José Luiz Quadros de Magalhães[1]
Tatiana Ribeiro de Souza[2]
Resumo: A descentralização e as novas formas de organização territorial do Estado são de grande importância para a afirmação da democracia e da transparência da gestão dos recursos públicos. Existem hoje 23 estados federais no planeta, cada um com suas peculiaridades, sendo que o Brasil será o primeiro Estado federal de três esferas, centrifugo e simétrico. Entretanto, embora muita rica, a nossa forma de organização territorial precisa apresentar respostas ousadas aos problemas metropolitanos. Assim a busca de novas formas de exercício do poder metropolitano é necessária para a correta gestão e solução dos seus problemas. Estas soluções podem ser encontradas dentro do marco constitucional sem a necessidade de emenda a Constituição.
Palavras chaves: Região metropolitana; democracia; gestão.
Introdução
O presente trabalho tem por finalidade buscar a compreensão do papel de novas formas de organização territorial no Estado Federal brasileiro, especialmente a constituição e evolução das regiões metropolitanas como esfera territorial que pode permitir a melhor gestão dos complexos problemas das grandes cidades e seu entorno.
Embora o Brasil já tenha na Constituição de 1988 uma estrutura inovadora, com um federalismo de três esferas, a rápida expansão das cidades e o aumento da complexidade de seus problemas decorrentes de relações econômicas desiguais, pluralismo cultural e enorme diversidade de interesses envolvidos em variados conflitos, é necessário que sejamos capazes de inovar permanentemente, com coragem e sempre de forma democrática, criando novas formas de gestão e de participação.
Neste sentido, após compreendermos o nosso Estado Federal e a formação histórica de nossas regiões metropolitanas, propomos na parte final deste estudo uma nova forma jurídica para as regiões metropolitanas, que possa conferir a estas a agilidade necessária para o enfretamento dos problemas diários. Neste trabalho a proposição desta nova forma procura respeitar os limites constitucionais, evitando assim a necessidade de emendas constitucionais, especialmente em nível federal.
1- O Estado Federal brasileiro
A constituição de 1988 criou uma nova estrutura de organização territorial para o Estado brasileiro, com a inovação de um Estado Federal de três esferas que inclui o Município como ente federado.
O Estado Federal se apresenta hoje com diversas formas e estruturas diferentes no mundo contemporâneo onde podemos perceber, com clareza, um forte movimento em direção a uma acentuada descentralização que os Estados democráticos do mundo vêm construindo.
O federalismo clássico tem origem na Constituição norte-americana de 1787, sendo formado por duas esferas de poder, a União e os Estados-Membros (federalismo de dois níveis ou duas esferas), e de progressão histórica centrípeta, o que significa que surgiu historicamente de uma efetiva união de Estados anteriormente soberanos, que abdicaram de sua soberania para formar novas entidades territoriais de direito público, o Estado federal (pessoa jurídica de direito público internacional) e a União (pessoa jurídica de direito público interno), uma das esferas de poder ao lado dos Estados membros, diante dos quais não se coloca em posição hierárquica superior.
O Estado Federal diferencia-se de outros estados descentralizados, como o Estado Autonômico (Espanha), Regional (Itália) ou Unitário descentralizado (França), pelo fato de ser a única forma de Estado cujos entes territoriais autônomos detêm competência legislativa constitucional, ou, em outras palavras, um poder constituinte decorrente.
O federalismo brasileiro, ao contrário de norte-americano, é um federalismo de origem centrífuga (criado a partir de um Estado Unitário, que sofreu divisão territorial para formar os Estado-membros) e absolutamente inovador, ao estabelecer em 1988 um federalismo de três níveis, incluindo o município como ente federado. Desde a Constituição de 1988, os municípios brasileiros conquistam a posição de ente federado, podendo, portanto, elaborar suas Constituições municipais (chamadas pela Constituição Federal de Leis Orgânicas Municipais), auto-organizando os seus poderes Executivo e Legislativo e promulgando sua Constituição sem que seja necessária ou permitida a intervenção do Legislativo estadual ou federal para a respectiva aprovação. O que ocorre com as Constituições municipais (Leis Orgânicas) é apenas o controle a posteriori de constitucionalidade, em face das Constituições Federal e Estadual.
