Na ocasião, estava em foco a questão da Abolitio Criminis Termporalis para o crime de posse ilegal de arma de fogo, visto que com as sucessivas alterações legislativas o crime de posse ilegal de arma de fogo estava "adormecido" até 31 de dezembro de 2008.
A partir do dia 01 de 2009, o referido crime “despertou”, ou seja, entregou em pleno vigor, em virtude do prazo final estabelecido no art. 30 da Lei n. 10.826/03, senão vejamos:
Art. 30. Os possuidores e proprietários de arma de fogo de uso permitido ainda não registrada deverão solicitar seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008, mediante apresentação de documento de identificação pessoal e comprovante de residência fixa, acompanhados de nota fiscal de compra ou comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova admitidos em direito, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e a sua condição de proprietário, ficando este dispensado do pagamento de taxas e do cumprimento das demais exigências constantes dos incisos I a III do caput do art. 4o desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 11.706, de 2008)
Ressalte-se que naquela época, era pacífico nos tribunais e doutrina a existência da abolitio criminis temporalis para o crime de posse ilegal de arma de fogo, em face dos dispositivos legais que prologaram o período para que proprietários de armas não registradas pudessem regularizar sua situação. Ora se havia possibilidade de utiizarem o prazo do art. 30 da Lei, não haveria como imputá-los o crime de posse ilegal de arma de fogo.
Desta forma quando da realização do artigo supracitado, chegamos à seguinte conclusão “... a partir de 31 de janeiro de 2008, as Autoridades Policiais devem se abster de autuar em flagrante quem quer que seja encontrado na posse de arma de fogo de uso permitido, não registradas. Já os casos em que a arma fogo for de uso restrito, a lei continua em plena aplicação, não ocorrendo a abolitio criminis temporalis.” Este período durou até 31 de dezembro de 2008.
Ressalte-se que tal posicionamento integrou um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, quando se deparou com a referida problemática aqui tratada, cuja ementa segue abaixo:
APELAÇÃO CRIMINAL - POSSE ILEGAL DE ARMA COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA - ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA - ATIPICIDADE - TRÁFICO DE DROGAS - CONDENAÇÃO MANTIDA - CAUSA DE DIMINUIÇÃO DA PENA - CRIME PRIVILEGIADO - REGIME ABERTO - POSSIBILIDADE. 1. Durante o período estabelecido no art. 30 do Estatuto do Desarmamento, alterado recentemente pela Lei 11.706/2008, ter a posse ilegal de arma de fogo, ainda que com numeração suprimida, em residência ou dependência desta não é crime. Atipicidade reconhecida. Precedentes do STJ. 2. A Lei 11.343/2006 criou a figura do tráfico privilegiado que, tal como o homicídio privilegiado, por exemplo, não é crime equiparado a hediondo, não se aplicando a ele a restrição da Lei 8.072/90 (necessidade de fixação do regime fechado).
Transcrição do texto de Valdinei Cordeiro Coimbra: Medida Provisória nº 417, de 31 de janeiro de 2008, e o crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido e não registrada - abolitio criminis temporalis e suas sucessivas ocorrências (Clubjus, Brasília, 04/03/2008).
Pois bem, como já mencionado anteriormente, o prazo para que proprietários de arma de fogo em condições ilegais pudessem regularizar a sua situação, seja devolvendo a arma ou obtendo a autorização para ter a sua posse legal, chegou ao final, significando dizer que o crime previsto no artigo 12 da referida Lei entrou em pleno vigor, motivo pelo qual faz-se necessário a sua transcrição para relembrar os possuidores de arma de fogo sobre o seu teor:
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Ressalte-se que a posse irregular de arma de fogo de uso restrito, possue cominação de pena mais grave, segundo consta o art. 16 da Lei 10.826/03, conforme segue:
Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Com a extinção do prazo previsto no artigo 30 da Lei 10.826/03, o legislador deixou um “buraco” na Lei, para que a doutrina e a jurisprudência, pudessem resolver, isto porque os artigos 31 e 32, trazem a seguinte dicção:
Art. 31. Os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e indenização, nos termos do regulamento desta Lei.
