1. INTRODUÇÃO. A LEI ATÉ OS DIAS ATUAIS. TEMAS POLÊMICOS
Como se sabe, a Constituição Federal (CF), por meio de seu art. 5.º, XLIII, introduziu no ordenamento jurídico nacional a figura do crime hediondo. A redação do dispositivo mostrou-se clara desde então, no sentido de que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
O fim almejado pelo constituinte foi de a lei ordinária criar empecilhos, impedindo a concessão de benefícios a quem perpetrasse crimes da espécie ou assemelhados. Além do executor material da infração, também os partícipes, mesmo que por omissão (art. 13, § 2.º, do CP), ficaram na mira do dispositivo constitucional.
A lei ordinária não tardou. Em 1990, foi sancionada a Lei n. 8.072, trazendo todas as diretrizes penais e processuais. Não conceituou o crime hediondo, deixando essa missão para a doutrina, o que se mostrou correto, porquanto o legislador, em regra, comete deslizes em suas conceituações. Provocou, porém, profunda alteração no universo jurídico criminal, com o endurecimento sensível nos campos penal e processual. Pari passu com as vedações processuais e penais amalgamadas no texto constitucional, o legislador infraconstitucional aumentou penas, criou o regime integral fechado, vedou a liberdade provisória e a negação de qualquer instituto despenalizante durante a execução da pena, ressalvado o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da punição.
Em 23 de fevereiro de 2006, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) – por 6 votos a favor e 5 contra –, ao julgar o Habeas Corpus (HC) n. 82.959/SP, posicionou-se pela inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º da Lei n. 8.072/90, declarando que a adoção do regime integral fechado e a impossibilidade de progressão violavam a Carta Magna.[2]
Se, de um lado, passou a valer a progressão de regime para todo e qualquer crime, a decisão do STF trouxe um quadro no mínimo esdrúxulo e um desequilíbrio ímpar, fatalmente desproporcional e inconcebível. Explica-se. Se os autores de crimes de menor e médio potencial ofensivo tinham direito à progressão após o cumprimento de um sexto da pena aplicada (art. 112 da LEP), com o decisório, os condenados por crimes hediondos passaram a ter a mesma benesse; não mais seriam obrigados a cumprir dois terços da pena em clausura. Em outras palavras, um crime hediondo ou equiparado passou a ter o mesmo peso, quando da fase de execução da pena, dos demais crimes de potencial ofensivo inferior.
Boa parte dos Juízes de Direito das execuções penais não aderiu ao posicionamento do STF, vez que não possui caráter vinculante, e por ter sido deduzida em caso interpartes (controle difuso) sem efeito erga omnes.[3] Não se olvide, outrossim, que a decisão foi apertadíssima, 6 a 5. De qualquer modo, o grande mote para os Magistrados reside na desproporcionalidade derivada desse decisório, ou seja, equiparou-se um furtador a um estuprador ou homicida; um mero agressor a um latrocida.
Em outra ponta, porém, boa parte de Magistrados das execuções penais aderiu à decisão do STF, concedendo a progressão do fechado para o semi-aberto, tão logo cumprido aquele ínfimo percentual de pena.
A desproporcionalidade reclamada por aqueles Magistrados acabou tendo um ponto-final com a edição da Lei n. 11.464/2007, objeto maior deste trabalho.
2. CONCEITO
Hediondo é o crime alarmante, pavoroso, depravado, horrendo, arrepiante, que causa indignação moral etc., isto é, crime que objetivamente mais ofende aos bens juridicamente tutelados. Para DAMÁSIO DE JESUS, hediondo é o crime que, pela forma de execução ou pela gravidade objetiva do resultado, provoca intensa repulsa[4].
