Resumo: Com o presente artigo, procura-se analisar o instituto do mandado de segurança, considerado como um remédio constitucional, e em especial, o seu elemento “direito líquido e certo”, partindo do seu conceito (com todas as discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito) e evidenciando sua natureza jurídica de condição da ação.
Palavras chave: Mandado de segurança. Direito líquido e certo. Condições da ação. Extinção do processo sem julgamento de mérito.
Introdução. O mandado de segurança como remédio constitucional.
A concessão do mandado de segurança é assegurada no artigo 5º, incisos LXIX e LXX da Constituição Federal. Enquanto o primeiro dispositivo regulamenta o mandado de segurança individual, o segundo, refere-se ao coletivo, delimitando, inclusive, a legitimidade para sua propositura.
O “mandamus”[1] trata-se, em verdade, de um remédio constitucional, inserido sob a ótica de que as garantias individuais não devem apenas ser proclamadas, mas sim, devidamente efetivadas. É um recurso de defesa do indivíduo com relação ao Estado. E, para Cássio Scarpinella Bueno (1999), o mandado de segurança se caracteriza como instrumento de maior densidade, capaz de permitir que o Poder Judiciário arbitre, em tempo hábil, os litígios envolvendo o particular e a administração.
De acordo com a Magna Carta, o writ[2] deve ser concedido para a proteção de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Tais preceitos se coadunam com a definição proposta por Helly Lopes Meirelles (1990, p. 15):
“Mandado de segurança é o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça”.
Ora, os impetrantes do writ podem ser pessoas físicas, jurídicas ou mesmo entes despersonalizados, sendo que, sua finalidade precípua é a proteção de direito líquido e certo (individual ou coletivo), lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade pública (ou agente no exercício de atribuições do Poder Público), através de ação constitucional, com rito sumário.
Deve ser proposto contra a autoridade coatora, a fim de que respeite o direito ofendido ou ameaçado.
Note-se, ainda, que se trata de um instrumento subsidiário, posto que, para os atos restritivos à liberdade de locomoção, deve ser impetrado o habeas corpus e, no que tange ao direito de conhecimento de informações constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público ou direito a retificação de dados, é cabível o habeas data.
O mandado de segurança e o direito líquido e certo.
A expressão “direito líquido e certo”, mencionada no texto constitucional de 1988, sucessora de “direito líquido e incontestável” (utilizada na carta de 1934), tem gerado, ao longo dos tempos, intensas discussões doutrinárias e jurisprudenciais.
Os estudiosos do direito, até hoje, não pacificaram o conceito de “direito líquido e certo”.
Em linhas gerais, consoante o ministro Luiz Fux (2007)[3], diz-se que é o direito evidente prima facie, porquanto não comporta a fase instrutória inerente aos ritos que contemplam cognição primária. Tal direito pressupõe a incidência da regra jurídica sobre fatos incontroversos, provados por documentos acostados, desde logo, à petição inicial.
Em primeiro lugar, deve ser ressaltado que se encontra definitivamente superada a interpretação, segundo a qual, apenas seria direito líquido e certo aquele que não demandasse maiores considerações. Não apenas as questões simples, mas também as intrincadas e embaraçadas, ensejam a concessão da segurança.
Neste sentido, preconiza Hely Lopes Meirelles (1990, p. 27):
“Quanto à complexidade dos fatos e à dificuldade da interpretação das normas legais que contêm o direito a ser reconhecido ao impetrante, não constituem óbice ao cabimento do mandado de segurança, nem impedem seu julgamento de mérito. Isto porque, embora emaranhados os fatos, se existente o direito, poderá surgir líquido e certo, a ensejar a proteção reclamada. Bem por isso, já decidiu o TJSP que as questões de direito, por mais intrincadas e difíceis, podem ser resolvidas em mandado de segurança”.
Ora, a lei, ao mencionar direito líquido e certo, de modo algum, pretendeu excluir da apreciação do Poder Judiciário, as questões complexas.
Grande parte dos doutrinadores entende que a legislação deveria ter mencionado à necessidade de o fato (e não o direito) que dá sucedâneo à impetração ser líquido e certo. A expressão utilizada seria imprópria, responsável por toda a confusão existente no direito pátrio. Ainda segundo Hely Lopes Meirelles (1990), melhor seria se aludida a precisão e comprovação dos fatos e situações que ensejem o direito pleiteado.
Por outro lado, para Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006), o importante não seria apenas a definição de direito líquido e certo ou a certeza quanto aos fatos, mas sim a coexistência de três requisitos essenciais, a saber: a certeza jurídica, sendo que o direito deveria decorrer de norma legal expressa, não se admitindo a utilização de analogia, eqüidade ou princípios gerais do direito; o direito subjetivo do próprio impetrante, não cabendo a ninguém, em nome próprio, pleitear direito alheio; e, por fim, o direito líquido e certo referido a objeto determinado, não se prestando o mandamus para pleitear prestações indeterminadas.
Mas a celeuma verdadeiramente encontra fulcro na definição de direito líquido e certo na ordem material e/ou processual.