Alguns autores têm rejeitado a idéia do município como ente federado, por ser uma idéia nova, mas seus argumentos (ausência de representação no Senado, impossibilidade de falar-se em União histórica de municípios, ausência de poder judiciário no município, entre outros) são frágeis ou inconsistentes diante da característica essencial do federalismo, que difere esta forma de Estado de outras formas descentralizadas, que é a existência de um poder constituinte decorrente ou de competências legislativas constitucionais nos entes federados. Apenas no Estado Federal ocorre a descentralização de competências constitucionais.
Quanto à existência de um processo histórico de união, esta não existiu no Brasil, assim como em vários Estados Federais pelo mundo. A formação de nosso Estado Federal ocorreu de forma fictícia, pois não tivemos um processo histórico de união do que estava separado, uma vez que o Brasil nasceu na forma Unitária na nossa primeira Constituição de 1824 e foi transformado em estado federal apenas com a Constituição de 1891.
O argumento de negação do município como ente federado, fundado na idéia de inexistência de representação dos municípios no Senado não procede. Existem Estados federais não bicamerais (a Venezuela é unicameral), assim como ocorre o bicameralismo em Estados Unitários (França), Regional (Itália), Autonômico (Espanha), sendo que, no caso brasileiro, o nosso Senado não é apenas uma casa de representação dos Estados, mas cumpre também uma função revisora e conservadora, caracterizada pela duração do mandato e forma de renovação de suas cadeiras.
Quanto ao aspecto centrífugo do nosso federalismo, ele é extremamente importante para a interpretação da Constituição e rejeição de aspectos inconstitucionais em medidas provisórias, leis, atos de governo e emendas à Constituição.
Como já mencionado, o nosso Estado Federal surgiu a partir de um Estado Unitário, criado pela Constituição de 1824. O seu processo de formação é, portanto, exatamente o inverso do norte-americano, o primeiro Estado Federal da história. A Constituição brasileira de 1891, inspirando-se nas instituições norte-americanas, adota a república, o presidencialismo e o federalismo. Entretanto, a história não pode ser copiada, e o modelo norte americano, tanto de Suprema Corte, como de presidencialismo, como de bicameralismo e federalismo foram construídos na história norte-americana, sendo bastante diferentes do nosso.
A visão do nosso federalismo como federalismo centrífugo explica a nossa federação extremamente centralizada, que, para aperfeiçoar-se, deve buscar constantemente a descentralização. A origem do nosso federalismo explica a tradição centralizadora e autoritária que devemos procurar abandonar para construir uma federação moderna e um Estado democrático de Direito efetivo. A Constituição de 1891 construiu um modelo federal altamente descentralizado, mas artificial, que, por este mesmo motivo, recuou nas Constituições brasileiras posteriores. Não se pode negar a história, mas sim trabalhar com o real para fazer evoluir o nosso Estado para modelos mais descentralizados e, logo, mais democráticos. Por isto, um federalismo de três esferas teria que surgir no Brasil, país de histórica tradição municipalista.
A federação descentralizada de 1891 recua no grau de descentralização em 1934 e 1946, sendo que, na Constituição de inspiração social-fascista de 1937, a federação foi extinta, permanecendo apenas nominalmente. A conexão entre autoritarismo e centralização é muito forte na nossa história. Também nas Constituições de 1967 e principalmente de 1969 (a chamada Emenda nº1), temos uma federação nominal. A expressão “federalismo nominal” refere-se ao nome dado ao Brasil de “República Federativa” pelas Constituições de 1937, 1967 e Emenda nº1/69, que não corresponde à distribuição de competências prevista no próprio texto, e todas elas resultaram em uma prática autoritária que nega o federalismo. Nestes períodos, o Brasil manteve o nome de Estado federal, mas na sua estrutura e na realidade dos jogos de poder, constituía-se em mero Estado unitário, pouco descentralizado e muito autoritário. No Brasil da ditadura empresarial-militar a partir de 1964 as liberdades democráticas são suprimidas o federalismo definitivamente comprometido com a supressão da eleição de governadores e a instituição de senadores nomeados não eleitos pelo povo. Vivemos naquele período uma ditadura mais sofisticada que outras ditaduras latino-americanas, pois foi adotado um sistema semelhante ao sistema eleitoral norte-americano com a adoção de um bipartidarismo legal (nos EUA ocorre um bipartidarismo de fato) e a eleição do Presidente da República pelo voto indireto. Tínhamos um novo general a cada cinco anos.