3. A LEI N. 8.072/90 E OS NOVE CRIMES HEDIONDOS
O art. 1.º da Lei dos Crimes Hediondos (LCH) traz em seus sete incisos e no parágrafo único um rol de nove tipos penais, independentemente de sua consumação, a saber: homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2.º, I, II, III, IV e V); latrocínio (art. 157, § 3.º, in fine); extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2.º); extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e §§ 1.º, 2.º e 3.º); estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); epidemia com resultado morte (art. 267, § 1.º); falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e §§ 1.º, 1.º-A e 1.º-B); genocídio.
São considerados hediondos por equiparação a tortura, o terrorismo e o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Somente o terrorismo não foi disciplinado no Brasil.
4. A LEI N. 11.464/2007
Sancionada em 29 de março de 2007 e trazendo nova redação ao art. 2.º da Lei n. 8.072/90, aparentemente publicada às pressas, em edição extra do Diário Oficial da União (DOU), passamos a analisar a LCH em função do novo diploma.
Redação anterior:
“Art. 2.º Os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
I – anistia, graça e indulto;
II – fiança e liberdade provisória.
§ 1.º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.
§ 2.º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.
§ 3.º A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei n. 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá prazo de trinta dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.”
Na nova redação, foi mantido o caput e o inc. I. A redação do inc. II foi modificada, o § 1.º foi revogado, dando lugar a dois novos parágrafos; os §§ 2.º e 3.º foram mantidos e passaram a ser §§ 3.º e 4.º, sucessivamente:
“II – fiança.
§ 1.º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.
§ 2.º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.
§ 3.º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.
§ 4.º A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei n. 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.”
5. ANISTIA, GRAÇA E INDULTO. A LIBERDADE PROVISÓRIA
Os crimes hediondos são insuscetíveis de graça, indulto e anistia (art. 2.º, I). Como o texto constitucional nada fala acerca de graça, somente indulto, a Lei de Execução Penal (LEP) passou a tratá-la como indulto individual. A LCH veio explicitar o art. 5.º, XLIII, tornando insuscetíveis de graça e indulto, tanto o individual como o coletivo, no tocante aos crimes hediondos. A novidade do diploma reside na possibilidade de liberdade provisória, mantendo, no inc. II, a vedação à fiança.
Curioso o proceder do legislador. De um lado, vedou a liberdade provisória com fiança e, de outro, permitiu a liberdade provisória sem fiança. Óbvio que esta, se puder ser concedida, nem sequer permitirá o ônus de o agente ser obrigado a recolher qualquer valor aos cofres públicos. Além de beneficiar o criminoso hediondo, manteve atadas as mãos do Magistrado.
Um milionário ganhará a liberdade e nem sequer arcará com o ônus do pagamento da fiança. Se o crime hediondo é o que mais fere os bens jurídicos tutelados, atingir o bolso de quem pode seria salutar. A exigência do pagamento de fianças adequadas e compatíveis aos crimes de maior potencial ofensivo transmitiria a certeza de maior severidade contra criminosos diferenciados. A adequação dos patamares do art. 325 do Código de Processo Penal (CPP) seria o passo ideal.
Na esteira do abrandamento penal e processual, vemos como a mais séria conseqüência do novo texto a quase equiparação do criminoso hediondo ao criminoso comum no âmbito processual. O autor de crime hediondo passa a se submeter à regra geral do CPP, não mais às regras especiais previstas na LCH.
Com o fim da vedação à liberdade provisória, praticamente, a diferença no campo processual que ainda permanece entre criminoso comum e hediondo fica por conta do prazo da prisão temporária.
Conquanto sujeito à regra geral do CPP, isto é, à presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva, um criminoso hediondo não é um criminoso comum, e os Juízes de Direito devem estar atentos a essa dessemelhança. Para tanto, a aferição da presença dos pressupostos há de ser ainda mais cautelosa, sob pena de se tornar, ele Magistrado, um fator adicional de banalização da criminalidade e conseqüente impunidade, que grassa em nosso País.
Não é pouco dizer, o equilíbrio deve nortear cada decisão.