Enquanto para os materialistas, o conceito de direito líquido e certo estaria inserido na ordem jurídica material, revestindo o próprio direito, de incontestabilidade, para os processualistas, a expressão seria uma condição da ação da segurança, atendendo, segundo Celso Barbi (apud Kepler Gomes Ribeiro, 2002), ao modo de ser de um direito subjetivo no processo. Assim, a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir, não lhe daria a característica de liquidez e certeza, que só seria atribuída se os fatos em que se fundar puderem ser comprovados de forma incontestável e certa, no processo.[4]
Condições da ação.
Consoante a vertente processualista, o direito líquido e certo seria uma condição da ação para a propositura do mandado de segurança. Para que possa ser avaliada tal assertiva, mister uma breve consideração acerca das condições da ação.
O ordenamento jurídico atual é expresso ao assegurar, na Lei Fundamental, o direito de ação. Em sede constitucional, trata-se do direito à obtenção de um pronunciamento jurisdicional. Todavia, analisando-se a ação sob o ponto de vista processual, fundamental o preenchimento das condições da ação. Garantido o acesso ao judiciário, o direito de ação se sujeita, portanto, às regras processuais infraconstitucionais. Nesta seara, leciona Luiz Rodrigues Wambier (2002, p. 139):
“O acesso à jurisdição, sob a perspectiva constitucional, é direito extraordinariamente amplo quanto ao seu exercício, na medida em que qualquer afirmação que o autor faça acerca de lesão ou ameaça a direito que entenda de sua titularidade pode se constituir em pretensão suficiente para exercer essa garantia, de modo a passar a ter o direito de receber alguma resposta jurisdicional. Entretanto, desde o momento em que é exercido pelo autor da demanda, o direito de ação se submete às regras processuais, devendo respeitar as condições previstas no CPC, que, presentes, permitem sua admissibilidade regular pelo Poder Judiciário, dando ensejo a que, no processo de conhecimento, se profira sentença de mérito, pela procedência ou improcedência do pedido formulado pelo autor”.
Segundo Maria Helena Diniz (2005), as condições da ação seriam requisitos que não diriam respeito à relação processual, por serem necessários ou exigidos legalmente para o pronunciamento do órgão judicante sobre a procedência ou improcedência do pedido formulado pelo autor. Em verdade, configurar-se-iam como requisitos legais para que o pedido formulado, em juízo, pudesse ser analisado em seu mérito.
O Código de Processo Civil atual, filiando-se à teoria de Enrico Tullio Liebman, dispôs as seguintes condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade de partes e interesse de agir[5]. São condições necessárias para a análise do mérito de qualquer ação. Ausentes quaisquer delas, deverá o processo ser extinto sem julgamento de mérito (artigo 267, inciso VI).
Direito líquido e certo: condição da ação no mandado de segurança?
Tal qual já fora disposto, as condições da ação são elementos necessários para a análise do mérito de qualquer ação. Assim, afirmar que o direito líquido e certo se caracterizaria como condição do mandado de segurança, seria considerar que, uma vez inexistente este, estaria obstado o julgamento de mérito do mandamus.
Alguns estudiosos processualistas, dentre os quais Sérgio Ferraz (1992), acreditam que o direito líquido e certo seria uma condição da ação não ortodoxa, mas específica:
“O direito líquido e certo é, a um só tempo, condição da ação e seu fim último. Assim, a sentença que negue ou afirme o direito líquido e certo realiza o próprio fim da ação; trata-se de uma decisão de mérito. Cuida-se de uma condição da ação não ortodoxa, amalgamada com a própria finalidade da ação, condição da ação não afinada integralmente aos cânones da lei processual. Por tudo isso, a sentença que nega a existência do direito líquido e certo é verdadeira decisão de mérito e não, apenas, declaratória de inexistência de uma condição da ação. Deve ela, por conseqüência, concluir pela denegação do writ. (...)”.
Em contrapartida, merece destaque, a posição de Kepler Gomes Ribeiro (2002), que, ao avaliar tal entendimento, perfaz uma crítica, evidenciando uma contradição. Segundo ele, o doutrinador teria enquadrado o direito líquido e certo como uma condição da ação, mas não o tratado dessa maneira. Leciona que considerar o direito líquido e certo como condição da ação seria fazer uma confusão na sistemática processual pátria, posto que sua ausência não acarretaria a extinção do feito sem julgamento de mérito:
“Vê-se, assim, que o processualista em comento, apesar de enquadrar o direito líquido e certo como sendo uma condição da ação e/ou pressuposto de admissibilidade, na verdade, não tratou como se assim o fosse, pois afirma que a ausência da liquidez e certeza acarreta a denegação do writ e não a extinção sem julgamento do mérito. E, ao afirmar que tal denegação faz coisa julgada a cristalização de insuportável injustiça, tal autor implicitamente expressou que esta coisa julgada é formal e material e não meramente formal. (...)”
