Procurar-se-á demonstrar, com base na exata interpretação do art. 14 da Lei 10.826/2003 e da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e do STF, o erro da decisão.
1 – Da incriminação do porte ilegal de armas e de munições
O porte ilegal de armas foi, durante décadas, apenas uma contravenção penal. Em vista da crescente criminalidade violenta, foi editada a “Lei de Armas de Fogo” (Lei 9.437/97), que tornou essa conduta um crime, cominando pena de detenção de um a dois anos e multa.
Tal lei não foi suficiente para conter a criminalidade violenta. Pelo contrário, ano a ano, cresciam as taxas de várias modalidades de crimes, como homicídio e extorsão mediante seqüestro. O Estado brasileiro, como de costume, não tomou as necessárias providências administrativas para fortalecer a segurança pública. Mais uma vez, sua atitude foi aprovar uma lei penal mais rigorosa. E, assim, nasceu o famoso “Estatuto do Desarmamento”, a Lei 10.826/2003.
Seu art. 14 dispôs sobre o crime de porte de arma de fogo de uso permitido:
“Porte ilegal de arma de fogo de uso permitidoArt. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente”.
Vê-se que importantes alterações foram realizadas. Primeiramente, a lei não pune apenas o porte ilegal de arma de fogo, mas também de acessórios de munições. Além disso, a pena foi aumentada de 1 a 2 anos para de 2 a 4 anos. Assim, o crime deixa de ser considerado de menor potencial ofensivo (com julgamento nos Juizados Especiais), alcançando o grau de alto potencial ofensivo. Por fim, o crime torna-se inafiançável, ou seja, o acusado tem de responder ao processo preso, a não ser que a arma esteja registrada em seu nome.
Ora, é indubitável que o legislador terminou por considerar o porte ilegal de armas como um crime de relevante gravidade. Chama atenção o fato de tornar-se crime o porte ilegal de munição. Assim, atualmente, é crime o porte ilegal de arma, isoladamente, ou seja, sem munição, e o porte de munição, isoladamente, ou seja, sem estar inserida em uma arma.
Tal conclusão é decorrência lógica da redação do art. 14 do Estatuto do Desarmamento. Porém, há uma vertente na doutrina que, a despeito disso, advoga que somente é crime o porte ilegal de arma municiada. Será demonstrado, a seguir, o erro de tal posicionamento.
2 – Da constitucionalidade do art. 14 da Lei 10.826/2003
As infrações penais comportam diversas classificações e um delas refere-se ao momento da proteção do bem jurídico (como vida, liberdade e propriedade), ou seja, se é necessária a efetiva lesão a esses bens ou se basta a exposição a risco dos bens protegidos. No primeiro caso, há os crimes de dano e, no segundo, os crimes de perigo.
No caso dos crimes de perigo, a lei penal antecipa a proteção aos bens jurídicos incriminando as condutas que simplesmente colocam em risco esses bens. Para a configuração do crime, a lei requer apenas a probabilidade de dano e não a sua ocorrência efetiva. Há duas espécies principais de crimes de perigo:
a) crimes de perigo concreto: só se caracterizam se houver, no caso, a comprovação do risco ao bem protegido.O tipo penal requer a exposição a perigo da vida ou da saúde de outrem. Ex.: crime de maus-tratos (art. 136);
b) crimes de perigo abstrato ou presumido: o risco ao bem jurídico protegido é presumido de modo absoluto (presunção juris et de jure) pela norma, não havendo necessidade de sua comprovação no caso concreto. Ex.: omissão de socorro (art. 135).
O crime de porte ilegal de arma, previsto no art. 14 da Lei 10.826/2003, é, obviamente, crime de perigo abstrato ou presumido. Não é preciso demonstrar a ocorrência do risco para a vida, a integridade física ou o patrimônio de outras pessoas. Basta a conduta do agente para estar consumado o crime.
Parte da doutrina advoga a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, por suposta violação aos princípios da lesividade e da intervenção mínima (cf., por todos, QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral, p. 157). Porém, sérias objeções devem ser feitas a esse posicionamento.
Em primeiro lugar, a Constituição, em momento algum, enumera tais princípios. Obtê-los mediante simples interpretação do texto constitucional seria um verdadeiro “contorcionismo hermenêutico”. Aliás, é sintomático que, quando um doutrinador discorda da escolha do legislador, a tentação é taxar logo sua interpretação de inconstitucional, como se a Carta Magna devesse se vergar aos caprichos de quem quer que seja. Mais do que isso, a Constituição chega a exigir a atuação do “Direito Penal Máximo” quando se trata de crimes hediondos e assemelhados (cf. art. 5°, XLVIII). Também é interessante perceber que a quantidade de atribuições enumeradas ao Estado na Constituição faz com que ele seja muito mais um Estado máximo do que mínimo. Sem dúvida alguma, estamos mais próximos do socialismo do que do liberalismo. Pretender que o Estado interfira fortemente em quase todas as áreas imagináveis e colocar o Direito Penal como campo de “intervenção mínima” é visivelmente contraditório. O sistema penal não deve obedecer a uma lógica diversa dos outros sistemas.
