genéticos providos por outras Partes Contratantes com sua plena participação e, na medica do possível, no território dessas Partes Contratantes
7. Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme o caso e em conformidade com os arts. 16 e 19 e, quando necessário, mediante o mecanismo financeiro estabelecido pelos arts. 20 e 21, para compartilhar de forma justa e eqùitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra natureza com a Parte Contratante provedora desses recursos. Essa partilha deve dar-se de comum acordo.
O Acordo TRIPS, que ampliou o âmbito de cobertura das patentes para incluir formas de vida ou qualquer invenção no setor tecnológico (art. 27)* debilita o potencial e as promessas da Convenção da Diversidade Biológica, dado que cada país que é parte no Tratado e no Acordo tem que aplicar ambos. Os conflitos entre a CDB e o TRIPS colocam sérios problemas à sua implementação.
*Artigo 27
Matéria Patenteável
1.Sem prejuízo do disposto nos parágrafos 2 e 3 abaixo, qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial (5). Sem prejuízo do disposto no parágrafo 4 do Artigo 65, no parágrafo 8 do Artigo 70 e no parágrafo 3 deste Artigo, as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto a seu setor tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente.
2.Os Membros podem considerar como não patenteáveis invenções cuja exploração em seu território seja necessário evitar para proteger a ordem pública ou a moralidade, inclusive para proteger a vida ou a saúde humana, animal ou vegetal ou para evitar sérios prejuízos ao meio ambiente, desde que esta determinação não seja feita apenas por que a exploração é proibida por sua legislação.
3.Os Membros também podem considerar como não patenteáveis:
O governo da Índia fez uma proposta para harmonizar o TRIPs com a CDB: a incorporação de um dispositivo ao acordo TRIPs estabelecendo que as patentes inconsistentes com o art. 15 da CDB não sejam concedidas. Há países que acham necessário a criação de um regime legal sui generis de proteção aos direitos intelectuais coletivos.
Os movimentos antibiopirataria e de oposição ao acordo TRIPs, promovidos pela sociedade, questionaram o papel do Estado e desestabilizaram o poder das empresas multinacionais. Graças aos direitos às sementes e aos medicamentos, os movimentos populares forçaram os Estados a recuarem em relação ao poder da agricultura, das multinacionais farmacêuticas e dos países do G-8. O fato das multinacionais farmacêuticas terem desistido das ações contra a Índia e Brasil, representam a vitória da sociedade contra a política de globalização dos direitos da propriedade intelectual.
Outra conseqüência danosa, sob o nosso ponto de vista, da globalização dos direitos da propriedade intelectual. se refere a legalização da biopirataria, apropriação dos conhecimentos tradicionais de nossos povos, que se expande até o total controle de nossas vidas com o patenteamento de remédios, sementes, alimentos e código genético. Se analisarmos o acordo de Doha sobre saúde pública e o TRIPS, sob a ótica dos Direitos Humanos, significa que se a população de um pais dependente tecnologicamente estiver morrendo em razão de uma epidemia, este pais poderá recorrer a OMC para a aprovação da importação de remédios mais baratos de outro pais, através de uma licença compulsória, em outras palavras se não morrerem todos, morrem quase todos e esses todos somos nós.
Para os paises dependentes, como é o caso do Brasil, esta globalização apresenta impactos políticos dramáticos, como esclarece Boaventura dos Santos, em palestra no Fórum Social Mundial de 2002:
“Estamos diante de um novo autoritarismo, um autoritarismo que passou do estado para a própria sociedade civil. Para mim, isso é uma idéia nova que temos que confrontar, uma idéia de fascismo social. Nós vivemos hoje em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas”.
Nos impressiona a capacidade de discorrer com tantos argumentos carregados de verdade e sentimento, quanto Vandana Shiva na sua narrativa da luta contra a patente sobre o neem, já mencionada anteriormente, que tem seu auge na nulidade da patente EP436257*, pelo EPO, Escritório de Patente Europeu, esta patente tem como um dos titulares o Governo dos EUA, que obteve o monopólio para o extrato do neem como fungicida e pesticida, um conhecimento indiano, mencionado em textos há mais de 2000 anos, como um purificador e repelente de insetos e pragas.