Hodiernamente, a prisão cautelar, seja hediondo ou não o crime, deriva de flagrante ou de preventiva. Raramente, a constrição nasce de pronúncia ou de sentença condenatória recorrível.
Até a edição da Lei n. 11.464/2007, mostrava-se de um rigor extremado a vedação absoluta da liberdade provisória. O mais plausível seria a permissão excepcional. Conviria que a atual redação do § 3.º não se circunscrevesse à fase de sentença, mas a qualquer fase do processo-crime, desmistificando qualquer outra ilação.
Em outras palavras, a lei deveria dar o parâmetro da prevalência da prisão cautelar sobre a liberdade provisória, não o contrário como sobreveio com o novo diploma. De lege ferenda, a sugestão seria que a redação do inc. II ou do § 3.º fosse “O juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá responder ao processo em liberdade”. Importante seria o diploma demarcar os paradigmas entre um crime e outro, entre um criminoso e outro.
Pragmaticamente, quando se trata de crimes hediondos, a custódia prevalece sobre a liberdade, vez que, quase sempre, vêm imbricados, na pessoa do autor ou no contexto fático, pressupostos que autorizam sua constrição. Esse pragmatismo, entretanto, cedia em inúmeras ocasiões, e a concessão da liberdade provisória se impunha, embora vedada antes do novel diploma. E essa é a grande vantagem da nova previsão legal. Explica-se. A vedação à liberdade provisória se constituía em verdadeira encruzilhada. Não raras vezes, no transcurso de um processo, a soltura se mostrava imperativa, mas, por ser proibida a liberdade provisória, a opção ficava entre a manutenção da custódia e o relaxamento. A manutenção era uma injustiça, e o relaxamento, um erro técnico, pois a prisão fora legal.
Um exemplo ilustrará melhor o raciocínio. Suponha-se que "A" cometeu estupros continuados contra sua filha, "B", por longo período até 1995. "B" decide noticiar os crimes à autoridade policial em 2005. Lavra um Boletim de Ocorrência. Quando o pai descobre, desaparece. Pede-se sua prisão temporária e, mais tarde, a prisão preventiva. "A" encontra-se em lugar incerto e não sabido. Passado certo período, "A" é preso. No interrogatório, o Magistrado descobre que o réu, desde 1995 – da data do último fato até a data atual –, manteve vida regrada, com emprego fixo e endereço certo, além de ser primário e sem antecedentes. É justa a prisão cautelar? É necessária a custódia?
Se, na prática, a prisão cautelar devido à imanente presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva quase sempre se mostra adequada, a custódia deve guardar harmonia com o princípio da presunção da inocência e com o princípio da necessidade da prisão cautelar.
Agora, com a inovação da Lei n. 11.464/2007, excluído o impedimento à liberdade provisória, torna-se viável o benefício, impondo-se as condições de praxe ao preso (arts. 327 e 328 do CPP). Em outras palavras, afastou-se o empecilho técnico.
Nesse contexto, de grande valia é a orientação dada por WEBER MARTINS BATISTA[5]. A aferição raciocinada da necessidade de custódia pode ser resumida assim: “O Juiz examina as circunstâncias ligadas ao fato e à pessoa do réu para realizar dois tipos de julgamento. De um lado, formula um juízo de certeza: com base no que o réu ‘fez’, em razão de sua ‘culpabilidade’, impõe-lhe um tipo de pena, em qualidade e em quantidade. De outro lado, formula um juízo de probabilidade: com base no que o réu ‘é’, e imaginando o que ‘poderá’ vir a fazer se permanecer solto e decreta ou mantém sua prisão cautelar. Assim o fazendo, estará presumindo a ‘necessidade’ da medida, em face da possibilidade de o réu fugir ou pôr em risco a ordem pública”[6].
Em que pese os reclamos da imprensa, mormente a escrita[7], a técnica processual foi atendida.