A Constituição de 1988 restaura a federação e a democracia, criando um novo federalismo centrífugo (que deve sempre buscar a descentralização) e de três esferas (incluindo uma terceira esfera de poder federal: o município). Entretanto, embora as inovações tenham sido muito importantes, o número de competências destinadas à União em detrimento dos Estados e Municípios é muito grande, fazendo com que nós tenhamos um dos Estados federais mais centralizados do mundo.
Todavia, a concentração de competências na figura da União não é o único desafio imposto pela Constituição de 1988, existe uma quarta forma de organização territorial para a qual não foi dado tratamento constitucional adequado, são as regiões metropolitanas. Falamos em quarta forma de organização territorial porque as regiões metropolitanas não pertencem aos Estados (uma vez que são integradas por municípios autônomos em relação ao Estado), não são um super-município (mas uma multiplicidade de municípios), mas também não possuem personalidade jurídica própria.
O tratamento dado às regiões metropolitanas, pela Constituição Federal de 1988, limita-se à previsão de sua institucionalização (atribuição esta conferida aos Estados), o que aumenta ainda mais a tensão existente no federalismo brasileiro entre as forças centrífugas (que tendem à descentralização) e centrípetas (que tendem à centralização).
Portanto, o problema metropolitano faz parte da engenharia institucional brasileira, que permanentemente demanda respostas, tanto no campo urbanístico, como político, social, econômico e também jurídico.
2- As Regiões Metropolitanas no Estado Federal brasileiro (uma nova esfera de gestão descentralizada)
As regiões metropolitanas consistem em áreas de urbanização intensa e modelo de gestão especial, pois resultam de aglomerados urbanos distribuídos pelo território de diversos municípios e, portanto, sujeitos à gestão autônoma de vários entes.
O problema metropolitano vem ganhando visibilidade nos últimos anos, em grande medida, pela gravidade dos problemas urbanos no Brasil e as implicações sociais, políticas e econômicas geradas por esses problemas, envolvendo aspectos que vão da pobreza às dificuldades institucionais de imprimir uma gestão adequada a estas regiões.
Embora a discussão em torno das regiões metropolitanas tenha se tornado mais intensa, nos últimos anos, especialmente a partir de 2002 com a criação do Ministério das Cidades, o planejamento metropolitano dá seus primeiros sinais em meados do Século passado. A Constituição do Estado de Minas Gerais, de 14 de julho de 1947, é um exemplo da preocupação que começa a se desenhar no campo da gestão compartilhada, pois seu texto previa a criação de agrupamento de municípios, permitindo inclusive a personificação jurídica desses agrupamentos para instalação, exploração e administração de serviços comuns.
Já em 1967, tanto o “Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social – de desenvolvimento regional e urbano”, do governo federal, quanto a Própria Constituição Federal, voltaram-se para a realização de políticas de desenvolvimento e gestão intermunicipal. Para isso, a Constituição de 1967 tratou, pela primeira vez no constitucionalismo brasileiro, das regiões metropolitanas, permitindo sua criação no Capítulo “Da Ordem Econômica e Social”.
Nos termos da Constituição de 1967, a capacidade da União estabelecer regiões metropolitanas era um dos princípios que orientavam a “realização da justiça social”, segundo a ordem econômica vigente. As regiões metropolitanas deveriam ser constituídas por Municípios que, independentemente de sua vinculação administrativa, integrassem a mesma comunidade sócio-econômica, visando à realização de serviços de interesse comum.