Art. 32. Os possuidores e proprietários de arma de fogo poderão entregá-la, espontaneamente, mediante recibo, e, presumindo-se de boa-fé, serão indenizados, na forma do regulamento, ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma. (Redação dada pela Lei nº 11.706, de 2008)
Certamente surgirão interpretações no sentido de que se a Lei fala em poder entregar a arma de fogo espontaneamente à Polícia Federal, aquele que tivesse a posse irregular de uma arma de fogo (em tese incorrendo em crime), poderia utilizar o argumento que teria a intenção de entregá-la, nos termos do art. 31, portanto não poderia ser punido com o crime do art. 12 da Lei n. 10.826/03, tendo em vista constar expressamente a extinção da punibilidade de eventual posse irregular.
Ocorre que não parece ser esta a melhor interpretação. Até porque, não haveria lógica ter-se estabelecido o prazo final no art. 30 da mesma Lei.
Assim, pela dicção do art. 31 da Lei, os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia Federal, que não estaria incorrendo em crime, pois se adquiriram REGULARMENTE a arma de fogo, o legislador deu a possibilidade de a qualquer tempo devolvê-la, inclusive, com INDENIZAÇÃO. Na verdade o Estado está pagando pelas armas de fogo que antigamente foram adquiridas e que ainda existem nos lares do país, ou seja, o dispositivo trata-se apenas daquelas pessoas que adquiriram a arma de fogo em um estabelecimento legal, seguindo as exigências da antiga legislação sobre arma de fogo, significa dizer que, tal dispositivo não poderia beneficiar aqueles que adquiriram suas armas de forma ilegal ou no submundo do crime.
Nese diapasão o Art. 32 da Lei sub examinem após a extinção da abolition criminis temporalis do art. 30 da mesma Lei, deve ser interpretado da seguinte forma: os possuidores e proprietários irregulares de arma de fogo, a partir de 01 de janeiro de 2009, encontram-se incursos no artigo 12 ou 16 da Lei 10.826/03 (posse de arma de uso pessoal e posse de arma de uso restrito, respectivamente), entretanto, caso venham a entregá-las ao Estado, terão a extinção da punibilidade reconhecida expressamente pelo art. 32, e, inclusive se comprovarem a presunção de boa-fé, serão indenizados, ou seja, enquanto não entregam, estão sujeitos à prisão em flagrante.
Digo prisão em flagrante, porque o crime de posse irregular de arma de fogo é um crime permanente, ou seja, que perdura no tempo enquanto houver a existência da posse. E por se tratar de crime permanente, significa dizer que no interior da residência está ocorrendo um crime flagrancial, autorizando a Polícia a entrar, sem ordem judicial, a qualquer hora do dia ou da noite na casa do possuidor, para prendê-lo em flagrante delito, tendo em vista tratar-se de uma das exceções da garantia constitucional da inviolabilidade de domicílio, previsto no art. 5, inc. XI, da CF, o qual dipõe que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”(negritei).
Retornando à analise do art. 32 da Lei, veja-se que para se utilizar da extinção de punibilidade, faz-se necessário que o agente desenvolva alguma ação no sentido de demonstrar que deseja devolver a arma, isso porque, a simples saída de casa portando a arma para entregá-la à polícia, sem as fomalidades legais, leva-o a praticar os crimes de porte irregular de arma de fogo previstos nos arts. 14 e 16 do mesmo diploma legal. Assim, faz-se necessário que o possuidor procure uma unidade da Polícia Federal, e obtenha orientações de como entregar a arma (traslado), ou seja, esta intenção, se colocada em prática, levará-o fa fazer jus ao benefício da extinção de punibilidade, do art. 32, tendo em vista a expressão “... ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma” (art. 32, in fine). Neste caso, comprovando-se a presunção de boa-fé, poderão ser indenizados.