5.1. Os reflexos da permissão da liberdade provisória em outros diplomas legais
Na medida em que se passa a permitir a liberdade provisória nos crimes que mais ofendem os bens jurídicos tutelados, certamente restam revogadas tacitamente todas as disposições em contrário. Não mais se cogita a vedação à liberdade provisória no Direito Processual Penal brasileiro.
Assim, o art. 44 da Lei n. 11.343/2006, ao preconizar que “Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos” (grifo nosso), restou revogado.
Pelo mesmo fundamento, também foram revogados o art. 21 do Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/2003) e arts. 7.º e 9.º da Lei n. 9.034/95.
Aquele tem a seguinte redação:
“Art. 21. Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória.”
Os arts. 7.º e 9.º rezam que:
“Art. 7.º Não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa.
[...]
Art. 9.º O réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta lei.”
Já defendíamos a revogação do art. 21 desde a edição do diploma, vez que ofendia de morte o princípio da proporcionalidade. Na época, escrevemos, em nosso livro Prisão Temporária, que “O Estatuto do Desarmamento, Lei n. 10.826/2003, diz em seu art. 21 que ‘Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória’. Versa o dispositivo sobre os crimes de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito e figuras equiparadas, comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo, e de forma clara proíbe o Magistrado, malgrado ausentes requisitos da prisão preventiva, de conceder a liberdade provisória. Semelhante vedação mostra-se incompatível com a situação de réu primário e de bons antecedentes, que sofrerá, em caso de condenação, pena definitiva privativa de liberdade, em patamar inferior ou igual a quatro anos, e que, em tese, fará jus ao regime aberto ou a uma das penas substitutivas previstas nos arts. 44 e seguintes do diploma penal. Violado, pois, o princípio da proporcionalidade”[8].
Único diploma a manter defeso o direito de recorrer em liberdade é a Lei n. 9.034/95. Ora, se a LCH admite essa benesse (veja item 7), via oblíqua atinge aquela vedação, restando revogada a imposição em tela. Ademais, a atual Lei Antidrogas permite o recurso em liberdade ao primário e de bons antecedentes (art. 59). Assim, a regra geral passa a ser a bússola de toda e qualquer privação da liberdade.
6. EXECUÇÃO PENAL. A PROGRESSÃO DE REGIME. OS PERCENTUAIS E SUA APLICABILIDADE
A nova redação do § 1.º do art. 2.º da LCH traz o novo paradigma. Em crimes hediondos, o agente iniciará o cumprimento de sua pena em regime inicial fechado. Revoga-se, assim, incondicionalmente a possibilidade de cumprimento de pena no regime integral fechado. Todas as polêmicas acabaram. Nas palavras da Ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o entendimento do STF “firmou-se na interpretação sistêmica dos princípios constitucionais da individualização, da isonomia e da humanidade da pena. Afastou-se, assim, a proibição legal quanto à impossibilidade de progressão carcerária aos condenados pela prática de crimes hediondos e equiparados”[9].
O § 2.º do mesmo art. 2.º disciplina a progressão de regime que se dará após o cumprimento de dois quintos (ou 40%) da pena, se o apenado for primário, e de três quintos (ou 60%), se reincidente.
Questão de alta indagação reside na aplicabilidade dos percentuais em face das penas em cumprimento. Muitos entendimentos surgirão, dependendo da adesão à posição do STF. A seguir a nossa interpretação.[10]
• Dissidentes: por se tratar de novatio legis in mellius, a nova lei tem aplicação imediata a partir da vigência.
• Adeptos: trata-se de lex gravior ou novatio legis in pejus, de modo que não pode retroagir consoante princípio da irretroatividade da lei mais severa (art. 5.º, XL, da CF). Não importa o momento processual, ou seja, se processo julgado definitivamente ou não, há de se ter em conta que as normas atinentes à fase de execução da pena têm nítido caráter penal, de modo que a nova lei alcança somente os crimes hediondos e equiparados cometidos a partir da data de sua publicação.