A literatura produzida nos últimos 20 anos, para tratar da questão metropolitana, é pacífica quanto aos motivos que inspiraram a inclusão das regiões metropolitanas na Constituição de 1967: a necessidade de identificação de pólos de desenvolvimento regional, afim de disciplinar tanto o processo de crescimento econômico quanto o acelerado crescimento urbano. De acordo com o texto constitucional de 1967, não importavam, naquele momento, as especificidades da organização sócio-econômica, nem as peculiaridades das áreas aglomeradas que essas regiões abrangeriam, o que provavelmente foi um erro, já que as economias regionais no Brasil se estruturaram com dinâmicas completamente distintas entre si.
A criação de áreas metropolitanas, segundo o padrão homogeneizador da Constituição de 1967, contribuiu para a diluição das especificidades históricas de cada região, redundando em dinâmicas repetidas nestas regiões, com: pólos definidos pela concentração de atividades comerciais e serviços diferenciados; periferias com funções residenciais e industriais (especialização das funções urbanas); a segregação espacial, acompanhada pela favelização e deterioração de espaços com infra-estrutura urbana; conurbação; surgimento das cidades-dormitório; e demandas comuns por serviços e infra-estrutura urbana.
Junto com a primeira referência à instituição de região metropolitana no Brasil nascia também a crise da titularidade da sua gestão, pois, embora se tratasse de agrupamento de municípios, o mandamento constitucional de 1967 atribuía a outro ente da federação, a União, a competência para estabelecer as regiões metropolitanas.
Segundo Horta (2003), ao prescrever a criação de regiões metropolitanas, a Constituição de 1967 rompeu com os antecedentes constitucionais do agrupamento regional de municípios e delegou à União, mediante a elaboração de lei complementar, a atribuição de estabelecer as regiões metropolitanas no país.
Antes da Constituição de 1967, este processo tendia a se desencadear via agrupamento de municípios e, por iniciativa destes, como dispunha a Constituição de 1937, mas, com a nova Constituição, esta competência passou para o domínio da União, com a ação conjugada dos estados-membros. Segundo a maioria dos autores que tratam do percurso histórico das regiões metropolitanas, a Constituição de 1967 representou uma verdadeira devassa sobre o município, transformando os assuntos de “peculiar interesse local” em assuntos metropolitanos.
Portanto, a necessidade de cooperação para realização de serviços de interesse comum a dois ou mais municípios não apareceu apenas quando foi institucionalizada a figura da região metropolitana, mas já fazia parte dos arranjos institucionais previstos nos textos constitucionais, federais e estaduais, anteriores à Constituição de 1967.
Mesmo com sua institucionalização, em 1967, a região metropolitana não resultou em um comando de efeito imediato, pois o texto que lhe permitia o reconhecimento institucional remetia ao juízo da União, mediante a elaboração de lei complementar, a tarefa de regulamentar a matéria.
Apenas em 1973 foram estabelecidas as primeiras regiões metropolitanas no Brasil, quando a Lei Complementar n°14, de 8 de junho, deu início ao dinâmico processo de conformação da rede metropolitana brasileira.
A Lei Complementar n°14, de 1973, instituiu oito regiões metropolitanas: São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza. No ano seguinte, após a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e Guanabara, foi instituída a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, através da Lei Complementar nº 20 de 01 de julho de 1974.
Além de estabelecer as regiões metropolitanas, a União cuidou de regulamentá-las no mesmo texto normativo, quando designou o estabelecimento de dois órgãos para cada RM: o “Conselho Deliberativo” e o “Conselho Consultivo”. Diante da inexistência de governo próprio para as regiões metropolitanas, com Poderes Executivo e Legislativo eleitos em cada região, os dois Conselhos previstos na Lei Complementar n°14 fariam as vezes desses dois Poderes.