Em palestra, novembro de 2003, em Northampton, Massachuts, Vandana Shiva declara num paralelo ao caso ENRON**,
“O chamado mercado livre é um mercado totalmente amarrado. Essas empresas nunca chegam e dizem. “Tudo bem, há água para se vender. Por quanto vocês estão dispostos a compra-la?” Não. O que elas fazem é forçar os serviços públicos a investir e forçar os serviços públicos a se tornarem os compradores. De modo que literalmente, nós compramos de volta aquilo que pertence a nós. Enquanto isso, triplicam-se, quadriplicam-se, tornam-se dez vezes, trinta vezes mais caros os preços, seja daquilo que for. Essa é a trapaça por meio da qual a privatização e a mercantilização de nossas necessidades vitais está acontecendo”,
e continua,
“Se todo o sistema existir para não ser mais do que uma fonte de lucros para meia dúzia de corporações, na realidade, basta saber fazer algumas contas simples, a vida se torna cara demais para ser adquirida. Não se pode comprar vida. E agora, que querem mercantilizar a própria base da vida e possuí-la e revendê-la para nós, a consequência, basicamente, são pessoas descartáveis. Porque para a maioria das pessoas, nesse caso, a vida se torna proibitiva; de qualquer forma, uma vida desse tipo, mesmo para os que puderem adquiri-la, deixa de ser vida.”
*EP436257
Depósito: 10-07- 1991
Título: Method for controlling fungi on plants by the aid of a hydrophobic extracted neem oil
Depositantes: GRACE W R & CO ; US AGRICULTURE
Patente nos EUA: US4556562
** Enron, gigante americana do setor de energia, pediu concordata em dezembro de 2001, após ter sido alvo de uma série de denúncias de fraudes contábeis e fiscais.
Ainda Vandana Shiva, no artigo “Dois golpes contra a biopirataria”:
“A biodiversidade é um recurso das pessoas. Enquanto o mundo industrializado e as sociedades ricas voltam as costas para a biodiversidade, os pobres no Terceiro Mundo continuam dependendo dos recursos biológicos para sua alimentação e nutrição, para o cuidado com a saúde, para a energia, vestimenta e moradia. A biodiversidade não é, como a atmosfera ou os oceanos, um bem comum no sentido ecológico. Ela existe em países específicos e é usada por comunidades particulares. É global apenas em seu papel de matéria-prima para as corporações multinacionais”.
Como podemos constatar, o impacto da globalização nos sistemas de proteção da Propriedade Industrial vai muito além da harmonização dos sistemas. A adequação das legislações nacionais aos tratados Internacionais chegam a denotar a uniformização dos sistemas, como é o caso da proposta para a “Patente Mundial”. Por outro lado, este ambiente adverso provocado por este impacto causa um outro impacto: um choque positivo, ou seja, as contradições desta globalização econômica tem como resultante as condições que podemos utilizar para enfraquecer o sistema e caminharmos na direção da propriedade coletiva do conhecimento.
A proteção de propriedade intelectual não pode ser um fim em si mesmo, não podemos aceitar que este movimento de uniformização dos direitos de propriedade intelectual seja indiferente às necessidades de desenvolvimentos de Estados membros, não dando a possibilidade da utilização de flexibilidades que sirvam aos interesses nacionais, o interesse da humanidade não pode ser superado pelo monopólio e acumulação de capital.
Recentemente, o Governo Federal publicou o Decreto n° 6.159, de 17 de julho de 2007, que altera o Decreto no 3.945, de 28 de setembro de 2001, que define a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético e estabelece as normas para o seu funcionamento, mediante a regulamentação dos arts. 10, 11, 12, 14, 15, 16, 18 e 19 da Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização.