E quanto aos crimes previstos na Lei de Tortura?
Como se sabe, a Lei n. 9.455/97 prevê, em seu art. 1.º, § 7.º, que o condenado, salvo a hipótese omissiva (§ 2.º), iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Sempre se empregou o critério estatuído no art. 112 da LEP, isto é, cumprido um sexto, permitia-se a progressão. Com a Lei n. 11.464/2007 complementando o disposto no referido § 7.º, estamos diante de uma lex gravior, de sorte que aqui deve ser observado o entendimento adotado acima para os adeptos da posição do STF. Em outras palavras, somente se implementa a nova disciplina aos crimes de tortura praticados a partir de 29 de março de 2007.
Harmonizou-se a simetria entre todos os crimes hediondos e assemelhados.
7. O RECURSO EM LIBERDADE
Na época da edição da Lei n. 8.072/90, para a doutrina em geral, o legislador provocara enorme contradição ao proibir a concessão de fiança e de liberdade provisória e, ao mesmo tempo, no então art. 2.º, § 2.º, permitir que o Juiz de Direito concedesse na sentença a liberdade provisória, após a devida fundamentação.
Aquela aparente contradição deixa de existir com a nova redação do inc. II, porquanto, com a possibilidade de liberdade provisória, esta pode vir antes, durante ou ao término do processo.
Hipótese rara de ocorrer, entretanto, se a liberdade provisória for permitida em sede de sentença condenatória, para o antigo § 2.º e atual § 3.º, o Juiz de Direito deverá justificar a benesse.
A situação alvitrada pelo atual § 3.º refoge à lógica, ao bom senso. Ademais, do conflito entre os requisitos permissivos da liberdade e os autorizadores da custódia, extrai-se a seguinte regra: se o réu permaneceu em liberdade durante o processo, poderá recorrer em liberdade, salvo situações excepcionais; se respondeu ao processo preso, de regra, ser-lhe-á vedado o recurso livre. Isso porque, lá, inexistiram motivos autorizadores da prisão preventiva para que sofresse a constrição e, aqui, remanesceram motivações para sua clausura decorrentes do flagrante ou preventiva.
Age equivocadamente o Magistrado que, estando ausentes motivações de custódia, mantém o réu preso até a prolação da sentença.
8. PRISÃO TEMPORÁRIA
Não houve novidade, o art. 2.º, no atual § 4.º, reza que a prisão temporária tem prazo de até 30 (trinta) dias, prorrogáveis por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade.
9. BENEFÍCIOS PRISIONAIS (ART. 5.º DA LCH)
Livramento Condicional. O art. 5.º alterou a redação do art. 83 do Código Penal (CP), inserindo o inc. V, por meio do qual o condenado por crime hediondo ou assemelhado deve cumprir dois terços da pena para fazer jus ao livramento condicional.
No caso de reincidente específico, ou seja, do reincidente em crimes hediondos ou assemelhados, não caberá benefício algum, devendo cumprir a pena em regime fechado. Não são permitidos benefícios aos que praticaram crimes hediondos, salvo a liberdade provisória que acabamos de analisar.
Há a reincidência específica quando o agente, tendo sido irrecorrivelmente condenado por qualquer dos crimes hediondos ou assemelhados previstos no diploma em comento, vem novamente cometer um deles, como: atentado violento ao pudor e estupro; latrocínio e homicídio qualificado etc., observada a restrição do art. 64, I, do diploma penal (prescrição da reincidência).
O CP de 1940 previa a reincidência genérica, quando os crimes fossem de natureza diversa; e específica, quando crimes da mesma natureza (art. 46, I e II). A reincidência específica importava na aplicação da pena privativa de liberdade acima da metade da soma do mínimo com o máximo (art. 47, I, do CP). Na reforma de 1984, remanesceu somente a genérica, e a LCH revitalizou a específica.