O campo de atuação dos Conselhos Deliberativo e Consultivo de cada região metropolitana estava adstrito aos serviços comuns a todos os municípios envolvidos, sendo o Conselho Deliberativo responsável pela coordenação e execução desses serviços, e o Conselho Consultivo responsável pela orientação por meio de sugestões.
A Lei Complementar n°14 estabeleceu, também, no artigo 5°, que serviços seriam reputados de interesse metropolitano, enumerando entre eles: o desenvolvimento social; saneamento básico, uso do solo metropolitano, produção e distribuição de gás combustível canalizado; aproveitamento dos recursos hídricos e controle da poluição; e outros que viessem a ser incluídos como competência do Conselho Deliberativo por lei federal.
Dessa forma, o padrão centralizador da regulamentação das primeiras regiões metropolitanas no Brasil revela-se tanto pela perda de influência dos municípios integrantes na própria gestão da RM, quanto pela autoridade da União de estabelecer as áreas a serem contempladas com a institucionalização de Região Metropolitana. Podemos dizer contempladas porque a Lei Complementar n°14 deferia preferência na obtenção de recursos federais e estaduais aos municípios integrantes de RM.
Na tentativa de reverter o quadro metropolitano centralizado e homogeneizado que se desenvolveu sob a vigência da Constituição de 1967, a Constituição de 1988 transferiu a competência de instituir regiões metropolitanas da União para os estados-membros, fazendo ainda a distinção entre esta categoria territorial, as aglomerações urbanas e as microrregiões.
3- O Pacto Federativo de 1988 e as regiões metropolitanas
A Constituição Federal de 1988 representa um divisor de águas para as regiões metropolitanas brasileiras. Do ponto de vista institucional, a Constituição de 1988 é a responsável pela redistribuição de poder nas regiões metropolitanas, considerando como atores envolvidos: a União, os estados-membros e os municípios. Antes da Constituição Federal de 1988 tanto os municípios como os estados-membros eram, ao mesmo tempo, detentores de poder (formalmente) e destinatários das decisões e normas emanadas dos órgãos de gestão metropolitana. Mas, na realidade, o poder de decisão e de elaborar normas na região metropolitana era predominantemente dos estados-membros, uma vez que os municípios apareciam muito mais como os destinatários dessas decisões e normas.
A conformação institucional dada pela Constituição de 1967 estabelecia um sistema de cooperação extremamente verticalizado, atribuindo à União a capacidade de criar região metropolitana e deixando ao estado-membro uma parcela significativa na estrutura de gestão metropolitana.
Embora sob a vigência da Constituição de 1967 não houvesse a definição da titularidade da gestão metropolitana, a regulamentação dada pela União fazia com que o exercício da gestão (próprio de quem tem a titularidade) fosse desempenhado pelo estado-membro, pois a participação dos municípios era predominantemente de caráter consultivo.
A Constituição de 1988 abriu novas possibilidades de arranjos federativos metropolitanos. Com a autonomia que os municípios passaram a ter e intenção de descentralizar a política administrativa, a ordem jurídica de 1988 transferiu a atribuição de institucionalizar as regiões metropolitanas para os estados-membros e, novamente, deixou em aberto a definição da titularidade da gestão. Não houve, no texto constitucional de 1988, qualquer referência à natureza jurídica das regiões metropolitanas, nem à sua vinculação (subordinação) a nenhum ente da federação.
Sob tais condições, a titularidade da gestão metropolitana ficou a cargo dos arranjos constituídos em cada estado-membro, por meio de sistemas de cooperação tendentes à descentralização, dada a amplitude do poder local.
4- A questão metropolitana no processo constituinte
Durante a década de 1980, o Brasil passava por uma fase de transição de mais de vinte anos de ditadura para o regime democrático. A Constituição de 1988, marco principal dessa transição, foi antecedida de muitos debates e ajustes de interesses durante a fase constituinte para se chegar à nova ordem jurídica.