Em segundo lugar, “perigo” é um conceito jurídico indeterminado, cujo campo de significação pode variar entre uma possibilidade remota e uma extrema probabilidade de risco. Não existe um “ponto médio” onde deveria se situar a atuação penal. Pelo contrário, está dentro da discricionariedade do legislador determinar a partir de que ponto o risco é inaceitável. Além disso, considerar inconstitucionais os crimes de perigo abstrato levaria a relevantes indagações: dever-se-ia extirpar de nosso ordenamento jurídico os crimes de omissão de socorro (Código Penal, art. 135) e de formação de quadrilha ou bando (CP, art. 288)? Ignora-se a existência de qualquer “garantista” que requeira a supressão desses artigos!
De todo modo, existe realmente um perigo na conduta de quem porta uma arma, mesmo que esteja desmuniciada. O agente poderá não utilizá-la naquela ocasião, mas poderá dela servir-se em outras situações, nas quais a arma estará municiada. O risco para a incolumidade de outras pessoas sempre existe quando uma arma está à disposição de alguém que não tem condições para portá-la. Nesse sentido ilustram Winter e Lima:
“Imaginemos um caso em que o indivíduo é flagrado transportando uma arma de fogo desmuniciada no porta-luvas de seu automóvel. Não há, no caso, qualquer possibilidade de uso instantâneo. Pense-se, todavia, que, na hipótese, esta pessoa está se dirigindo à sua residência, a poucos quilômetros da apreensão da arma de fogo, para buscar projéteis e matar seu inimigo. É razoável dizer que o agente não tem disponibilidade sobre o objeto e, no caso, a conduta é atípica? Esta conduta não está colocando em perigo a incolumidade pública? Parece-nos que ambas as perguntas devem ser respondidas negativamente”.
Esta é posição pacífica da jurisprudência do TJDFT, in verbis:
“PORTE DE ARMA DESMUNICIADA. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE. REGIME.
1. MUITO EMBORA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JÁ TENHA SE PRONUNCIADO NESTE SENTIDO (RHC 81.057, DJ DE 29.04.2005, PGS 30), DA ATIPICIDADE DO PORTE EM RAZÃO DA ARMA SER ENCONTRADA DESMUNICIADA, TEM-SE QUE A RAZÃO DA CRIMINALIZAÇÃO DAS ARMAS DE FOGO CLANDESTINAS É EM FACE DO EFETIVOPERIGO QUE REPRESENTAM PARA A COLETIVIDADE COMO UM TODO; E DA NECESSIDADE DE UM EFETIVO CONTROLE, DELAS E DE SEUS PROPRIETÁRIOS PELO PODER PÚBLICO.
Classe do Processo: 20030810013072APR DF Data de Julgamento: 28/06/2007”
“PENAL. PORTE DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIDADA. IRRELEVÂNCIA. TIPICIDADE. ARTIGO 14 DA LEI 10.826/2003.
A NORMA PENAL INCRIMINADORA DO ARTIGO 14 DA LEI Nº 10.826/2003 NÃO DESCREVEU A CONDUTA ILÍCITA COM A EXIGÊNCIA DE MUNICIAMENTO DA ARMA, DE MODO QUE, PARA A CONFIGURAÇÃO DO CRIME DESCRITO PELO REFERIDO ARTIGO, TIPO PENAL DE CONTEÚDO MÚLTIPLO, BASTANTE A PLENA SUBSUNÇÃO DA CONDUTA DOS ACUSADOS A UM DOS VERBOS ALI PRESENTES.
A CIRCUNSTÂNCIA DE A ARMA ENCONTRAR-SE DESMUNICIADA, É IRRELEVANTE PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO PREVISTO NO ART. 14 DA LEI Nº 10.826/03.
Classe do Processo: 20050710095754APR DF
Data de Julgamento: 19/07/2007”
“PENAL. PROCESSO PENAL. POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO. ART. 12, DA LEI N. 10.826/03. PROVAS SUFICIENTES DA AUTORIA E MATERIALIDADE. CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL, CORROBORADA PELOS DEPOIMENTOS DE TESTEMUNHAS. RETRATAÇÃO EM JUÍZO SEM QUALQUER VEROSSIMILHANÇA. CONDENAÇÃO MANTIDA.
(...)
2. INDIFERENTE, PARA CARACTERIZAÇÃO DO CRIME DE POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO EM INTERIOR DE RESIDÊNCIA, QUE A ARMA ESTEJA DESMUNICIADA. PRIMEIRO, PORQUE O TIPO PENAL EM QUESTÃO PUNE TANTO A POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO QUANTO A POSSE IRREGULAR DE MUNIÇÃO, SEPARADAMENTE CONSIDERADAS, NÃO EXIGINDO A PRESENÇA CONCOMITANTE DE AMBAS. DEPOIS, TRATA-SE DE CRIME DE MERA CONDUTA, CUJA CONSUMAÇÃO PRESCINDE DA OCORRÊNCIA DE RESULTADO LESIVO.