Assim, é de se concluir que:
a) Com o fim do prazo do art. 30 da Lei 10.826/03, não há que se falar em abolitio criminis temporalis para qualquer dos crimes de posse irregular de arma de fogo, seja de uso permitido ou de uso restrito.
b) Mesmo com a extinção da abolitio criminis temporalis, em virtude do fim do prazo do art. 30 da referida Lei, os proprietários de arma de fogo irregulares, em face da nova lei, mas que adquiriram tais armas REGULARMENTE na vigência das leis de armas anteriores, ainda poderão “A QUALQUER TEMPO” entregá-las à Polícia Federal, mas não poderão mais regularizá-las. Assim, para se beneficiar do referido dispositivo, seria necessário que comprovasse ter adquirido a arma de forma REGULAR, pois do contrário estaria incorrendo em crime.
c) por fim, os possuidores e proprietáros de arma irregular de uso permitido ou restrito, a partir de 01 de janeiro de 2009, estão incorrendo na prática dos crimes previstos nos arts. 12 e 16 da Lei, ou seja, não poderão registrá-las, em face do prazo final do art. 30, entretanto, poderão entregá-las à Polícia Federal, ocasião em que ocorrerá a extinção da punibilidade, que estaria condicionada a uma ação positiva do agente no sentido de demostrar intenção de entregar a arma. Enquanto isso não ocorre, estão incorrendo na prática dos crimes de posse ilegal de arma, sendo assim, não caberia o argumento de que “iriam entregá-las”, sem a comprovação dessa intenção. Assim, se o indivíduo nestas condições procura uma unidade da Polícia, com a intenção de entregar a arma de fogo, requerendo a adoção de procedimento próprio para o traslado da arma, seria beneficiado com a extinção da punibilidade do art. 32 da Lei. Só assim, damos razão à existência dos artigos 12 e 16 da Lei, bem como a discussão sobre a abolitio criminis temporalis.
Por fim, conselho se fosse bom, seria cobrado, mas mesmo assim, trago a seguinte recomendação àqueles que ainda possuem arma de fogo de forma irregular em casa: PROCUREM UMA UNIDADE POLICIAL E SE INFORMEM ACERCA DA POSSIBILIDADE DE ENTREGAREM SUAS ARMAS, pois não dá pra ficar a mercê de interpretações dos dispositivos legais acima indicados, sujeitos à responsabilização penal, bem como ao streptus judicii (escândalo do process) criminal.
Mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada - Espanha. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo ICAT/UDF. Pós-graduado em Gestão Policial Judiciária pela ACP/PCDF-FORTIUM. Professor Universitário de Direito Penal e Orientação de Monografia. Advogado. Delegado de Polícia da PCDF (aposentado). Já exerceu os cargos de Coordenador da Polícia Legislativa da Câmara Legislativa do Distrito Federal (COPOL/CLDF), Advogado exercendo o cargo de Assessor de Procurador-Geral da CLDF. Chefe de Gabinete da Administração do Varjão-DF. Chefe da Assessoria para Assuntos Especiais da PCDF. Chefe da Assessoria Técnica da Cidade do Varjão - DF; Presidente da CPD/CGP/PCDF. Assessor Institucional da PCDF. Secretário Executivo da PCDF. Diretor da DRCCP/CGP/PCDF. Diretor-adjunto da Divisão de Sequestros. Chefe-adjunto da 1ª Delegacia de Polícia. Assessor do Departamento de Polícia Especializada - DPE/PCDF. Chefe-adjunto da DRR/PCDF. Analista Judiciário do TJDF. Agente de Polícia Civil do DF. Agente Penitenciário do DF. Policial Militar do DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COIMBRA, Valdinei Cordeiro. O despertar do crime de posse ilegal de arma de fogo diante do prazo final previsto no art. 30 da Lei 10.826/03, com as alterações promovidas pela Lei 11.706/08 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev 2009, 07:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/16474/o-despertar-do-crime-de-posse-ilegal-de-arma-de-fogo-diante-do-prazo-final-previsto-no-art-30-da-lei-10-826-03-com-as-alteracoes-promovidas-pela-lei-11-706-08. Acesso em: 23 dez 2024.
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