Naquele momento de transição, a questão metropolitana não era vista pela Constituinte como uma questão prioritária, principalmente porque a tendência descentralizadora que marcou a Constituição de 1988 era incompatível com a estrutura das regiões metropolitanas até então vigente, que esvaziava o poder dos municípios. Segundo a análise de Guia (2001, p. 413) sobre o período, tudo apontava para uma não-política federal em relação ao tema metropolitano na Constituinte de 1988, levando ao tratamento genérico que foi dado como resultado final dos debates sobre o problema das metrópoles.
Durante a elaboração da Constituição de 1988, o debate sobre a questão metropolitana se inseriu na Comissão encarregada dos trabalhos sobre a “Organização do Estado” que, mais tarde, integraria o projeto da Constituição. A negligência dos parlamentares constituintes em relação ao problema das regiões metropolitanas se revela nos números apontados por Souza (2001, p. 367), mostrando que, do total de 94 propostas perante a Comissão de Organização do Estado, apenas 15 abordaram o tema regiões metropolitanas e, quando a Constituinte chegou à fase final dos trabalhos, havia sido registrado o recebimento de 35.111 emendas de parlamentares e 120 da sociedade, das quais apenas 14 tratavam das regiões metropolitanas.
Como se verifica na Quadro 1, extraída do trabalho de Souza (2001) e apresentada a seguir, as propostas de emenda relativas às regiões metropolitanas, apresentadas durante a Constituinte, mostram um certo consenso sobre a inadequação do modelo vigente em que a União era a responsável pela institucionalização das regiões metropolitanas. Como alternativa condizente com o espírito descentralizador do período, as propostas estavam voltadas para a maior participação dos estados-membros e dos Municípios nas questões metropolitanas, levando especialmente ao entendimento de que caberia aos estados-membros o poder de instituí-las.
Quadro 1: Emendas sobre Regiões Metropolitanas Propostas pelos Constituintes de 1988
Fonte: Extraído do banco de dados do Prodasen.
Também podemos apreender das propostas de emendas sobre as regiões metropolitanas mostradas na Quadro 1 que, durante a Constituinte de 1988, o problema da natureza jurídica dessas regiões já se mostrava presente, pois não parece ter havido consenso sobre qualificação das RMs, isto é: se seriam entidades com representação política própria ou seriam apenas instâncias administrativas.
Com toda complexidade da gestão metropolitana, a Constituição Federal de 1988 e a maioria das Constituições estaduais de 1989 deixaram de dar a atenção merecida à questão, considerada crucial na década de 1970, dedicando ao assunto um único dispositivo, dentro do Capítulo dos Estados Federados, sem sequer fazer menção às RMs no Capítulo destinado às Políticas Urbanas.
5- Regulamentação das regiões metropolitana sob o marco regulatório da Constituição Federal de 1988
A imprecisão constitucional quanto à situação das regiões metropolitanas no Brasil tem sido encarada como se o Constituinte tivesse tratado a questão metropolitana como um problema a ser “deixado pra depois”, em parte pela dificuldade de se chegar a um consenso em relação ao tema e em parte pela falta de consciência do problema. Por outro lado, a transferência da atribuição de instituir regiões metropolitanas aos estados-membros, sem maiores limitações à matéria, parece ter deixado à instância estadual a prerrogativa de coordenar irrestritamente os assuntos metropolitanos no seu território.
Ao lado da atribuição de instituir regiões metropolitanas, foi facultado aos estados-membros, pelo mesmo dispositivo constitucional, a possibilidade de também instituir aglomerações urbanas e microrregiões. De acordo com o texto, todas as espécies de regiões (região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião) seriam constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.
Como podemos perceber, o constituinte optou por transferir o problema metropolitano para os estados-membros, pois estes podem, por força do artigo 25 da Constituição Federal, adotar leis próprias de organização e regulamentação, observando apenas os princípios constitucionais. Neste caso, compete a cada estado-membro criar as leis de organização das regiões metropolitanas que venham a existir em seu território, enfrentando, com isto, apenas o conceito de “autonomia constitucional dos municípios”, que vem sendo usado como obstáculo ao desempenho, por parte dos estados-membros, da regulamentação das regiões metropolitanas.