Penas restritivas de direitos. A maior parte dos crimes hediondos e assemelhados traz em sua gênese a elementar da violência, de modo que fica vedada a pena substitutiva, conforme impedimento expresso do art. 44, I, do CP. A exceção ficaria para crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e §§ 1.º, 1.º-A e 1.º-B), contudo ainda que não perpetrado com violência, a pena mínima de 10 anos supera em muito o máximo de 4 anos que autoriza a pena substitutiva.
A única possibilidade ficava por conta do crime de tráfico de drogas.[11] A novel disciplina, entretanto, dada pelo art. 44 da Lei Antidrogas (Lei n. 11.343/2006), igualmente impede o benefício da pena substitutiva.
Consigne-se que a pena restritiva de direitos tem sua disciplina estatuída no CP e sua aplicabilidade se restringe às infrações leves e médias, jamais a crimes hediondos e assemelhados.
De se concluir que, atualmente, as penas restritivas são inaplicáveis, in totum, aos crimes hediondos e assemelhados.
Suspensão condicional da pena. Esse instituto não é vedado pela LCH, de modo que pode ser aplicado a algumas decisões. Um estupro ou um atentado violento ao pudor, na forma tentada, aplicada a redução máxima, poderiam ter a pena suspensa. Não há impedimento legal, de sorte que, atendidos os pressupostos do CP, caberia a suspensão.
Em 1999, decisão da lavra do eminente Celso de Mello, nos autos do HC n. 72.697-6/RJ, apontando a incompatibilidade da suspensão pela incompatibilidade com o regime integral fechado, foi um dos marcos para que se passasse a negar benefício. Em sentido contrário: HC n. 84.414/SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 14.9.2004.
No STJ, existia controvérsia entre as duas Turmas, uma admitindo a suspensão (6.ª T.), quando satisfeitos os requisitos do art. 77 do CP, e outra negando pela incompatibilidade (5.ª T.).
Em nosso sentir, como o regime de cumprimento de pena passou a ser o inicial fechado, é de se supor viabilizada a suspensão condicional da pena, uma vez afastada a incompatibilidade que a vedava.[12]
10. DELAÇÃO PREMIADA (ART. 7.º DA LCH)
Sem alterações. Introduzido o § 4.º ao art. 159 do CP, com a seguinte redação: “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços.”
Os requisitos legais são: a) prática do crime em concurso de pessoas; b) delação feita por um ou mais dos co-autores ou partícipes à autoridade; c) eficácia da delação, pois, se não propiciar a libertação da vítima, não haverá redução de pena. O quantum da redução dependerá da maior contribuição prestada pelo agente para a libertação do seqüestrado.
11. QUADRILHA OU BANDO (ART. 8.º DA LEI N. 8.072/90)
Por tratar do crime de quadrilha ou bando, recorrendo aos elementos estruturais do art. 288 e repetindo o preceito primário, inserindo a finalidade da prática de crimes hediondos ou assemelhados, a LCH diferenciou os dispositivos pelo elemento subjetivo.
Enquanto no CP o elemento subjetivo está direcionado a todo e qualquer crime, na LCH o fim é de finalidade estrita; as penas no CP ficam entre os patamares de 1 e 3 anos de reclusão, enquanto, na LCH, variam de 3 a 6 anos de reclusão.
Perdeu o sentido a discussão se o art. 8.º havia revogado o art. 14 da Lei n. 6.368/76, ante sua revogação expressa pela atual Lei n. 11.343/2006.
12. CAUSA DE AUMENTO DE PENA (ART. 9.º)
Os crimes de latrocínio; extorsão qualificada pela violência; extorsão mediante seqüestro simples ou qualificada pela idade da vítima, pela duração, por ter sido cometida por quadrilha ou bando, ainda, se praticada com resultado morte; no estupro e atentado violento ao pudor, simples ou qualificados pelo resultado lesão grave ou morte, terão acréscimo de metade, respeitado o limite superior de 30 anos de reclusão, no caso de a vítima estar nas hipóteses do art. 224 do CP.