Classe do Processo: 20060710202197APR DF
Data de Julgamento: 10/05/2007”
Em julgamento recente, o Superior Tribunal de Justiça mantém o entendimento no mesmo sentido do TJDF:
“CRIMINAL. HC. PORTE DE MUNIÇÃO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. CONDUTA TÍPICA. PERIGO Hipótese em que ao paciente foi imputada a prática do crime previsto no art. 14 da Lei 10.826/2003 por terem sido encontradas, em tese, sob sua guarda, oito cápsulas calibre 38. Esta Turma já decidiu que o porte de munição configura conduta típica, eis que caracterizado o perigo abstrato ao objeto jurídico protegido pela Lei n.º 10.826/2003, na esteira do entendimento consolidado quanto ao porte ilegal de arma de fogo desmuniciada. Precedente. Ordem denegada.” (HC 70080 / SP, julgado em 10/05/2007)
Portanto, não há nenhum óbice constitucional à categoria dos crimes de perigo abstrato e, especialmente, quanto ao crime de porte ilegal de armas, como demonstrado extensivamente nos julgados colacionados.
3 – Da correta interpretação do RHC 81.057-8/SP
Mesmo que, somente por hipótese, se admitisse a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, deve-se verificar qual é o real alcance doRHC 81.057-8/SP, tantas vezes debatido na doutrina.
No citado julgamento, mostram-se relevantes os seguintes trechos:
“4. Não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os comissíveis mediante ameaça – pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos – da faca à pedra e ao caco de vidro –, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena. 5. No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir duas situações, à luz do princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo a produzir disparo – e, por isso, não se realiza a figura típica.” (grifou-se)
Primeiramente, o acórdão refere-se a arma incapaz de disparar, o que, obviamente, não é o caso, pois a arma do crime em questão é eficiente para o disparo de projéteis. Portanto, algum perigo ela representa, pois, mesmo desmuniciada, pode ser futuramente utilizada pelo agente.
Porém, o dado mais relevante está na hipótese levantada pelo STF: se a arma está desmuniciada, mas a munição está à disposição do agente naquele momento, de modo que ele possa municiá-la sem demora, tem-se o tipo penal. Em termos de risco, não há diferença significativa entre uma arma cuja munição já se encontra instalada e outra cuja munição pode ser instalada em poucos momentos.
Portanto, o juízo monocrático fez interpretação incorreta do citado julgado da Corte Suprema. Mesmo admitindo-se a existência dos princípios da lesividade e da ofensividade, estes incidem no caso, pois a arma municiada é aquela pronta para ser municiada constituindo um perigo concreto para a coletividade.
4 – Conclusão
Em determinados casos, a opção legislativa pode ser extremamente criticável, por ineficaz e divorciada da realidade. O Estatuto do Desarmamento é um desses casos (sobre o tema, recomenda-se a contundente crítica de Gilberto Thums: “Estatuto do desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade comentários por artigo – análise técnica e crítica”). Existe o risco bastante concreto de se desarmar o cidadão comum, mas deixar ilesos criminosos violentos.
Porém, essa é a opção legislativa, aprovada de acordo com as regras do jogo democrático. Não cabe ao intérprete adequar a lei a sua visão de mundo, ou seja, à realidade idealizada por ele. A lei e a Constituição devem ser interpretadas dentro da lógica do razoável, não sendo possível dar à norma significados que são totalmente estranhos a ela. A liberdade do intérprete deve ter seus limites, sob pena de desconfigurar-se a noção de ordenamento jurídico.
Outra questão diz respeito à banalização dos princípios jurídicos. Atualmente, quando um doutrinador quer dar relevo a determinada posição ideológica, logo invoca um princípio, mesmo que não haja a mínima generalidade nele. Facilmente, poderiam ser encontrados mais de mil “princípios” enunciados pelos juristas brasileiros. Ora, não é possível sustentar um sistema jurídico minimamente coerente em uma miríade de “inícios” ou “fundamentos”. Nesse ponto, é relevante lembrar a clássica definição de “princípio” fornecida por Bandeira de Mello (2004, p. 841-842):
“Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.”
Portanto, posta a lei, ela deverá ser interpretada logicamente: goste-se ou não, hoje é crime tanto o porte de arma desmuniciada quanto o porte de munição fora da arma. A discordância doutrinária é legítima, mas não altera esse fato.
Bibliografia
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 4. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2006.
MELO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2005.
THUMS, Gilberto. Estatuto do desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade comentários por artigo (análise técnica e crítica). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
WINTER, Maria Lucia; LIMA, Vinicius Winter de Souza. A tipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada e condutas assemelhadas. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br , 07.10.2004
Procurador do Banco Central do Brasil em Brasília. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá. Professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip). Professor de Direito Penal, Processual Penal e Administrativo nos cursos Objetivo e Pró-Cursos. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Co-autor do livro "Direito Penal Acadêmico". Home Page: http://www.alexandremagno.com
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Alexandre Magno Fernandes. O crime de porte ilegal de arma sem munição, ou, quando o desejo tenta desbancar a realidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 nov 2008, 09:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/15334/o-crime-de-porte-ilegal-de-arma-sem-municao-ou-quando-o-desejo-tenta-desbancar-a-realidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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