Como veremos no próximo capítulo, a autonomia municipal tem se tornado um fetiche, por parte das administrações locais, e se opõe à formatação que entendemos necessária para uma gestão metropolitana, que é a formação de redes federativas de cooperação (de base predominantemente horizontal) de adesão voluntária. A principal razão para a resistência dos municípios em cooperar é que a gestão compartilhada de certo modo esvazia o poder dos governos locais, o que gera um desinteresse político por parte dos municípios envolvidos em estabelecer uma gestão que diminua a sua autonomia. Mas, por outro lado, há imperativos políticos e técnicos que exigem cooperar, como veremos mais adiante.
Voltando à questão central aqui tratada, que é a situação das regiões metropolitanas diante do pacto federativo de 1988, podemos perceber que o texto constitucional federal, que autoriza a criação de RMs, aglomerações urbanas e microrregiões, limita-se a estabelecer dois requisitos, indispensáveis e comuns a qualquer uma delas, são eles: 1) a composição por agrupamento de municípios limítrofes; e 2) a instituição regional objetivando o melhor desempenho das funções públicas de interesse comum aos municípios envolvidos.
Não há, pois, maiores dificuldades em cumprirmos o mandamento constitucional quanto à exigência de agrupamento de municípios limítrofes, mas a simplicidade da norma constitucional deixou bastante impreciso o que pode ser compreendido como “funções públicas de interesse comum”, agravando ainda mais as dificuldades em se compor os interesses de todos os atores envolvidos na institucionalização das RMs.
Mesmo com todas as dificuldades decorrentes da imprecisão constitucional federal, alguns governos estaduais criaram, após 1988, regiões metropolitanas em seus territórios, sem, contudo, oferecerem o respaldo normativo necessário a uma gestão eficaz nessas RMs. Após a Constituição de 1988 houve uma verdadeira multiplicação de RMs no país, aumentando até o ano de 2003 de nove (já existentes à época da Constituição de 1988) para 25, segundo dados1 da CDU - Subcomissão de Ordenamento Territorial e Regiões Metropolitanas da Câmara Federal.
6- Conclusão: definindo a titularidade da gestão metropolitana
Titularidade é um conceito que expressa a idéia daquele que está habilitado pra alguma atividade ou função. Esta pode não ser uma expressão muito familiar aos diferentes grupos de interessados nas questões metropolitanas, entretanto, todos eles dêem ser capazes de reconhecer que: saber quem pode ou deve se responsabilizar pela gestão metropolitana é uma questão central da qual dependem todas as outras, ainda que não menos importantes.
Quando nos perguntamos quem pode ou deve gerir as metrópoles não nos referimos as figuras unipessoais, característica do modelo presidencial que adotamos nas unidades político-administrativas brasileiras, onde o gestor público acumula funções de representação e governo, que é o caso do Presidente da República, dos Governadores de Estado e Prefeitos.
Sob esta perspectiva estaríamos tentando caracterizar o responsável pessoal pela gestão metropolitana a fim de definir quem deveria ser o governador ou prefeito metropolitano, mas ao contrário disso, quando problematizamos a responsabilidade de gerir uma metrópole nos referimos à dimensão institucional, isto é, às instituições envolvidas no processo de definição, planejamento e administração da região metropolitana.
Sabemos que no Brasil as regiões metropolitanas não são entes federados, ou seja, não possuem autonomia nem capacidade de auto-organização e que a Constituição de 1988 optou pela estadualização dessas regiões, fazendo com que constitucionalmente os estado sejam responsáveis pela criação e regulamentação das regiões metropolitanas. O papel do Estado, contudo deve ser limitado pelo principio da legitimidade, pois o governo estadual e os membros da Assembléia Legislativa não são eleitos apenas pela população metropolitana e, por isso, não representam legitimamente os interesses metropolitanos.