Requisitos para incidência:
a) Situações do art. 224: vítima não maior de 14 anos; alienada ou débil mental, e o sujeito conhecia essa circunstância; não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência. Anote-se que a causa de aumento, no caso de crimes de estupro e atentado violento ao pudor, somente incidirá se do fato resultar lesão corporal grave ou morte (art. 223 e parágrafo único do CP). É que a presunção legal de violência (art. 224 do CP), por ser elemento constitutivo do tipo penal, não se pode converter, também, em causa especial de aumento de pena, sob pena de bis in idem.
b) A menoridade da vítima deve ser considerada na data da conduta e não na data da produção do resultado, aplicando-se a teoria da atividade (art. 4.º do CP). O crime ocorrendo, portanto, na data do aniversário aplica-se a majorante; idem se a conduta se der antes de a vítima completar 14 anos e o resultado agravador vier depois, quando se desprezará a agravante genérica do art. 61, II, "h", do CP (crime cometido contra criança), segundo DAMÁSIO DE JESUS.[13]
c) O Juiz de Direito não pode fixar a pena acima de 30 anos.
[1] Juiz Criminal em Sorocaba, Mestre em Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal e Processual Penal na Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ) e Professor de Direito Penal Especial e Processo Penal. Autor das obras Prisão Temporária e Exame OAB – 2.ª Fase: Área Penal, ambas pela Editora Saraiva.
[2] Informativo STF n. 418: “Em conclusão de julgamento, o Tribunal, por maioria, deferiu pedido de habeas corpus e declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º da Lei n. 8.072/90, que veda a possibilidade de progressão do regime de cumprimento da pena nos crimes hediondos definidos no art. 1.º do mesmo diploma legal – v. Informativos n. 315, n. 334 e n. 372. Inicialmente, o Tribunal resolveu restringir a análise da matéria à progressão de regime, tendo em conta o pedido formulado. Quanto a esse ponto, entendeu-se que a vedação de progressão de regime prevista na norma impugnada afronta o direito à individualização da pena (art. 5.º, LXVI, da CF), já que, ao não permitir que se considerem as particularidades de cada pessoa, a sua capacidade de reintegração social e os esforços aplicados com vistas à ressocialização, acaba tornando inócua a garantia constitucional. Ressaltou-se, também, que o dispositivo impugnado apresenta incoerência, porquanto impede a progressividade, mas admite o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena (art. 5.º da Lei n. 8.072/90). Vencidos os Ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e Nelson Jobim, que indeferiam a ordem, mantendo a orientação até então fixada pela Corte no sentido da constitucionalidade da norma atacada. O Tribunal, por unanimidade, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, uma vez que a decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão” (HC n. 82.959/SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 23.2.2006).
[3] Art. 102, § 2.º, da CF. “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” (parágrafo com redação dada pela Emenda Constitucional n. 45, de 8.12.2004 – DOU de 31.12.2004).
[4] Novas questões criminais. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 28.
[5] O princípio constitucional de inocência: recurso em liberdade, antecedentes do réu. Revista de Julgados e Doutrina do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 6, p. 20, 2.º trim. 1990.
[6] Cf. FREITAS, Jayme Walmer de. Prisão temporária. Saraiva: São Paulo, 2004.
[7] Cf. Eles podem ser soltos. Veja, São Paulo, n. 2004, 18 abr. 2007.
[8] FREITAS, Jayme Walmer de. Op. cit.
[9] STJ, 5.ª T., HC n. 57.441/GO, relatora Ministra Laurita Vaz, DJU de 19.6.2006.