E continua:
“Não se trata o direito líquido e certo verdadeiramente nem de uma condição da ação nem de pressuposto de admissibilidade, pois se o fosse, a sua falta redundaria em extinção do processo sem julgamento de mérito. Portanto, data vênia, (...), não se pode afirmar ser a liquidez e certeza do direito uma condição da ação ou um pressuposto de admissibilidade se, afinal, não é tratado processualmente como se o fosse, até porque o próprio art. 16 da Lei do Mandado de Segurança, dá a entender, nas suas entrelinhas, que o writ deve ser denegado mesmo quando não apreciado o seu mérito, de forma que se deve entender que a liquidez e a certeza do direito pode ser encarada também do ponto de vista processual e não só material. Porém, enquadra-lo como sendo condição da ação ou pressuposto processual seria fazer confusão com nossa sistemática processual”.
A seu turno, Cássio Scarpinella Bueno (1999) também considera o direito líquido e certo como uma condição de admissibilidade de julgamento da ação, específica desta ação constitucional, ao lado das outras três, genéricas e de conhecimento notório[6]. Conforme ressaltado por Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira (2007), o próprio Supremo Tribunal Federal, já teria corroborado este parecer de que o direito líquido e certo seria pressuposto de admissibilidade do mandado de segurança, atinente à existência de prova inequívoca dos fatos em que se basear a pretensão do impetrante e não à procedência desta, matéria de mérito.
Conclusões.
Em que pesem os louváveis entendimentos em contrário, o direito líquido e certo se caracteriza, sim, como uma condição da ação para o mandado de segurança. Trata-se de uma condição específica do mandamus, não se evidenciando qualquer confusão na sistemática processual.
Ora, uma vez ausente o direito líquido e certo, o writ será denegado.
Conforme salienta Kepler Gomes Ribeiro (2002), existem duas hipóteses de sentença denegatória: quando ausente o direito líquido e certo por precariedade de provas ou necessidade de dilação probatória ou quando há convicção do juiz de que, diante de todas as provas possíveis para um determinado caso, não existe liquidez e certeza do direito do impetrante. É evidente que, no primeiro caso, não há julgamento de mérito e, no segundo, houve a análise meritória.
A situação supra é suficiente para se concluir que o direito líquido e certo é condição da ação. Em não havendo a demonstração clara e eficaz da existência do direito líquido e certo, ou mesmo caracterizada a necessidade de dilação probatória, tem-se como ausente uma condição da ação, e, conseqüentemente, extinção sem julgamento de mérito. Por outro lado, se houver a análise do direito líquido e certo e o entendimento de que este não existe, foi preenchida a condição da ação (houve exame meritório), muito embora seja denegada a ordem. Neste caso, não há necessidade de dilação probatória, mas sim, consoante o entendimento do magistrado, inexiste o direito pleiteado (podendo ser feito um paralelo com a hipótese de improcedência da ação).
Ousa-se, também, divergir da opinião de Sérgio Ferraz (1992), uma vez que, não preenchido devidamente a condição da ação cristalizada no direito líquido e certo, não há extinção com julgamento de mérito, mas sim, sem julgamento de mérito e, nos termos do artigo 16 da lei 1.533/51, faculta-se a renovação do mandamus.
Bibliografia.
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[1] Mandado, segundo Bueno e Costanze (2007), é termo jurídico originado do latim “mandatus” ou “mandamus”, cujo significado é uma ordem ou determinação.
[2] A expressão “writ” é utilizada em razão da semelhança do mandado de segurança com o instituto do direito americano que determina o acatamento da constitucionalidade das leis, conforme explica De Plácido e Silva (1993). Dos “writs” existentes, o que mais se assemelharia à nossa ação constitucional em comento, seria o “writ of injunction”, remédio destinado à suspensão de ato ilícito, de ente privado ou agente do poder público.
[3] RMS 20654/ SC; Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 2005/ 0151897-1. T1 – Primeira Turma. Julgamento em 22 de maio de 2007. DJ 21.06.2007, p. 273.
[4] Dentre os materialistas, destaca-se Alfredo Buzzaid e, entre os processualistas, Celso Barbi, Costanze, Ovídio Batista e Sérgio Ferraz.
[5] Nelton dos Santos e José Roberto dos Santos Bedaque (2004) ensinam que o legislador pátrio abraçou a teoria de Liebman acerca do direito da ação, concebendo as condições da ação como requisitos à obtenção de um julgamento de mérito. O diploma instrumental civil, ao adotar a noção da ação como direito abstrato, não vincula à existência do direito substancial afirmado pelo demandante. Portanto, possuem direito de ação tanto aquele cujo pedido é julgado procedente quanto aquele que tem o pedido julgado improcedente.
[6] Ernane Fidélis dos Santos (1994) esclarece que as condições de admissibilidade do julgamento da lide englobariam tanto as matérias da ação quanto as questões processuais.
Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. Direito líquido e certo: condição da ação no mandado de segurança? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2008, 18:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/15012/direito-liquido-e-certo-condicao-da-acao-no-mandado-de-seguranca. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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