Considerando o principio da legitimidade, a gestão metropolitana, que se refere às funções públicas de interesse comum aos municípios envolvidos, deveria ser regulamentada por um órgão legislativo próprio e exercida por um órgão gestor metropolitano, ambos escolhidos pelo colégio eleitoral metropolitano. Mas, infelizmente, esta idéia tem sido desconsiderada nos debates sobre RM’s, como se fosse uma hipótese inconstitucional.
Entretanto para fazermos uma leitura adequada do texto constitucional, no que se refere à autonomia municipal e às competências estaduais, precisamos levar em consideração a teoria do federalismo e as bases do federalismo brasileiro. Desta forma poderemos sustentar que não há inconstitucionalidade na criação de um órgão de gestão metropolitana, nem mesmo de um órgão legislativo metropolitano, desde que estes não tenham competências constitucionais (de auto-organização) o que só é permitido aos entes federados.
As regiões metropolitanas no Brasil podem ser descentralizações administrativas dos Estados-membros, sem ofender a Constituição nem a forma federal de Estado, pois obteria apenas competências ordinárias, concedidas pelo Estado-membro por meio de sua Constituição estadual. Os Estados-Membros brasileiros têm dimensões territoriais superiores a muitos Estados europeus que são altamente descentralizados como a Suíça, Alemanha, Áustria e Bélgica (todos federais), mas embora tenham capacidade de se auto-organizarem por meio das Constituições Estaduais, mantêm uma estrutura altamente centralizada, como se fossem impedidos de se descentralizarem.
A autonomia municipal prevista na Constituição de 1988 vem sendo utilizada como principal argumento da inconstitucionalidade da criação de um órgão gestor metropolitano. Mas, a despeito de defendermos a autonomia municipal, em regiões metropolitanas, boa parte das questões que vêm sendo decididas internamente pelos municípios, são de interesse regional, e por isto não são da sua competência. De acordo com o texto constitucional, a capacidade legislativa do município se restringe àquelas taxativamente enumeradas e ao que for de questão de interesse local, não podendo estes sustentarem a capacidade de decidirem sobre aquilo que produza impacto no contexto metropolitano.
Portanto não há constitucionalmente impedimento para o Estado criar um órgão gestor metropolitano, por lei complementar estadual, com competências para decidir sobre as funções públicas de interesse comum aos municípios envolvidos, e que obrigue estes municípios a atenderem às decisões deste órgão. Ademais, o Artigo 25, §1º da Constituição Federal atribui competência residual aos Estados-Membros, o que significa a possibilidade de legislar sobre aquilo que a ele não for vedado. Da mesma forma, pode o Estado criar um órgão legislativo metropolitano e delegar a este, por meio da Constituição Estadual, a competência de legislar sobre as questões de interesse regional metropolitano.
Podemos perceber com isto que para as regiões metropolitanas terem uma gestão legítima e eficaz, falta mais ousadia por parte dos legisladores estaduais do que base legal, constitucional e teórica para fazê-lo.
BIBLIOGRAFIA:
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SOUZA, Celina Maria de. Descentralização, políticas ambientais e regiões metropolitanas: o caso de Salvador. In: Direito Urbanístico e política urbana no Brasil. FERNANDES, Edésio (organizador).Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
[1] Professor de Direitos Constitucional, Teoria do Estado e da Constituição da graduação, mestrado e doutorado da PUC-Minas e UFMG. Membro do NUJUP Puc-Minas e Diretor do CEEDE-MG. Mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG.
[2] Professora de Direito Constitucional e Direito Internacional da Newton Paiva, Professora de Direito Municipal do UNIFEMM, mestre em Ciências Sociais – Gestão das Cidades pela PUC-Minas e Diretora do CEEDE-MG
1 MINAS GERAIS, 2003
Professor do mestrado e doutorado da PUC-Minas e da UFMG e Diretor do CEEDE(MG), mestre e doutor em Direito Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOSé LUIZ QUADROS DE MAGALHãES, . Regiões Metropolitanas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 dez 2008, 08:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/15727/regioes-metropolitanas. Acesso em: 23 dez 2024.
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