O Decreto, entre outros, dispõe no art. 9°-D que deva haver um Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios entre as partes envolvidas e que este contrato deve anteceder o início do desenvolvimento tecnológico ou anexado quando no depósito do pedido de patentes, conforme abaixo:
“Art. 9o-D. Poderá obter a autorização especial de que trata o art. 11, inciso IV, alínea “c”, da Medida Provisória no 2.186-16, de 2001, para a finalidade de bioprospecção, a instituição interessada em realizar acesso ou a remessa de componente do patrimônio genético que atenda aos seguintes requisitos, entre outros que poderão ser exigidos pelo Conselho de Gestão:
§ 4o A exigência da apresentação de Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios pode ser postergada pelo Conselho de Gestão, desde que o interessado declare não existir perspectiva de uso comercial e o Termo de Anuência Prévia preveja momento diverso para a formalização do contrato.
§ 5o Na hipótese prevista no § 4o, a formalização do Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios sempre deverá anteceder o início do desenvolvimento tecnológico ou o depósito do pedido de patentes.
O Decreto regulariza a situação quando no pedido de patente legalmente estabelecido, mas no caso da biopirataria, que não é legal, como ficamos?
Precisamos de alternativas: Do ponto de vista interno temos que ter uma visão universal, não basta uma política sobre inovação tecnológica e desenvolvimento industrial*, esta política tem que vir acompanhada de uma política eficiente voltada para a educação**, uma rede atuante de Instituições de apoio a pesquisa e ao desenvolvimento, estruturas jurídicas especializadas na área tecnológica, um INPI, não cartorial, difusor e fomentador de uma cultura própria em Propriedade Intelectual, e não um simples reprodutor do discurso da OMPI e EPO, um INPI que atue em parceria com nossas Universidades, Centros de Pesquisas, Industria Nacional e inventores isolados e por que não à população em geral.
*Na Faculdade de Farmacologia da USP, cerca de 80% das verbas são destinadas à pesquisa de cosméticos e não fármacos. Jornal Inverta, 28/03/2005.
**Hoje só 9% dos brasileiros de 18 a 24 anos de idade estão na Faculdade, no Chile 27%, Argentina 39% e
Canadá 62%. Jornal Inverta, 28/03/2005.
Concluindo, é possível ter uma alternativa a esta globalização, que nos propicie a inclusão tecnológica e um desenvolvimento sustentável, internamente com uma política nacionalista e desenvolvimentista e externamente uma política de aliança com os paises do sul no interesse comum.
Referências Bibliográficas:
- Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio - TRIPs foi internalizado pelo Decreto n. 1.355, de 30 de dezembro de 1994. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/legislacao/
- Artigos sobre pirataria. Disponível em: http://www.amazonlink.com/biopirataria/
- Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB. Decreto Legislativo nº 2, de 5 de junho de 1994. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/legislacao/
- Decreto n° 6.159, de 17 de julho de 2007. Disponível em http://www.presidencia.gov.br/legislacao/
- Definição de biopirataria. Disponível em: http://www.amazonlink.org/biopirataria/biopirataria_faq.htm#biopirataria
- Informações sobre Patentes. Disponível em: http://ep.espacenet.com/
- SANTOS, Boaventura de Sousa , Fórum Social Mundial – 2002 – Palestra e Entrevista a “Folha de São Paulo”.
- SHIVA, Vandana. Biodiversidade, direitos de propriedade intelectual e globalização. In: Boaventura, S. S. (org.). Semar outras soluções: Os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
- SHIVA, Vandana. Palestra, novembro de 2003, em Northampton, Massachuts.
- SHIVA, Vandana. Artigo “Dois golpes contra a biopirataria.”. Disponível em: http://www.tierramerica.net/2001/0715/pgrandesplumas.shtml
- Site: http://www.socioambiental.org/home_html
Engenheiro mecânico, pós-graduado em Propriedade Industrial pela COPPE/UFRJ e examinador de patentes do INPI. Pesquisador em Propriedade Industrial, com MBA em Políticas Públicas em Inovação e Propriedade Intelectual e Especialização em Propriedade Industrial, ambos pela UFRJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Luiz Antonio Xavier dos. Biopirataria Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 set 2008, 19:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/14767/biopirataria. Acesso em: 23 dez 2024.
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