[10] Recomenda-se a leitura de dois excelentes artigos publicados no site Jus Navigandi:
a) BASTOS, Marcelo Lessa. Crimes hediondos, regime prisional e questões de direito intertemporal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, boletim n. 1.380, 12 abr. 2007. Disponível em: www.jus.uol.com.br.
b) MARCÃO, Renato. Lei n. 11.464/2007: novas regras para a liberdade provisória, regime de cumprimento de pena e progressão de regime em crimes hediondos e assemelhados. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, boletim n. 1.377, 9 abr. 2007. Disponível em: www.jus.uol.com.br.
[11] Informativo STF n. 463. A Corte Maior nacional passou a entender viável a pena substitutiva aos crimes de tráfico sob a égide da Lei n. 6.368/76. Os fundamentos são sentidos no julgamento do HC n. 85.894/RJ, cuja essência é a seguinte: “Em conclusão de julgamento, o Plenário, por maioria, concedeu habeas corpus impetrado em favor de condenada à pena de 3 anos de reclusão, em regime integralmente fechado, pela prática do crime do art. 12 da Lei n. 6.368/76, para que, afastada a proibição, em tese, de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito, o Tribunal a quo decida fundamentadamente acerca do preenchimento dos requisitos do art. 44 do CP, em concreto, para a substituição pleiteada. Alegava-se, na espécie, ocorrência de direito público subjetivo da paciente à substituição da pena, uma vez que preenchidos os requisitos do art. 44 do CP, nos termos da alteração trazida pela Lei n. 9.714/98, bem como ausência de fundamentação do acórdão proferido pela Corte de origem, que reputara a substituição incompatível e inaplicável ao crime de tráfico de entorpecentes, em face da vedação imposta pela Lei n. 8.072/90 (art. 2.º, § 1.º) – v. Informativos n. 406 e n. 411. Tendo em conta a orientação firmada no julgamento do HC n. 82.959/SP, no sentido de que o modelo adotado na Lei n. 8.072/90 não observa o princípio da individualização da pena, já que não considera as particularidades de cada pessoa, sua capacidade de reintegração social e os esforços empreendidos com fins a sua ressocialização, e, salientando que a vedação da mencionada lei não passa pelo juízo de proporcionalidade, entendeu-se que, afastada essa vedação, não haveria óbice à substituição em exame, nos crimes hediondos, desde que preenchidos os requisitos legais. Considerou-se, também, o que decidido no julgamento do HC n. 84.928/MG (DJU de 11.11.2005), em que assentado que, somente depois de fixada a espécie da pena (privativa de liberdade ou restritiva de direito) é que seria possível cogitar do regime de seu cumprimento. Vencidos os Ministros Joaquim Barbosa, Carlos Velloso, Celso de Mello e Ellen Gracie que denegavam a ordem” (HC n. 85.894/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 19.4.2007).
[12] Nesse sentido: STJ, 6.ª T., HC n. 54.518/SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 1.º.8.2006.
[13] Código Penal anotado. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 775.
Juiz criminal em Sorocaba/SP, mestre e doutorando pela PUC/SP. Professor de Direito Penal, Processo Penal e de Leis Especiais. Autor de artigos e dos livros Prisão Temporária e OAB - 2ª Fase - Área Penal, ambos pela Editora Saraiva. Coordenador da Coleção OAB - 2ª Fase, pela mesma Editora. Palestrante. Professor da Escola Paulista da Magistratura e de Leis Especiais da Rede LFG. Coordenador do curso de atualização e capacitação profissional da Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI). Foi coordenador pedagógico do Curso Triumphus - preparatório para Carreiras Jurídicas e Exame de Ordem, por 14 anos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Jayme Walmer de. Crimes Hediondos: uma visão global e atual a partir da Lei n. 11.464/2007 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2008, 08:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/15458/crimes-hediondos-uma-visao-global-e-atual-a-partir-da-lei-n-11-464-2007. Acesso em: 23 dez 2024.
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